Cotardo Calligaris*
Faz um milênio que a gente acredita no extraordinário poder da paixão
amorosa. Tristão e Isolda se amavam embora Isolda fosse a esposa
prometida ao rei Marco, tio de Tristão (e Tristão fosse um sobrinho
leal). Lancelote e Ginebra se amavam embora Lancelote fosse cavaleiro do
rei Artur e Ginebra fosse a esposa do mesmo rei.
Qualquer poeta, por amor pela Dama, atropelava as diferenças de classe, os laços de parentesco e as obrigações que o ligassem ao seu senhor. Não mudou muito desde então: o amor justifica qualquer transgressão. O que acontece por amor tem uma legitimidade própria, absoluta.
Também faz um milênio ou quase que o amor é o grande motor de nossas
possíveis transformações. A gente se torna melhor por causa do amor: o
sentimento nos modifica, e a esperança de sermos amados nos encoraja a
mudar. O amor também nos eleva e nos aproxima de Deus; Beatriz, por
exemplo, leva Dante até ao Paraíso. Em suma, de Tristão e Isolda até "O
Quinto Elemento", de Luc Besson, o amor é nossa arma secreta.
Claro, muitos resistem à potência do amor. De "Romeu e Julieta" a "West Side Story", sempre há Montecchios e Capuletos que acham inaceitável que o amor entre dois adolescentes se sobreponha a uma antiga rivalidade entre as famílias.
No caso de Romeu e Julieta, o amor custou a vida dos amantes, mas triunfou: foi por causa do amor deles que as duas famílias, debruçadas sobre os corpos inertes dos dois jovens, se reconciliaram.
Lá pelos 11 anos descobri que o amor podia não ser correspondido. Ela se chamava C.B. e preferia alguém mais velho e, sobretudo, que soubesse esquiar. Eu, vergonha, aos 11 anos, ainda não sabia. Perdi C.B., mas passei o verão seguinte em alta montanha, num intensivo de esqui. O amor me transformou (para melhor).
Um ano depois, aos 12 anos, li "O Amor e o Ocidente", de Denis de Rougemont. Concordei em parte com o que entendi: o amor-paixão era sobrevalorizado e, no fundo, incômodo. Só não me convenceu a ideia de que, em vez de se apaixonar perdidamente, fosse melhor ter afetos e amizades cristãs com esposas e companheiras. Cheguei a um compromisso: o amor-paixão era um abismo no qual era melhor não se perder, mas quem sabe, em vez de preferir um casamento cristão, a gente pudesse escolher a liberdade licenciosa dos libertinos? Em suma, menos amor-paixão, nada de amizade ou de amor cristão, mais promiscuidade e mais sexo –essa me parecia a receita ideal.
A vantagem do sexo e da promiscuidade é que, contrariamente ao amor (paixão ou não), eles não exigem que o parceiro ou parceira seja também uma alma gêmea ou coisa que valha. É possível desejar um inimigo e transar com ele; já amar um inimigo é bem mais difícil.
Por exemplo, imaginemos que Montecchios e Capuletos não se odiassem só por alguma velharia insensata, mas tivessem visões do mundo radicalmente opostas. Será mesmo que, para você, Montecchio, seria fácil amar uma Capuleto (e reciprocamente)? Será que o amor tem esse poder?
Você detesta os "petralhas" e foi para a rua pedindo o impeachment de Dilma. Conseguiria amar de paixão alguém que milita para que Lula seja candidato em 2018? Você acha que o país acaba de sofrer um golpe, por aquela corja de políticos da qual ninguém consegue nos livrar. Você conseguiria amar alguém para quem Temer é a esperança?
Isso sem nem contar posições contrárias sobre Lava Jato, Sergio Moro, casamento gay, pagamento de dízimo para uma igreja, aborto"¦ Nos Estados Unidos, não é diferente. Quem, democrata ou liberal urbano, conseguiria amar um "Trump supporter" (e reciprocamente)?
Em 2005, Bruno Barreto filmou "O Casamento de Romeu e Julieta", entre uma palmeirense e um corintiano. Duvido que a polarização política de hoje possa inspirar uma comédia parecida. Há diferenças com as quais talvez não dê para brincar.
Coisa relativamente inédita, encontro casais que se separam por incompatibilidade de ideias sociais. E encontro homens e mulheres para quem um posicionamento político parecido é uma condição do amor –sem isso, nem vale a pena tentar.
Em suma, o amor não triunfa sobre qualquer diferença. Também não é verdade que, se praticássemos o amor, não faríamos a guerra. Ao contrário, há guerras que nos impedem de amar.
Saí de "Aliados", de Robert Zemeckis, que recomendo por isso, com uma pergunta boa para tempos polarizados: será que o amor pode se manter na diferença radical? Qual é, para você, a oposição ideal máxima que o amor pode tolerar?
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* Italiano, é psicanalista, doutor em psicologia clínica e escritor. Reflete sobre cultura, modernidade e as aventuras do espírito contemporâneo (patológicas e ordinárias). Escreve às quintas.
Fonte: http://www1.folha.uol.com.br/colunas/contardocalligaris/2017/02/1861237-ha-guerras-que-nos-impedem-de-amar.shtml
Qualquer poeta, por amor pela Dama, atropelava as diferenças de classe, os laços de parentesco e as obrigações que o ligassem ao seu senhor. Não mudou muito desde então: o amor justifica qualquer transgressão. O que acontece por amor tem uma legitimidade própria, absoluta.
Mariza/Mariza/ Editoria de Arte/Folhapress | ||
Claro, muitos resistem à potência do amor. De "Romeu e Julieta" a "West Side Story", sempre há Montecchios e Capuletos que acham inaceitável que o amor entre dois adolescentes se sobreponha a uma antiga rivalidade entre as famílias.
No caso de Romeu e Julieta, o amor custou a vida dos amantes, mas triunfou: foi por causa do amor deles que as duas famílias, debruçadas sobre os corpos inertes dos dois jovens, se reconciliaram.
Lá pelos 11 anos descobri que o amor podia não ser correspondido. Ela se chamava C.B. e preferia alguém mais velho e, sobretudo, que soubesse esquiar. Eu, vergonha, aos 11 anos, ainda não sabia. Perdi C.B., mas passei o verão seguinte em alta montanha, num intensivo de esqui. O amor me transformou (para melhor).
Um ano depois, aos 12 anos, li "O Amor e o Ocidente", de Denis de Rougemont. Concordei em parte com o que entendi: o amor-paixão era sobrevalorizado e, no fundo, incômodo. Só não me convenceu a ideia de que, em vez de se apaixonar perdidamente, fosse melhor ter afetos e amizades cristãs com esposas e companheiras. Cheguei a um compromisso: o amor-paixão era um abismo no qual era melhor não se perder, mas quem sabe, em vez de preferir um casamento cristão, a gente pudesse escolher a liberdade licenciosa dos libertinos? Em suma, menos amor-paixão, nada de amizade ou de amor cristão, mais promiscuidade e mais sexo –essa me parecia a receita ideal.
A vantagem do sexo e da promiscuidade é que, contrariamente ao amor (paixão ou não), eles não exigem que o parceiro ou parceira seja também uma alma gêmea ou coisa que valha. É possível desejar um inimigo e transar com ele; já amar um inimigo é bem mais difícil.
Por exemplo, imaginemos que Montecchios e Capuletos não se odiassem só por alguma velharia insensata, mas tivessem visões do mundo radicalmente opostas. Será mesmo que, para você, Montecchio, seria fácil amar uma Capuleto (e reciprocamente)? Será que o amor tem esse poder?
Você detesta os "petralhas" e foi para a rua pedindo o impeachment de Dilma. Conseguiria amar de paixão alguém que milita para que Lula seja candidato em 2018? Você acha que o país acaba de sofrer um golpe, por aquela corja de políticos da qual ninguém consegue nos livrar. Você conseguiria amar alguém para quem Temer é a esperança?
Isso sem nem contar posições contrárias sobre Lava Jato, Sergio Moro, casamento gay, pagamento de dízimo para uma igreja, aborto"¦ Nos Estados Unidos, não é diferente. Quem, democrata ou liberal urbano, conseguiria amar um "Trump supporter" (e reciprocamente)?
Em 2005, Bruno Barreto filmou "O Casamento de Romeu e Julieta", entre uma palmeirense e um corintiano. Duvido que a polarização política de hoje possa inspirar uma comédia parecida. Há diferenças com as quais talvez não dê para brincar.
Coisa relativamente inédita, encontro casais que se separam por incompatibilidade de ideias sociais. E encontro homens e mulheres para quem um posicionamento político parecido é uma condição do amor –sem isso, nem vale a pena tentar.
Em suma, o amor não triunfa sobre qualquer diferença. Também não é verdade que, se praticássemos o amor, não faríamos a guerra. Ao contrário, há guerras que nos impedem de amar.
Saí de "Aliados", de Robert Zemeckis, que recomendo por isso, com uma pergunta boa para tempos polarizados: será que o amor pode se manter na diferença radical? Qual é, para você, a oposição ideal máxima que o amor pode tolerar?
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* Italiano, é psicanalista, doutor em psicologia clínica e escritor. Reflete sobre cultura, modernidade e as aventuras do espírito contemporâneo (patológicas e ordinárias). Escreve às quintas.
Fonte: http://www1.folha.uol.com.br/colunas/contardocalligaris/2017/02/1861237-ha-guerras-que-nos-impedem-de-amar.shtml
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