Mark Zukerberg emite carta global em que
declara que a maior rede social do mundo vai se engajar em temas como
Comunidade Solidária, Comunidade Segura, Comunidade Informada,
Comunidade Engajada e Comunidade Inclusiva
16 de fevereiro de 2017
Resumo da carta:
O Facebook não é apenas uma empresa de tecnologia ou mídia, mas uma comunidade formada por pessoas. Nos últimos 13 anos, estivemos concentramos em conectar pessoas, principalmente familiares e amigos, e fizemos um bom progresso.
Hoje, em carta apresentada para a
comunidade pelo Mark, o Facebook se compromete a construir uma
infraestrutura social a longo prazo para criar uma comunidade global,
para que possamos ter o máximo de impacto positivo no mundo.
Estamos muito comprometidos em melhorar
nossas ferramentas para dar às pessoas o poder de compartilhar e usar a
tecnologia para mitigar o mal e ampliar o bem.
As cinco áreas centrais para o Facebook são:
- Comunidades solidárias
- Comunidade segura
- Comunidade informada
- Comunidade civicamente engajada
- Comunidade inclusiva
Destaques das cinco áreas (aspas do Mark)
- Comunidades Solidárias (exemplo de produto: Grupos)
- “As comunidades online são positivas e podemos fortalecer as comunidades existentes no mundo offline ao ajudar as pessoas a se reunírem tanto no ambiente online como offline. Da mesma forma que se conectar com amigos online fortalece as relações reais, desenvolver essa infraestrutura fortalecerá essas comunidades, assim como permitirá a formação de novas comunidades.”
- “Recentemente, identificamos que mais de 100 milhões de pessoas no Facebook são membros de grupos que elas consideram ´muito significativos´.”
- “Se nós formos capazes de melhorar nossas sugestões (de grupos) e ajudar a conectar 1 bilhão de pessoas a comunidades significativas, isso pode fortalecer nossa estrutura social.”
- Comunidade Segura (exemplo de produtos: Safety Check e Community Help)
- “Nossa comunidade está em uma posição única para ajudar a prevenir danos, dar suporte durante uma situação de crise ou permitir que as pessoas se reúnam na reconstrução. Isso acontece pela quantidade de comunicação na nossa rede, nossa habilidade de rapidamente alcançar as pessoas em todo o mundo durante uma emergência e da vasta bondade intrínseca na nossa comunidade.”
- “Olhando para o futuro, uma das nossas grandes oportunidades para manter as pessoas seguras é construindo Inteligência Artificial para entender melhor e mais rapidamente o que está acontecendo na nossa comunidade.”
- Comunidade Informada
- “É nossa responsabilidade ampliar os bons efeitos e minimizar os ruins — para seguir ampliando a diversidade enquanto fortalecemos nosso entendimento comum, para que nossa comunidade possa criar o maior impacto positivo no mundo.”
- “Estudos sugerem que as melhores soluções para melhorar o diálogo podem vir de conhecer uns aos outros como um indivíduo completo, e não somente como opiniões — algo que nossa comunidade está em posição única para fazer.”
- “Uma imprensa forte também é essencial para construir uma comunidade informada.”
- “Temos que fazer mais para apoiar a indústria de mídia, para garantir que essa vital função social seja sustentável — desde apoiar a produção de notícias locais até desenvolver formatos que funcionem melhor em dispositivos móveis e melhorar os tipos de modelos de negócios com os quais as organizações de mídia trabalham.”
- Comunidade Civicamente Engajada (produtos: ferramentas para registrar que você foi às urnas, Eventos/Grupos para se organizar)
- “O ponto inicial para engajamento cívico no processo político atual é apoiar o voto em todo o mundo.”
- “Além do voto, a melhor oportunidade é ajudar as pessoas a se manterem engajadas em temas que interessem a elas todos os dias, não somente de anos em anos quando elas vão às urnas.”
- Comunidade Inclusiva
- Como uma comunidade global de pessoas, “nós precisamos de Padrões da Comunidade que reflitam nossos valores coletivos para o que deve ou não ser permitido.”
- “As premissas são que os Padrões da Comunidade devem refletir as normas culturais da nossa comunidade, e cada pessoa deve ver o mínimo de conteúdo questionável possível.”
- Esforços a longo prazo: “É importante notar que são necessários grandes avanços na Inteligência Artificial para o entendimento de textos, fotos e vídeos para poder julgar se os conteúdos contêm discurso de ódio e violência ou conteúdo sexual explícito, entre outros. No nosso ritmo atual de desenvolvimento, esperamos começar a lidar com alguns desses casos em 2017, mas outros não serão possíveis por muitos anos.”
Carta na íntegra, em inglês: https://www.facebook.com/notes/mark-zuckerberg/building-global-community/10103508221158471
IMAGEM DA INTERNET
FONTE: https://consumoliquido.wordpress.com/2017/02/20/carta-de-mark-zukerberg-para-o-mundo/
CRÍTICA À CARTA
Manifesto de Mark
Zuckerberg é um documento megalômano e autoritário
João Pereira Coutinho*
Binho de 21 Fev de 2017
Binho Barreto/Editora de Arte/ Folhapress
Acabei de ler o manifesto que Mark Zuckerberg escreveu sobre o futuro da
humanidade. Ri muito. Mas depois, quando cheguei ao fim, uma pergunta
severa instalou-se no meu crânio: Zuckerberg é um humorista ou ele
acredita mesmo em cada palavra?
Se estamos na presença de um humorista, podemos incluir Zuckerberg na
grande tradição dos utopistas satíricos. Você sabe: gente profundamente
descontente com a realidade em volta e que usa a literatura para
divertir ou moralizar.
O problema é que eu desconfio que Zuckerberg fala a sério porque
"sentido de humor" é algo que não casa com o personagem.
Resumidamente, o manifesto deseja construir um futuro perfeito. E que
futuro é esse? Fácil: um futuro sem pobreza, sem guerra, sem angústia,
sem solidão. E como atingir esse futuro? Fácil também: mobilizando os
bilhões de seres humanos que usam o Facebook.
As minhas gargalhadas começaram logo no princípio: "Estamos a construir o
mundo que todos queremos?", pergunta o profeta Mark. Não, meu filho,
não estamos. Cada um constrói o mundo que entende porque a ideia de um
propósito comum só existe na cabeça de um fanático. Pior: de um fanático
que acredita falar em nome de "todos".
Em teoria, um mundo sem pobreza, sem guerra, sem angústia e sem solidão
pode ter os seus encantos. De preferência, se for proposto por uma
candidata a Miss Universo com biquíni a condizer.
Mas imaginar o sr. Zuckerberg em tais preparos, para além de
esteticamente arrepiante, é politicamente aberrante: aquilo que define a
espécie humana é a diversidade de interpretações e soluções sobre
qualquer assunto social.
Sim, a pobreza é um infortúnio. Mas saber como combatê-la
–redistribuindo a renda? Criando livremente? E de que forma?– é matéria
de discussão pluralista e secular. O mesmo vale para a guerra (há
guerras criminosas? Há guerras necessárias?), para a angústia (o que
seria da grande arte sem esse demônio interior?) ou para a solidão (há
momentos em que o inferno podem ser os outros, parafraseando o
filósofo).
Mas os delírios de Zuckerberg continuam. Escreve ele que o futuro
pertence aos "grupos significativos" (grupos de gente que partilham as
mesmas felicidades ou infelicidades).
Um exemplo: se eu tenho uma doença específica, posso encontrar a minha
turma específica. O futuro de Zuckerberg é feito de centenas, milhares
de guetos virtuais. Como as leprosarias da antiguidade ou os sanatórios
para tuberculosos.
De resto, Zuckerberg acredita que a inteligência artificial poderá um
dia salvar os seres humanos deles próprios. Se eu consumo fotos ou
vídeos onde o suicídio tem papel principal, será possível "identificar"
os meus comportamentos "desviantes" e impedir o ato funesto. Impedir
como?
Zuckerberg não diz. Imagino que haverá intervenção do exército: o jovem
estudante de sociologia, que faz tese de doutorado sobre "O Suicídio" de
Durkheim, terá a porta arrombada pelos militares e será caridosamente
enfiado numa camisa de força.
Para muitos pensadores, o suicídio é o último ato de liberdade –ou, como
dizia Cioran, é precisamente pela certeza de que existe sempre uma
saída para a existência terrena que nos podemos comprometer com a vida.
No mundo de Zuckerberg, nem a mais íntima das escolhas humanas estará a
salvo.
Finalmente, o óbvio: com o Facebook, eleitores e eleitos estarão mais
próximos do que nunca, escutando-se mutuamente. Tradução: se "a tirania
da maioria" aprovar atos de barbaridade, o político, para ser eleito,
defenderá atos de barbaridade.
Os mecanismos de mediação que as democracias liberais sempre defenderam
(tribunais, parlamentos etc.) devem ser derrotados em nome da "vontade
geral", essa categoria sinistra que Rousseau legou aos seus discípulos.
Para sermos justos, nada do que escreve Zuckerberg é novidade. Ele
apenas repete as falácias típicas do pensamento globalista: os problemas
globais só podem ser enfrentados por uma espécie de "comunidade global"
–um eufemismo para "governo global".
Fatalmente, não passa pela cabeça de Zuckerberg que é precisamente esse
globalismo supranacional e transnacional que produz a reação populista
(e nacionalista) atualmente em cartaz.
O manifesto de Mark Zuckerberg é um documento megalômano e autoritário
escrito com a tinta ilusória das boas intenções. Se adolescentes assim
não têm noção do ridículo, o mundo já será um pouco melhor se os adultos
não perderem o deles.
-------------------
* Escritor português, é doutor em ciência política.
Escreve às terças e às sextas.
Fonte:
http://www1.folha.uol.com.br/colunas/joaopereiracoutinho/2017/02/1860523-manifesto-de-mark-zuckerberg-e-um-documento-megalomano-e-autoritario.shtml
Manifesto de Mark Zuckerberg é um documento megalômano e autoritário
JOÃO PEREIRA COUTINHO*
Acabei de ler o manifesto que Mark Zuckerberg escreveu sobre o futuro da
humanidade. Ri muito. Mas depois, quando cheguei ao fim, uma pergunta
severa instalou-se no meu crânio: Zuckerberg é um humorista ou ele
acredita mesmo em cada palavra?
Se estamos na presença de um humorista, podemos incluir Zuckerberg na
grande tradição dos utopistas satíricos. Você sabe: gente profundamente
descontente com a realidade em volta e que usa a literatura para
divertir ou moralizar.
O problema é que eu desconfio que Zuckerberg fala a sério porque "sentido de humor" é algo que não casa com o personagem.
Resumidamente, o manifesto deseja construir um futuro perfeito. E que
futuro é esse? Fácil: um futuro sem pobreza, sem guerra, sem angústia,
sem solidão. E como atingir esse futuro? Fácil também: mobilizando os
bilhões de seres humanos que usam o Facebook.
Binho Barreto/Editoria de Arte/Folhapress | ||
As minhas gargalhadas começaram logo no princípio: "Estamos a construir o
mundo que todos queremos?", pergunta o profeta Mark. Não, meu filho,
não estamos. Cada um constrói o mundo que entende porque a ideia de um
propósito comum só existe na cabeça de um fanático. Pior: de um fanático
que acredita falar em nome de "todos".
Em teoria, um mundo sem pobreza, sem guerra, sem angústia e sem solidão
pode ter os seus encantos. De preferência, se for proposto por uma
candidata a Miss Universo com biquíni a condizer.
Mas imaginar o sr. Zuckerberg em tais preparos, para além de
esteticamente arrepiante, é politicamente aberrante: aquilo que define a
espécie humana é a diversidade de interpretações e soluções sobre
qualquer assunto social.
Sim, a pobreza é um infortúnio. Mas saber como combatê-la
–redistribuindo a renda? Criando livremente? E de que forma?– é matéria
de discussão pluralista e secular. O mesmo vale para a guerra (há
guerras criminosas? Há guerras necessárias?), para a angústia (o que
seria da grande arte sem esse demônio interior?) ou para a solidão (há
momentos em que o inferno podem ser os outros, parafraseando o
filósofo).
Mas os delírios de Zuckerberg continuam. Escreve ele que o futuro
pertence aos "grupos significativos" (grupos de gente que partilham as
mesmas felicidades ou infelicidades).
Um exemplo: se eu tenho uma doença específica, posso encontrar a minha
turma específica. O futuro de Zuckerberg é feito de centenas, milhares
de guetos virtuais. Como as leprosarias da antiguidade ou os sanatórios
para tuberculosos.
De resto, Zuckerberg acredita que a inteligência artificial poderá um
dia salvar os seres humanos deles próprios. Se eu consumo fotos ou
vídeos onde o suicídio tem papel principal, será possível "identificar"
os meus comportamentos "desviantes" e impedir o ato funesto. Impedir
como?
Zuckerberg não diz. Imagino que haverá intervenção do exército: o jovem
estudante de sociologia, que faz tese de doutorado sobre "O Suicídio" de
Durkheim, terá a porta arrombada pelos militares e será caridosamente
enfiado numa camisa de força.
Para muitos pensadores, o suicídio é o último ato de liberdade –ou, como
dizia Cioran, é precisamente pela certeza de que existe sempre uma
saída para a existência terrena que nos podemos comprometer com a vida.
No mundo de Zuckerberg, nem a mais íntima das escolhas humanas estará a
salvo.
Finalmente, o óbvio: com o Facebook, eleitores e eleitos estarão mais
próximos do que nunca, escutando-se mutuamente. Tradução: se "a tirania
da maioria" aprovar atos de barbaridade, o político, para ser eleito,
defenderá atos de barbaridade.
Os mecanismos de mediação que as democracias liberais sempre defenderam
(tribunais, parlamentos etc.) devem ser derrotados em nome da "vontade
geral", essa categoria sinistra que Rousseau legou aos seus discípulos.
Para sermos justos, nada do que escreve Zuckerberg é novidade. Ele
apenas repete as falácias típicas do pensamento globalista: os problemas
globais só podem ser enfrentados por uma espécie de "comunidade global"
–um eufemismo para "governo global".
Fatalmente, não passa pela cabeça de Zuckerberg que é precisamente esse
globalismo supranacional e transnacional que produz a reação populista
(e nacionalista) atualmente em cartaz.
O manifesto de Mark Zuckerberg é um documento megalômano e autoritário
escrito com a tinta ilusória das boas intenções. Se adolescentes assim
não têm noção do ridículo, o mundo já será um pouco melhor se os adultos
não perderem o deles.
--------------
* Escritor português, é doutor em ciência política.
Fonte: http://www1.folha.uol.com.br/colunas/joaopereiracoutinho/2017/02/1860523-manifesto-de-mark-zuckerberg-e-um-documento-megalomano-e-autoritario.shtml
Manifesto de Mark
Zuckerberg é um documento megalômano e autoritário
João Pereira Coutinho*
Binho de 21 Fev de 2017
Binho Barreto/Editora de Arte/ Folhapress
Acabei de ler o manifesto que Mark Zuckerberg escreveu sobre o futuro da
humanidade. Ri muito. Mas depois, quando cheguei ao fim, uma pergunta
severa instalou-se no meu crânio: Zuckerberg é um humorista ou ele
acredita mesmo em cada palavra?
Se estamos na presença de um humorista, podemos incluir Zuckerberg na
grande tradição dos utopistas satíricos. Você sabe: gente profundamente
descontente com a realidade em volta e que usa a literatura para
divertir ou moralizar.
O problema é que eu desconfio que Zuckerberg fala a sério porque
"sentido de humor" é algo que não casa com o personagem.
Resumidamente, o manifesto deseja construir um futuro perfeito. E que
futuro é esse? Fácil: um futuro sem pobreza, sem guerra, sem angústia,
sem solidão. E como atingir esse futuro? Fácil também: mobilizando os
bilhões de seres humanos que usam o Facebook.
As minhas gargalhadas começaram logo no princípio: "Estamos a construir o
mundo que todos queremos?", pergunta o profeta Mark. Não, meu filho,
não estamos. Cada um constrói o mundo que entende porque a ideia de um
propósito comum só existe na cabeça de um fanático. Pior: de um fanático
que acredita falar em nome de "todos".
Em teoria, um mundo sem pobreza, sem guerra, sem angústia e sem solidão
pode ter os seus encantos. De preferência, se for proposto por uma
candidata a Miss Universo com biquíni a condizer.
Mas imaginar o sr. Zuckerberg em tais preparos, para além de
esteticamente arrepiante, é politicamente aberrante: aquilo que define a
espécie humana é a diversidade de interpretações e soluções sobre
qualquer assunto social.
Sim, a pobreza é um infortúnio. Mas saber como combatê-la
–redistribuindo a renda? Criando livremente? E de que forma?– é matéria
de discussão pluralista e secular. O mesmo vale para a guerra (há
guerras criminosas? Há guerras necessárias?), para a angústia (o que
seria da grande arte sem esse demônio interior?) ou para a solidão (há
momentos em que o inferno podem ser os outros, parafraseando o
filósofo).
Mas os delírios de Zuckerberg continuam. Escreve ele que o futuro
pertence aos "grupos significativos" (grupos de gente que partilham as
mesmas felicidades ou infelicidades).
Um exemplo: se eu tenho uma doença específica, posso encontrar a minha
turma específica. O futuro de Zuckerberg é feito de centenas, milhares
de guetos virtuais. Como as leprosarias da antiguidade ou os sanatórios
para tuberculosos.
De resto, Zuckerberg acredita que a inteligência artificial poderá um
dia salvar os seres humanos deles próprios. Se eu consumo fotos ou
vídeos onde o suicídio tem papel principal, será possível "identificar"
os meus comportamentos "desviantes" e impedir o ato funesto. Impedir
como?
Zuckerberg não diz. Imagino que haverá intervenção do exército: o jovem
estudante de sociologia, que faz tese de doutorado sobre "O Suicídio" de
Durkheim, terá a porta arrombada pelos militares e será caridosamente
enfiado numa camisa de força.
Para muitos pensadores, o suicídio é o último ato de liberdade –ou, como
dizia Cioran, é precisamente pela certeza de que existe sempre uma
saída para a existência terrena que nos podemos comprometer com a vida.
No mundo de Zuckerberg, nem a mais íntima das escolhas humanas estará a
salvo.
Finalmente, o óbvio: com o Facebook, eleitores e eleitos estarão mais
próximos do que nunca, escutando-se mutuamente. Tradução: se "a tirania
da maioria" aprovar atos de barbaridade, o político, para ser eleito,
defenderá atos de barbaridade.
Os mecanismos de mediação que as democracias liberais sempre defenderam
(tribunais, parlamentos etc.) devem ser derrotados em nome da "vontade
geral", essa categoria sinistra que Rousseau legou aos seus discípulos.
Para sermos justos, nada do que escreve Zuckerberg é novidade. Ele
apenas repete as falácias típicas do pensamento globalista: os problemas
globais só podem ser enfrentados por uma espécie de "comunidade global"
–um eufemismo para "governo global".
Fatalmente, não passa pela cabeça de Zuckerberg que é precisamente esse
globalismo supranacional e transnacional que produz a reação populista
(e nacionalista) atualmente em cartaz.
O manifesto de Mark Zuckerberg é um documento megalômano e autoritário
escrito com a tinta ilusória das boas intenções. Se adolescentes assim
não têm noção do ridículo, o mundo já será um pouco melhor se os adultos
não perderem o deles.
-------------------
* Escritor português, é doutor em ciência política.
Escreve às terças e às sextas.
Fonte:
http://www1.folha.uol.com.br/colunas/joaopereiracoutinho/2017/02/1860523-manifesto-de-mark-zuckerberg-e-um-documento-megalomano-e-autoritario.shtml
Manifesto de Mark
Zuckerberg é um documento megalômano e autoritário
João Pereira Coutinho*
Binho de 21 Fev de 2017
Binho Barreto/Editora de Arte/ Folhapress
Acabei de ler o manifesto que Mark Zuckerberg escreveu sobre o futuro da
humanidade. Ri muito. Mas depois, quando cheguei ao fim, uma pergunta
severa instalou-se no meu crânio: Zuckerberg é um humorista ou ele
acredita mesmo em cada palavra?
Se estamos na presença de um humorista, podemos incluir Zuckerberg na
grande tradição dos utopistas satíricos. Você sabe: gente profundamente
descontente com a realidade em volta e que usa a literatura para
divertir ou moralizar.
O problema é que eu desconfio que Zuckerberg fala a sério porque
"sentido de humor" é algo que não casa com o personagem.
Resumidamente, o manifesto deseja construir um futuro perfeito. E que
futuro é esse? Fácil: um futuro sem pobreza, sem guerra, sem angústia,
sem solidão. E como atingir esse futuro? Fácil também: mobilizando os
bilhões de seres humanos que usam o Facebook.
As minhas gargalhadas começaram logo no princípio: "Estamos a construir o
mundo que todos queremos?", pergunta o profeta Mark. Não, meu filho,
não estamos. Cada um constrói o mundo que entende porque a ideia de um
propósito comum só existe na cabeça de um fanático. Pior: de um fanático
que acredita falar em nome de "todos".
Em teoria, um mundo sem pobreza, sem guerra, sem angústia e sem solidão
pode ter os seus encantos. De preferência, se for proposto por uma
candidata a Miss Universo com biquíni a condizer.
Mas imaginar o sr. Zuckerberg em tais preparos, para além de
esteticamente arrepiante, é politicamente aberrante: aquilo que define a
espécie humana é a diversidade de interpretações e soluções sobre
qualquer assunto social.
Sim, a pobreza é um infortúnio. Mas saber como combatê-la
–redistribuindo a renda? Criando livremente? E de que forma?– é matéria
de discussão pluralista e secular. O mesmo vale para a guerra (há
guerras criminosas? Há guerras necessárias?), para a angústia (o que
seria da grande arte sem esse demônio interior?) ou para a solidão (há
momentos em que o inferno podem ser os outros, parafraseando o
filósofo).
Mas os delírios de Zuckerberg continuam. Escreve ele que o futuro
pertence aos "grupos significativos" (grupos de gente que partilham as
mesmas felicidades ou infelicidades).
Um exemplo: se eu tenho uma doença específica, posso encontrar a minha
turma específica. O futuro de Zuckerberg é feito de centenas, milhares
de guetos virtuais. Como as leprosarias da antiguidade ou os sanatórios
para tuberculosos.
De resto, Zuckerberg acredita que a inteligência artificial poderá um
dia salvar os seres humanos deles próprios. Se eu consumo fotos ou
vídeos onde o suicídio tem papel principal, será possível "identificar"
os meus comportamentos "desviantes" e impedir o ato funesto. Impedir
como?
Zuckerberg não diz. Imagino que haverá intervenção do exército: o jovem
estudante de sociologia, que faz tese de doutorado sobre "O Suicídio" de
Durkheim, terá a porta arrombada pelos militares e será caridosamente
enfiado numa camisa de força.
Para muitos pensadores, o suicídio é o último ato de liberdade –ou, como
dizia Cioran, é precisamente pela certeza de que existe sempre uma
saída para a existência terrena que nos podemos comprometer com a vida.
No mundo de Zuckerberg, nem a mais íntima das escolhas humanas estará a
salvo.
Finalmente, o óbvio: com o Facebook, eleitores e eleitos estarão mais
próximos do que nunca, escutando-se mutuamente. Tradução: se "a tirania
da maioria" aprovar atos de barbaridade, o político, para ser eleito,
defenderá atos de barbaridade.
Os mecanismos de mediação que as democracias liberais sempre defenderam
(tribunais, parlamentos etc.) devem ser derrotados em nome da "vontade
geral", essa categoria sinistra que Rousseau legou aos seus discípulos.
Para sermos justos, nada do que escreve Zuckerberg é novidade. Ele
apenas repete as falácias típicas do pensamento globalista: os problemas
globais só podem ser enfrentados por uma espécie de "comunidade global"
–um eufemismo para "governo global".
Fatalmente, não passa pela cabeça de Zuckerberg que é precisamente esse
globalismo supranacional e transnacional que produz a reação populista
(e nacionalista) atualmente em cartaz.
O manifesto de Mark Zuckerberg é um documento megalômano e autoritário
escrito com a tinta ilusória das boas intenções. Se adolescentes assim
não têm noção do ridículo, o mundo já será um pouco melhor se os adultos
não perderem o deles.
-------------------
* Escritor português, é doutor em ciência política.
Escreve às terças e às sextas.
Fonte:
http://www1.folha.uol.com.br/colunas/joaopereiracoutinho/2017/02/1860523-manifesto-de-mark-zuckerberg-e-um-documento-megalomano-e-autoritario.shtml
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