quinta-feira, 23 de fevereiro de 2017

O LUGAR E O TEMPO

Paulo Tunhas*

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No fundo, o corpo da humanidade é, como a Lydia de Groucho Marx, uma imensa enciclopédia de tatuagens, cada uma delas exprimindo um conjunto de significações imaginárias, particulares e irredutíveis.

Há curiosidades e curiosidades. E é preciso, com alguma regularidade, passar das curiosidades rotineiras em relação àquilo que nos rodeia e nos envolve, como as coisas políticas, no sentido trivial da palavra, a outro tipo de curiosidades que nos ajudam a ver o mundo com maior distância. Não convém ser esquisito em relação a estas, embora haja indisputavelmente questões que são mais importantes do que outras. Por exemplo: como puderam os seres humanos criar sociedades tão diversas entre si, tão diferentes nas suas crenças e na sua organização, nos seus valores e no seu entendimento da vida? Foi uma questão que ocupou permanentemente o filósofo francês, de origem grega, Cornelius Castoriadis, e é uma interrogação à qual faz bem voltar. Ela permite-nos fugir à esfera mais restrita das nossas preocupações políticas habituais, que são ditadas pelos nossos juízos sobre o que consideramos mais perigoso e sobre como evitar tais perigos. De um certo modo, é verdade, as duas questões encontram-se ligadas entre si, mas a interrogação sobre a diversidade das sociedades humanas não nos conduz directamente a nenhum tipo de resposta particular no que respeita aos nossos medos e desejos políticos presentes, a não ser talvez num sentido muito derivado e vago.

Meio por acaso, apanhei-me a ler nestes últimos tempos alguma literatura sobre os astecas e sobre a sociedade vitoriana. E nestas coisas surge fatalmente, como pano de fundo da leitura, a pergunta persistente: “como era ser asteca?” e “como era ser um inglês da segunda metade do século XIX?”. Dito de outra maneira: que tipo antropológico era cada um dos dois? Para o leigo, pelo menos para mim, é o maior interesse da história, aquilo que nos promete um maior contacto com o desconhecido, e com um desconhecido que se sabe de saber certo ter existido realmente, mais longínquo ou mais próximo.

Como mandam os livros, o exercício da simpatia é de regra. Por isso, em relação aos astecas não basta o maravilhamento com a sua arte, nomeadamente a prodigiosa escultura, em que a morte e a violência vivem tornadas objecto de beleza. É preciso ir mais além, ir directamente ao horror, e, por exemplo, procurar viver de dentro o significado atribuído aos sacrifícios humanos. Como se sabe, eles eram praticados em dimensões extraordinárias, muito para além, parece, das conhecidas pelos Maias e pelos Incas. Tratava-se de, simbolicamente, alimentar os deuses, particularmente o Sol, que sem tais sacrifícios desapareceria. Mas o que é que isso quer dizer? Que sentido, real, concreto, vivido, possuia o ritual? E porque é que se acreditava que os sacrifícios das crianças eram particularmente favoráveis a Tlaloc, o deus da chuva? Há, é claro, uma razão vagamente compreensível: as crianças, além de berrarem mais, choravam mais, tornando assim supostamente a terra mais fértil. Mas não são tanto as razões, que podemos vagamente identificar ou não, que são misteriosas. É o gesto de nelas acreditar, a própria crença em si, vivida subjectivamente, que nos atrai para o radicalmente desconhecido. E o que possamos buscar como analogia contemporânea dessas crenças não nos faz avançar muito. Há uma irredutibilidade última daquela criação humana, daquele tipo antropológico, que quase tocamos mentalmente ao ler o que sobre ela se escreveu. Mas a irredutibilidade é, por definição, inapropriável. Não há contacto mental que nos permita verdadeiramente saber o que era ser asteca – como, embora num plano obviamente mais radical, não podemos nunca saber o que é ser um morcego.

Com os vitorianos a dificuldade é evidentemente menor. A proximidade no tempo, a possibilidade de identificação com uma tradição que em parte partilhamos, facilitam certamente a dimensão compreensiva da simpatia. Para mais, na sua complexidade e nas suas contradições, a sociedade vitoriana representa muito do melhor daquilo que, de acordo com os nossos actuais padrões, a humanidade até hoje nos ofereceu. O imperialismo, com os seus inevitáveis horrores (embora não o possamos reduzir a estes), não pode nunca fazer esquecer a progressiva e muito real institucionalização da preocupação com a sorte dos mais desfavorecidos e o desenvolvimento de uma ética, de uma criação moral particular, da qual somos sob muitos aspectos herdeiros. Além disso, a literatura permite-nos percepcionar as crenças, a forma como elas eram subjectivamente vividas, de um modo que nos é obviamente impossível no que respeita aos astecas. Resta que, tal como estes, os vitorianos representam um tipo antropológico particular, uma criação humana singular que nos é, em última análise, inapropriável. Sabemos deles muito mais, compreendemo-los muito melhor, somos deles muito mais próximos, herdámos a sua ciência e a sua literatura, muitos dos seus princípios políticos, podemo-nos em parte descobrir a nós próprios neles – mas subsiste também face a eles uma distância que introduz não apenas o sentimento de uma diferença, como, mais do que isso, de uma alteridade em relação a nós. As suas crenças, por próximas que fossem, em muitos aspectos, da nossas, não são as nossas crenças, e a questão da sua vivência subjectiva é para nós objecto de uma curiosidade que contém já em si a impossibilidade de ser inteiramente satisfeita.

Li no outro dia que Cesare Lombroso, o célebre criminologista italiano, que defendia, como se sabe, inspirando-se parcialmente em Darwin, a ideia segundo a qual os criminosos representam uma regressão hereditariamente motivada a fases primitivas da evolução humana, se interessou algum tempo pelas tatuagens. A tatuagem era para ele um traço característico do homem primitivo, subsistindo ainda hoje nos selvagens. E era também algo de regularmente observável nos criminosos. Com método e rigor, observou os lúgubres estados de espírito que as tatuagens exprimiam: “nascido sob uma má estrela”, “pouca sorte”, “vingança”, e por aí adiante. Não pretendo insistir no facto de que hoje em dia Lumbroso teria, quanto mais não fosse por razões quantitativas, a vida mais difícil do que no fim do século XIX. Apenas assinalar que a sua probidade científica o levou a constatar a existência de excepções. Encontrou, suponho que num braço, uma mensagem inequivocamente positiva: “Longa vida à França e às batatas fritas francesas!”.

No fundo, o corpo da humanidade é, como a Lydia de Groucho Marx, uma imensa enciclopédia de tatuagens, cada uma delas exprimindo um conjunto de significações imaginárias, para voltar a Castoriadis, particulares e irredutíveis, com tempos e lugares precisos. Com sorte, percebemos bem a tatuagem em que vivemos e as que nos são mais próximas (às quais chamamos a nossa tradição). As outras, podemos apenas adivinhá-las. E mesmo as mais próximas revelam sentidos que não são já nunca inteiramente os nossos.
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Nasci a 18 de Maio de 1960. Licenciei-me em Filosofia pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto e doutorei-me, também em Filosofia, pela École des Hautes Études en Sciences Sociales, Paris. Sou professor no Departamento de Filosofia da Faculdade de Letras da Universidade do Porto e investigador no Instituto de Filosofia da mesma Universidade.
Fonte:  http://observador.pt/opiniao/o-lugar-e-o-tempo/ 23/02/017

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