Paulo Tunhas*
No fundo, o corpo da humanidade é, como a Lydia de Groucho Marx,
uma imensa enciclopédia de tatuagens, cada uma delas exprimindo um
conjunto de significações imaginárias, particulares e irredutíveis.
Há curiosidades e curiosidades. E é preciso, com alguma
regularidade, passar das curiosidades rotineiras em relação àquilo que
nos rodeia e nos envolve, como as coisas políticas, no sentido trivial
da palavra, a outro tipo de curiosidades que nos ajudam a ver o mundo
com maior distância. Não convém ser esquisito em relação a estas, embora
haja indisputavelmente questões que são mais importantes do que outras.
Por exemplo: como puderam os seres humanos criar sociedades tão
diversas entre si, tão diferentes nas suas crenças e na sua organização,
nos seus valores e no seu entendimento da vida? Foi uma questão que
ocupou permanentemente o filósofo francês, de origem grega, Cornelius
Castoriadis, e é uma interrogação à qual faz bem voltar. Ela permite-nos
fugir à esfera mais restrita das nossas preocupações políticas
habituais, que são ditadas pelos nossos juízos sobre o que consideramos
mais perigoso e sobre como evitar tais perigos. De um certo modo, é
verdade, as duas questões encontram-se ligadas entre si, mas a
interrogação sobre a diversidade das sociedades humanas não nos conduz
directamente a nenhum tipo de resposta particular no que respeita aos
nossos medos e desejos políticos presentes, a não ser talvez num sentido
muito derivado e vago.
Meio por acaso, apanhei-me a ler nestes últimos tempos alguma
literatura sobre os astecas e sobre a sociedade vitoriana. E nestas
coisas surge fatalmente, como pano de fundo da leitura, a pergunta
persistente: “como era ser asteca?” e “como era ser um inglês da segunda
metade do século XIX?”. Dito de outra maneira: que tipo antropológico
era cada um dos dois? Para o leigo, pelo menos para mim, é o maior
interesse da história, aquilo que nos promete um maior contacto com o
desconhecido, e com um desconhecido que se sabe de saber certo ter
existido realmente, mais longínquo ou mais próximo.
Como mandam os livros, o exercício da simpatia é de regra. Por isso,
em relação aos astecas não basta o maravilhamento com a sua arte,
nomeadamente a prodigiosa escultura, em que a morte e a violência vivem
tornadas objecto de beleza. É preciso ir mais além, ir directamente ao
horror, e, por exemplo, procurar viver de dentro o significado atribuído
aos sacrifícios humanos. Como se sabe, eles eram praticados em
dimensões extraordinárias, muito para além, parece, das conhecidas pelos
Maias e pelos Incas. Tratava-se de, simbolicamente, alimentar os
deuses, particularmente o Sol, que sem tais sacrifícios desapareceria.
Mas o que é que isso quer dizer? Que sentido, real, concreto, vivido,
possuia o ritual? E porque é que se acreditava que os sacrifícios das
crianças eram particularmente favoráveis a Tlaloc, o deus da chuva? Há, é
claro, uma razão vagamente compreensível: as crianças, além de berrarem
mais, choravam mais, tornando assim supostamente a terra mais fértil.
Mas não são tanto as razões, que podemos vagamente identificar ou não,
que são misteriosas. É o gesto de nelas acreditar, a própria crença em
si, vivida subjectivamente, que nos atrai para o radicalmente
desconhecido. E o que possamos buscar como analogia contemporânea dessas
crenças não nos faz avançar muito. Há uma irredutibilidade última
daquela criação humana, daquele tipo antropológico, que quase tocamos
mentalmente ao ler o que sobre ela se escreveu. Mas a irredutibilidade
é, por definição, inapropriável. Não há contacto mental que nos permita
verdadeiramente saber o que era ser asteca – como, embora num plano
obviamente mais radical, não podemos nunca saber o que é ser um morcego.
Com os vitorianos a dificuldade é evidentemente menor. A proximidade
no tempo, a possibilidade de identificação com uma tradição que em parte
partilhamos, facilitam certamente a dimensão compreensiva da simpatia.
Para mais, na sua complexidade e nas suas contradições, a sociedade
vitoriana representa muito do melhor daquilo que, de acordo com os
nossos actuais padrões, a humanidade até hoje nos ofereceu. O
imperialismo, com os seus inevitáveis horrores (embora não o possamos
reduzir a estes), não pode nunca fazer esquecer a progressiva e muito
real institucionalização da preocupação com a sorte dos mais
desfavorecidos e o desenvolvimento de uma ética, de uma criação moral
particular, da qual somos sob muitos aspectos herdeiros. Além disso, a
literatura permite-nos percepcionar as crenças, a forma como elas eram
subjectivamente vividas, de um modo que nos é obviamente impossível no
que respeita aos astecas. Resta que, tal como estes, os vitorianos
representam um tipo antropológico particular, uma criação humana
singular que nos é, em última análise, inapropriável. Sabemos deles
muito mais, compreendemo-los muito melhor, somos deles muito mais
próximos, herdámos a sua ciência e a sua literatura, muitos dos seus
princípios políticos, podemo-nos em parte descobrir a nós próprios neles
– mas subsiste também face a eles uma distância que introduz não apenas
o sentimento de uma diferença, como, mais do que isso, de uma
alteridade em relação a nós. As suas crenças, por próximas que fossem,
em muitos aspectos, da nossas, não são as nossas crenças, e a questão da
sua vivência subjectiva é para nós objecto de uma curiosidade que
contém já em si a impossibilidade de ser inteiramente satisfeita.
Li no outro dia que Cesare Lombroso, o célebre criminologista
italiano, que defendia, como se sabe, inspirando-se parcialmente em
Darwin, a ideia segundo a qual os criminosos representam uma regressão
hereditariamente motivada a fases primitivas da evolução humana, se
interessou algum tempo pelas tatuagens. A tatuagem era para ele um traço
característico do homem primitivo, subsistindo ainda hoje nos
selvagens. E era também algo de regularmente observável nos criminosos.
Com método e rigor, observou os lúgubres estados de espírito que as
tatuagens exprimiam: “nascido sob uma má estrela”, “pouca sorte”,
“vingança”, e por aí adiante. Não pretendo insistir no facto de que hoje
em dia Lumbroso teria, quanto mais não fosse por razões quantitativas, a
vida mais difícil do que no fim do século XIX. Apenas assinalar que a
sua probidade científica o levou a constatar a existência de excepções.
Encontrou, suponho que num braço, uma mensagem inequivocamente positiva:
“Longa vida à França e às batatas fritas francesas!”.
No fundo, o corpo da humanidade é, como a Lydia de Groucho Marx, uma
imensa enciclopédia de tatuagens, cada uma delas exprimindo um conjunto
de significações imaginárias, para voltar a Castoriadis, particulares e
irredutíveis, com tempos e lugares precisos. Com sorte, percebemos bem a
tatuagem em que vivemos e as que nos são mais próximas (às quais
chamamos a nossa tradição). As outras, podemos apenas adivinhá-las. E
mesmo as mais próximas revelam sentidos que não são já nunca
inteiramente os nossos.
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* Nasci a 18 de Maio de 1960. Licenciei-me em
Filosofia pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto e
doutorei-me, também em Filosofia, pela École des Hautes Études en
Sciences Sociales, Paris. Sou professor no Departamento de Filosofia da
Faculdade de Letras da Universidade do Porto e investigador no Instituto
de Filosofia da mesma Universidade.
Fonte: http://observador.pt/opiniao/o-lugar-e-o-tempo/ 23/02/017
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