Fernando Abrucio*
O senador Romero Jucá é um dos mais bem-sucedidos expoentes do modelo
tradicional de se fazer política no Brasil. A principal característica
desse grupo é a capacidade de se adaptar, mantendo-se no poder quem quer
que seja o governante.
É onde Jucá sempre esteve desde a redemocratização, sendo líder do
governo de todos os últimos governos. Quando percebe que a barca vai
virar, muda de lado rapidamente, como bem demonstrou sua famosa conversa
com Sérgio Machado, na qual defendeu o impeachment da presidente Dilma
como forma de evitar o aprofundamento da Operação Lava-Jato. A luta
contra a investigação, no entanto, não acabou, e Jucá formulou uma nova
estratégia de defesa: a "filosofia da suruba".
Para quem perdeu o teor dessa proposição filosófica, retomo a definição
original dada pelo senador Jucá. Questionado em relação à possibilidade
de o Supremo Tribunal Federal restringir o chamado foro privilegiado
apenas aos eventuais crimes cometidos ao longo do mandato, o atual (e
eterno) líder do governo falou algo que com certeza já está na lista das
pérolas da sabedoria política brasileira: "Se acabar o foro, é para
todo mundo. Suruba é suruba. Aí todo mundo na suruba, não uma suruba
selecionada".
Antes que o leitor faça uma leitura apressada e óbvia, ressalto que não
se trata de uma filosofia simples de se entender. Aparentemente, Jucá
estava defendendo a igualdade entre todos, mas a sutileza filosófica
está em esconder o principal: é preciso evitar a mudança nas regras que
regem o foro privilegiado, particularmente protegendo os que precisam
hoje desse instituto jurídico. Tal como na conversa com Sérgio Machado, o
objetivo é salvar a si próprio e a seu grupo. Qualquer outra forma de
regulação que atrapalhe isso tem que levar "todo mundo junto". Trata-se
de um argumento diversionista, que ameaça a todos para manter os
privilégios dos de sempre.
A "filosofia da suruba" está na mesma linhagem do famoso ditado: "aos
amigos, tudo, aos inimigos, a lei". Essa autoproteção das elites tem
sobrevivido, mesmo que com menos força, ao processo de democratização do
país. Sim, a Justiça começou a chegar aonde antes nem passava por
perto, como políticos e empresários. Mas as formas como os políticos
governistas têm tentado minar, nas duas últimas semanas, a Lava-Jato são
evidentes. O foro privilegiado ao ministro Moreira Franco e a escolha
de um ministro do Supremo Tribunal Federal que veio do seio do governo
são os dois principais atos dessa estratégia de defesa. É preciso salvar
o grupo - especialmente a entourage pemedebista -, e se não for
possível, que caía a República como um todo, ameaçam os ilibados
senadores! Eis aí a moral da proposição defendida por Jucá.
Só foi possível enunciar a suruba como forma de salvação nacional porque
a elite política tradicional não está acostumada a lidar com a ideia
correta de igualdade. A trajetória histórica do Brasil foi marcada por
uma sociedade dividida entre senhores e escravos, cavalcantis e
cavalgados, marajás e barnabés, coronéis e currais eleitorais, padrinhos
e apadrinhados, em suma, nossa elite, nos dizeres de Joaquim Nabuco,
sempre almejou a desigualdade. A recente democratização do país, com
maior participação popular e aumento do controle institucional do poder,
está balançando as estruturas do modelo tradicional.
Mas estamos numa transição de costumes políticos, com dificuldades
inclusive de definir o poder de cada qual, a forma justa de exercer os
instrumentos democráticos. Os grupos sociais que ficaram indignados com
bobagens e malfeitos praticados pelo governo Dilma ficaram praticamente
calados com a "filosofia da suruba" que imperou no último mês. A Justiça
não tem, por ora, tratado igualmente os atores políticos. Considerar
que a posse de Moreira Franco é diferente da nomeação de Lula é, no
mínimo, um atentado à lógica, tanto a formal como a republicana. Os
promotores também, por vezes, expressam um viés nitidamente partidário e
noutros momentos expressam uma forma jacobina que, ao final, os
transforma em salvadores da Pátria, outra maneira de ferir a igualdade
entre os cidadãos.
A superação da "filosofia da suruba" e afins passa por definir mais
claramente os papéis dos Poderes e direitos dos cidadãos. A discussão
sobre o foro privilegiado é uma ótima oportunidade para definir as
estruturas democráticas e republicanas que nos regem. Nas origens, seu
propósito era defender a opinião dos eleitos, garantindo a pluralidade
das posições políticas e evitando a censura de visões sobre o poder.
Muitos outros países garantem esta proteção aos políticos em eventuais
ações ilegais feitas durante o mandato, evitando que o Poder público ou
uma Justiça estruturada partidariamente ou em torno dos poderosos - algo
que não é incomum no plano subnacional brasileiro - persiga
representantes populares. O que salta à vista no nosso modelo jurídico é
a extensão do foro privilegiado - o número de beneficiários - e sua
validade para além do mandato do beneficiado.
Na verdade, o modelo do foro privilegiado adotado por nós representa bem
a visão anti-igualitária que dá base à "filosofia da suruba". O número
de beneficiários não é amplo apenas para ajudar os "amigos do rei", mas
também para dar um poder mais monocrático e incontrastável ao
governante, que assim tem maior capacidade de garantir a proteção de sua
corte. Desse modo, esse modelo de foro privilegiado é capaz de
estruturar um grupo político em torno de uma lealdade lastreada na
inimputabilidade penal dos poderosos. E como diria o filósofo, quer
dizer, o senador Jucá, se for para mudar isso, que todos os outros sejam
prejudicados, para não sobrar ninguém no caos que daí surgirá. É a
enunciação de uma igualdade republicana a partir de seu contrário.
A proteção republicana e democrática do foro especial deve estar
vinculada ao mandato popular. Em outras palavras, protege-se o povo e
sua manifestação por meio do voto. Tudo aquilo que vier antes ou depois
do mandato não diz respeito à defesa da vontade do eleitor. Caso não se
faça essa diferença, de fato o acesso aos cargos públicos torna-se um
meio de se livrar de malfeitos e crimes os mais variados praticados
pelos políticos. A Lei da Ficha Limpa corrigiu parte desse problema, mas
não em sua totalidade.
Do mesmo modo que é necessário discutir as proteções indevidas à classe
política, o mesmo deve ser feito em relação a outros ocupantes de cargos
públicos, em particular aqueles que exercem funções no sistema de
Justiça. Não é possível que juízes condenados por corrupção ou por
qualquer outro crime tão grave continuem recebendo suas aposentadorias,
vivendo confortavelmente nesse retiro luxuoso. Isso é um tapa na cara de
todos os cidadãos brasileiros, um verdadeiro escárnio em relação à
ideia de igualdade de direitos. Este tipo de regalia de certas
corporações estatais é o que levava Joaquim Nabuco - novamente citando
esse profundo conhecedor de nossa alma - a dizer que o serviço público
era a vocação de todos os brasileiros, todos querendo seu naco de
privilégios.
Nenhuma pessoa ou grupo social deve ter direitos superiores aos demais
que não se justifiquem como uma proteção à própria sociedade. Exemplo: a
maioria dos países democráticos garante um grau de estabilidade ao
funcionalismo público como uma forma de proteger a população da
patronagem política e do patrimonialismo. Claro que isso não pode ser
absoluto, pois o que se pretende com esse instituto é a defesa dos
direitos da população de receber serviços públicos contínuos e de
qualidade. No Brasil, historicamente criamos "direitos adquiridos" e
"isonomias" como instrumentos da manutenção de privilégios de
determinadas camadas, sem que isso produza melhorias à vida coletiva.
Para lembrar de outro exemplar desse republicanismo ao contrário, a
aposentadoria de parlamentares era escandalosa, não só para as finanças
públicas, como ainda porque criava cidadãos "mais iguais do que os
demais".
Daí que a "filosofia da suruba" não se alimenta somente do velho poderio
dos "estadistas de Província" (mais uma definição de Nabuco) em suas
bases eleitorais. As próprias regras estatais protegem parcela dos
detentores de cargos públicos, eletivos ou não, transformando-os, na
célebre definição de Raymundo Faoro, em "estamento burocrático": um
grupo que só responde a si próprio e não à sociedade e ao público. Mudar
o estatuto do foro especial, bem como fazer com que outros atores
estatais respondam por seus atos - como os promotores públicos, um
controlador que não é controlado por nenhum outro -, é um passo decisivo
para instaurar princípios democráticos de igualdade de direitos e de
responsabilização do Poder Público, em seus vários ramos governamentais.
O desafio de mudar nossa sociedade, marcada pela cultura do privilégio,
para um rumo mais republicano vai exigir a alteração não só nas regras
institucionais. Será preciso transformar as práticas e retirar os grupos
e pessoas que se alimentam desse modelo. Infelizmente, cresce a reação
no sistema político contra tal modificação. O jogo não terminou, mas as
avenidas estão vazias agora e as panelas, silenciosas.
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*Fernando Abrucio, doutor em ciência política pela USP e coordenador do curso de administração pública da FGV-SP,
Fonte: - Eu & Fim de Semana | Valor Econômico 24/02/2017
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