sexta-feira, 24 de fevereiro de 2017

'Filosofia da suruba' serve aos poderosos

Fernando Abrucio*

O senador Romero Jucá é um dos mais bem-sucedidos expoentes do modelo tradicional de se fazer política no Brasil. A principal característica desse grupo é a capacidade de se adaptar, mantendo-se no poder quem quer que seja o governante.
É onde Jucá sempre esteve desde a redemocratização, sendo líder do governo de todos os últimos governos. Quando percebe que a barca vai virar, muda de lado rapidamente, como bem demonstrou sua famosa conversa com Sérgio Machado, na qual defendeu o impeachment da presidente Dilma como forma de evitar o aprofundamento da Operação Lava-Jato. A luta contra a investigação, no entanto, não acabou, e Jucá formulou uma nova estratégia de defesa: a "filosofia da suruba".
Para quem perdeu o teor dessa proposição filosófica, retomo a definição original dada pelo senador Jucá. Questionado em relação à possibilidade de o Supremo Tribunal Federal restringir o chamado foro privilegiado apenas aos eventuais crimes cometidos ao longo do mandato, o atual (e eterno) líder do governo falou algo que com certeza já está na lista das pérolas da sabedoria política brasileira: "Se acabar o foro, é para todo mundo. Suruba é suruba. Aí todo mundo na suruba, não uma suruba selecionada".

Antes que o leitor faça uma leitura apressada e óbvia, ressalto que não se trata de uma filosofia simples de se entender. Aparentemente, Jucá estava defendendo a igualdade entre todos, mas a sutileza filosófica está em esconder o principal: é preciso evitar a mudança nas regras que regem o foro privilegiado, particularmente protegendo os que precisam hoje desse instituto jurídico. Tal como na conversa com Sérgio Machado, o objetivo é salvar a si próprio e a seu grupo. Qualquer outra forma de regulação que atrapalhe isso tem que levar "todo mundo junto". Trata-se de um argumento diversionista, que ameaça a todos para manter os privilégios dos de sempre.
A "filosofia da suruba" está na mesma linhagem do famoso ditado: "aos amigos, tudo, aos inimigos, a lei". Essa autoproteção das elites tem sobrevivido, mesmo que com menos força, ao processo de democratização do país. Sim, a Justiça começou a chegar aonde antes nem passava por perto, como políticos e empresários. Mas as formas como os políticos governistas têm tentado minar, nas duas últimas semanas, a Lava-Jato são evidentes. O foro privilegiado ao ministro Moreira Franco e a escolha de um ministro do Supremo Tribunal Federal que veio do seio do governo são os dois principais atos dessa estratégia de defesa. É preciso salvar o grupo - especialmente a entourage pemedebista -, e se não for possível, que caía a República como um todo, ameaçam os ilibados senadores! Eis aí a moral da proposição defendida por Jucá.
Só foi possível enunciar a suruba como forma de salvação nacional porque a elite política tradicional não está acostumada a lidar com a ideia correta de igualdade. A trajetória histórica do Brasil foi marcada por uma sociedade dividida entre senhores e escravos, cavalcantis e cavalgados, marajás e barnabés, coronéis e currais eleitorais, padrinhos e apadrinhados, em suma, nossa elite, nos dizeres de Joaquim Nabuco, sempre almejou a desigualdade. A recente democratização do país, com maior participação popular e aumento do controle institucional do poder, está balançando as estruturas do modelo tradicional.
Mas estamos numa transição de costumes políticos, com dificuldades inclusive de definir o poder de cada qual, a forma justa de exercer os instrumentos democráticos. Os grupos sociais que ficaram indignados com bobagens e malfeitos praticados pelo governo Dilma ficaram praticamente calados com a "filosofia da suruba" que imperou no último mês. A Justiça não tem, por ora, tratado igualmente os atores políticos. Considerar que a posse de Moreira Franco é diferente da nomeação de Lula é, no mínimo, um atentado à lógica, tanto a formal como a republicana. Os promotores também, por vezes, expressam um viés nitidamente partidário e noutros momentos expressam uma forma jacobina que, ao final, os transforma em salvadores da Pátria, outra maneira de ferir a igualdade entre os cidadãos.
A superação da "filosofia da suruba" e afins passa por definir mais claramente os papéis dos Poderes e direitos dos cidadãos. A discussão sobre o foro privilegiado é uma ótima oportunidade para definir as estruturas democráticas e republicanas que nos regem. Nas origens, seu propósito era defender a opinião dos eleitos, garantindo a pluralidade das posições políticas e evitando a censura de visões sobre o poder. Muitos outros países garantem esta proteção aos políticos em eventuais ações ilegais feitas durante o mandato, evitando que o Poder público ou uma Justiça estruturada partidariamente ou em torno dos poderosos - algo que não é incomum no plano subnacional brasileiro - persiga representantes populares. O que salta à vista no nosso modelo jurídico é a extensão do foro privilegiado - o número de beneficiários - e sua validade para além do mandato do beneficiado.
Na verdade, o modelo do foro privilegiado adotado por nós representa bem a visão anti-igualitária que dá base à "filosofia da suruba". O número de beneficiários não é amplo apenas para ajudar os "amigos do rei", mas também para dar um poder mais monocrático e incontrastável ao governante, que assim tem maior capacidade de garantir a proteção de sua corte. Desse modo, esse modelo de foro privilegiado é capaz de estruturar um grupo político em torno de uma lealdade lastreada na inimputabilidade penal dos poderosos. E como diria o filósofo, quer dizer, o senador Jucá, se for para mudar isso, que todos os outros sejam prejudicados, para não sobrar ninguém no caos que daí surgirá. É a enunciação de uma igualdade republicana a partir de seu contrário.
A proteção republicana e democrática do foro especial deve estar vinculada ao mandato popular. Em outras palavras, protege-se o povo e sua manifestação por meio do voto. Tudo aquilo que vier antes ou depois do mandato não diz respeito à defesa da vontade do eleitor. Caso não se faça essa diferença, de fato o acesso aos cargos públicos torna-se um meio de se livrar de malfeitos e crimes os mais variados praticados pelos políticos. A Lei da Ficha Limpa corrigiu parte desse problema, mas não em sua totalidade.
Do mesmo modo que é necessário discutir as proteções indevidas à classe política, o mesmo deve ser feito em relação a outros ocupantes de cargos públicos, em particular aqueles que exercem funções no sistema de Justiça. Não é possível que juízes condenados por corrupção ou por qualquer outro crime tão grave continuem recebendo suas aposentadorias, vivendo confortavelmente nesse retiro luxuoso. Isso é um tapa na cara de todos os cidadãos brasileiros, um verdadeiro escárnio em relação à ideia de igualdade de direitos. Este tipo de regalia de certas corporações estatais é o que levava Joaquim Nabuco - novamente citando esse profundo conhecedor de nossa alma - a dizer que o serviço público era a vocação de todos os brasileiros, todos querendo seu naco de privilégios.
Nenhuma pessoa ou grupo social deve ter direitos superiores aos demais que não se justifiquem como uma proteção à própria sociedade. Exemplo: a maioria dos países democráticos garante um grau de estabilidade ao funcionalismo público como uma forma de proteger a população da patronagem política e do patrimonialismo. Claro que isso não pode ser absoluto, pois o que se pretende com esse instituto é a defesa dos direitos da população de receber serviços públicos contínuos e de qualidade. No Brasil, historicamente criamos "direitos adquiridos" e "isonomias" como instrumentos da manutenção de privilégios de determinadas camadas, sem que isso produza melhorias à vida coletiva. Para lembrar de outro exemplar desse republicanismo ao contrário, a aposentadoria de parlamentares era escandalosa, não só para as finanças públicas, como ainda porque criava cidadãos "mais iguais do que os demais".
Daí que a "filosofia da suruba" não se alimenta somente do velho poderio dos "estadistas de Província" (mais uma definição de Nabuco) em suas bases eleitorais. As próprias regras estatais protegem parcela dos detentores de cargos públicos, eletivos ou não, transformando-os, na célebre definição de Raymundo Faoro, em "estamento burocrático": um grupo que só responde a si próprio e não à sociedade e ao público. Mudar o estatuto do foro especial, bem como fazer com que outros atores estatais respondam por seus atos - como os promotores públicos, um controlador que não é controlado por nenhum outro -, é um passo decisivo para instaurar princípios democráticos de igualdade de direitos e de responsabilização do Poder Público, em seus vários ramos governamentais.
O desafio de mudar nossa sociedade, marcada pela cultura do privilégio, para um rumo mais republicano vai exigir a alteração não só nas regras institucionais. Será preciso transformar as práticas e retirar os grupos e pessoas que se alimentam desse modelo. Infelizmente, cresce a reação no sistema político contra tal modificação. O jogo não terminou, mas as avenidas estão vazias agora e as panelas, silenciosas.
--------------------------
*Fernando Abrucio, doutor em ciência política pela USP e coordenador do curso de administração pública da FGV-SP,
Fonte:  - Eu & Fim de Semana | Valor Econômico 24/02/2017
Imagem da Internet

Nenhum comentário:

Postar um comentário