Os selfies mais icónicos de 2016, agrupados por el pais.com.
Os comportamentos narcisistas nos rodeiam. Famosos que se exibem nas redes sociais, a obsessão pelas ‘selfies’. Fala-se em epidemia, mas, é assim tão preocupante?
Foi o belo e vaidoso Narciso, personagem da mitologia grega
incapaz de amar outras pessoas e que morreu por se apaixonar pela
própria imagem, que inspirou o termo narcisista. O conceito foi depois reinterpretado por Freud,
o primeiro que descreveu o narcisismo como uma patologia. Nos anos
setenta, o sociólogo Christopher Lasch transformou a doença em norma
cultural e determinou que a neurose e a histeria que caracterizavam as
sociedades do início do século XX
tinham dado lugar ao culto ao indivíduo e à busca fanática pelo sucesso
pessoal e o dinheiro. Um novo mal dominante. Quase quatro décadas
depois ganhou força a teoria de que a sociedade ocidental atual é ainda
mais narcisa.
Este
comportamento parece expandir-se como uma praga na sociedade
contemporânea. E não só entre os adolescentes e jovens que inundam as redes sociais.
“A desordem narcisista da personalidade –um padrão geral de
grandiosidade, necessidade de admiração e falta de empatia– continua
sendo um diagnóstico bastante raro, mas as características narcisistas
estão certamente em alta”, explica a psicóloga Pat MacDonald, autora do
trabalho Narcissism in the Modern World (narcisismo no mundo moderno). “Basta observar o consumismo galopante, a autopromoção nas redes sociais, a busca da fama a qualquer preço e o uso da cirurgia para frear o envelhecimento”, acrescenta em uma entrevista por telefone.
As
pesquisas realizadas a partir de 2009 por Jean Twenge, da Universidade
do Texas, são uma das principais referências para as hipóteses mais
catastróficas. Depois de estudar milhares de estudantes
norte-americanos, a psicóloga proclamou que esses comportamentos tinham
aumentado no mesmo ritmo que a obesidade desde 1980” e haviam alcançado
níveis de epidemia. Ela publicou dois livros –The Narcissism Epidemic (a epidemia do narcisismo), com Keith Campbell, da Universidade da Geórgia, e Generation Me (geração eu)—, nos quais afirma que os adolescentes do século XXI “se acham com direito a quase tudo, mas também são mais infelizes”.
Os
traços narcisistas nem sempre são fáceis de reconhecer e, sendo
moderados, não há por que serem um problema. São comportamentos
egoístas, pouco empáticos, às vezes um tanto exibicionistas, de pessoas
que querem ser o centro da atenção, ser reconhecidas socialmente, que
costumam resistir a admitir seus erros ou mentiras e que se consideram
extraordinárias (embora sua autoestima seja, na realidade, baixa). Um
exemplo extremo, contado por Twenge, é o de uma adolescente que em um reality
da MTV tenta justificar assim o bloqueio de uma rua para realizar sua
festa de aniversário, sem se importar que haja um hospital no meio: “Meu
aniversário é mais importante!”.
“A imagem conta mais do que o que fazemos, e queremos alcançar muitos sucessos sem esforço”, opina o psicanalista J.C. Bouchoux
Em
outras ocasiões este tipo de comportamento é mais sutil, mais comum e,
às vezes, mais prejudicial. É aquela pessoa que exige uma atenção
exagerada a seus comentários e problemas e, se não consegue, conclui que
é diferente dos outros e que nunca recebe o respeito que merece. Ou um
chefe encantador que, de repente, faz você se sentir culpado por um
projeto fracassado que era ideia dele. “Para tampar seus problemas, uma
pessoa com elevado nível de narcisismo costuma buscar uma ou duas
vítimas próximas, não precisa mais do que isso, mas pode tornar-lhes a
vida impossível”, afirma o psicanalista francês Jean-Charles Bouchoux,
autor de Les Pervers Narcissiques (os perversos narcisistas),
que acaba de ser traduzido para o espanhol e vendeu mais de 250.000
exemplares na França. “Há um aumento do narcisismo porque agora a imagem
conta mais do que o que fazemos e porque queremos ter muitos êxitos sem
esforço”, opina.
Proliferam
os casos na política –é difícil navegar na Internet sem ver o nome de
Donald Trump associado ao narcisismo– e na televisão. O assunto fascina,
como mostram os índices de audiência dos realities. Talvez a principal novidade sejam as redes sociais, lugar onde os millennials (nascidos entre 1980 e 1997) e os não tão millennials, os famosos e os não tão famosos, transformam o corriqueiro em algo extraordinário. Todos os dias são colocadas no Instagram 80 milhões de fotografias, com mais de 3,5 bilhões de curtidas: “Eu, comendo”, “Eu, com minha melhor amiga”, “Eu em um novo bar”. No Facebook,
milhões de usuários dão detalhes de sua vida ao mundo. A Internet está
nos convertendo não só em espectadores passivos, mas em narcisistas
ávidos pela notoriedade fácil, obcecados por conseguir amigos virtuais e
pelo impacto de nossos posts?
Convém ter muito cuidado com as fotos de si mesmo. Nem todos os que tiram selfies
são narcisistas, mas um estudo realizado por Daniel Halpern e Sebastián
Valenzuela, da Pontifícia Universidade Católica do Chile, concluiu que
as pessoas que tiraram mais fotos de si mesmas durante o primeiro ano da
pesquisa mostraram um aumento de 5% no nível de narcisismo no segundo
ano. “As redes sociais podem modificar a personalidade.
Autorretratar-se, quando se é narcisista, alimenta esse comportamento”,
explica, por telefone, Halpern. “Nas redes podemos nos mostrar como
queremos que nos vejam. Essa imagem perfeita que acreditamos que os
demais têm de nós pode alterar a que nós temos de nós mesmos”, adverte.
Ter impacto nas redes pode causar dependência e também temor (o medo do
vazio de uma postagem sem uma curtida sequer).
Além
disso, o narcisismo crescente movimenta dinheiro. Um recente relatório
do Bank of America Merrill Lynch calcula que o consumo relacionado com
os produtos que nos fazem sentir melhor e tornam possível uma aparência à
prova de selfies –chamam a isso de vanity capital–
movimenta no mundo 3,7 trilhões de dólares (11,65 trilhões de reais). A
lista inclui carros e outros artigos de luxo, cirurgias estéticas,
vinhos de qualidade, joias e cosméticos.
Como
chegamos até aqui? A inabalável corrida por conquistas pessoais exigida
de jovens e adultos explica parte da ânsia narcisista. “A sociedade é
hiperdemandante e hiperexigente. Agora, por exemplo, é preciso ter
muitos amigos, vivemos hiperconectados. Meu pai não tinha amigos, tinha
sua família, e era feliz”, explica Rafael Santandreu, psicólogo e autor
de Ser Feliz en Alaska, que vincula o narcisismo –e a frustração que pode provocar– com a depressão, a ansiedade e a agressividade.
Há
causas que nascem na infância. As teorias de Twenge tocaram em um nervo
cultural ao culpar pais e educadores por terem criado uma geração de
narcisistas dizendo-lhes o quanto são especiais, sem se importar com
suas conquistas. Um estudo europeu publicado em 2015 na revista PNAS
mostra que o narcisismo está relacionado a uma educação parental que
sobrevaloriza os filhos, haja ou não fundamento. “São elogiados em
excesso e, com o tempo, as crianças se consideram únicas”, explica um
dos autores, Eddie Brummelman, do Instituto de Pesquisa para o
Desenvolvimento Infantil, da Universidade de Amsterdam. “A autoestima é
confundida com narcisismo. O que é preciso cultivar é a autoestima, que
se consegue com carinho, apoio, atenção e limites”, acrescenta.
Quer
dizer que não se deve pensar grande? Não exatamente. Cultivar certo ego
saudável é benéfico. É o que afirma Craig Malkin, psicólogo clínico da
Escola de Medicina de Harvard. “Um pouco de narcisismo na adolescência
ajuda os jovens a suportar a tempestade e o ímpeto da juventude. Só as
pessoas que nunca se sentem especiais ou as que se sentem sempre
especiais são uma ameaça para elas mesmos ou o mundo. O desejo de se
sentir especial não é um estado mental reservado para imbecis ou
sociopatas”, afirma em Rethinking Narcissism (repensando o narcisismo).
Craig
integra o grupo que considera que a maioria dos estudos sobre
narcisismo não tem sido justo com os jovens e que os que falam de
epidemia exageram. O Inventário da Personalidade Narcisista, um
questionário básico para os pesquisadores do mundo todo, incluindo
Twenge, é falho, argumenta Craig. Entre outras coisas, esta ferramenta
considera negativo querer ser um líder ou alguém dizer que é decidido.
“As pessoas que gostam de dizer o que pensam ou que querem liderar são
claramente diferentes dos narcisistas, que costumam recorrer à
manipulação e à mentira.” Um exaustivo estudo publicado em 2010 em Perspectives on Psychological Science
tenta refutar a teoria da epidemia. Foi realizado com um milhão de
adolescentes nos EUA entre 1976 e 2006. Os pesquisadores encontraram
pouca ou nenhuma diferença psicológica entre os millennials e
as gerações anteriores, a não ser mais autoestima. Em uma tentativa de
relativizar o problema, o estudo é aberto com uma frase de Sócrates: “As
crianças de hoje [século V a. de C.] são umas tiranas. Contradizem seus
pais, engolem a comida e tiranizam os professores”.
De
um lado e outro do debate, não parece haver dúvida de que é
recomendável fugir das pessoas com elevados níveis de narcisismo.
Kristin Dombek resume isso bem em The Selfishness of Others (o
egoísmo dos outros), ensaio em que analisa a abundância no mundo virtual
anglo-saxão de informações relacionadas com os narcisistas, sobre como
reconhecê-los e enfrentá-los: “Um desses blogueiros dizia: o que uma
pessoa deve fazer quando conhece um narcisista? Colocar os tênis e sair
logo correndo”.
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Fonte: http://brasil.elpais.com/brasil/2017/02/03/cultura/1486128718_178172.html
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