O
leitor fique tranquilo, não falaremos aqui da crise entre os três
poderes da República. Dela a imprensa já tratou muito, com o habitual
escamoteamento (por exemplo, cadê a autópsia do piloto que matou Teori
Zavascki?) do principal, que uma reportagem sobre os remendos da
legislação trabalhista proposta por Temer, no Jornal da Band de
22 de dezembro, afirmou por meio da edição de som a imagem, que Paulo
Skaf, presidente da FIESP e candidato reincidente ao governo de SP, é a
encarnação dessa curiosa entidade chamada “o mercado” – Pato Amarelo, ora pro nobis.
Trataremos aqui de três poderes paralelos que ameaçam, a médio prazo, a
própria existência da República Federativa do Brasil como um Estado
soberano. E vamos do menor para o maior, não sem deixar a ressalva: a
primeira versão deste artigo foi escrita bem antes da “crise
penitenciária” da virada do ano.
O primeiro dos referidos poderes é um reflexo de vários fenômenos, da
crise de identidade da Igreja Católica frente ao mundo pós-moderno à
obsolescência de nosso modelo escolar, passando pela celebração
irresponsável (e não responsabilizável de modo algum) da imbecilidade
pelos grandes veículos de comunicação e pela avalanche tecnológica mais
recente, representada pelo acesso quase universal à Internet. Sim, tudo
isso, mas principalmente a condição de refém da incultura em que o povo
brasileiro foi mantido a partir de 1988, pois a Constituição “cidadã”
nada fez para garantir a principal cidadania, que é o exercício
consciente e informado de todas as dimensões da vida em sociedade.
Para quem não adivinhou, uma dica: a lembrança de que o pastor
evangélico Marcelo Crivella acaba de tomar posse como prefeito da
segunda maior cidade brasileira. Não é que o simples fato de pertencer a
uma igreja pentecostal seja impeditivo à boa política. É que se trata
da igreja Universal, modelo de um sem-número de seitas de nítida
inspiração mercantilista, a quais prosperam à custa dos incautos e
desesperados que a perversidade social brasileira e a babel
informacional pós-moderna multiplicam.
Se fosse fato isolado, nenhum problema. A democracia inclui, como
ônus para seus imensos bônus, a possibilidade de serem eleitos eventuais
cacarecos e tiriricas. Ocorre que Crivella pode representar o ponto de
inflexão de um fenômeno que já se desenha no Congresso há pelo menos
duas décadas. Entre nossos deputados e senadores, uma das bancadas que
mais crescem, em número e coesão, tem sido a evangélica. E essa bancada
está sempre do lado da política mais obscurantista, é só verificar os
anais da Câmara e do Senado.
Até aí, poderia replicar o leitor, não vejo maior perigo nos
evangélicos que nas bancadas da bala e do boi. Ocorre que estas, embora
vinculadas a interesses em geral retrógrados, não parecem ter um projeto
claro de poder. Os evangélicos têm, e isso já foi expresso tanto por
Crivella quanto por seu guru Edir Macedo, primeiro “bispo” a se
autoproclamar (agora virou moda, tem até “bispa”, pois poucos sabem o
feminino correto de bispo).
Ninguém ignora o que ocorre onde florescem as teocracias. A própria
Igreja Católica, hoje desempoderada a ponto de permitir que padres virem
dançarinos na TV ou coisas até piores, teve o poder absoluto por
séculos no Ocidente e se tornou o modelo universal, antes de Hitler,
Stálin e filhotes, de como uma sociedade moderna não deve ser.
Como este é um artigo catastrofista, não discutiremos o que poderia
haver de bom numa república dominada por pessoas que negam a evolução
das espécies, que desconhecem as principais descobertas da física
moderna, assim como avanços importantes no campo das liberdades
individuais como, por exemplo, a contracepção. Além disso, já deve ter
ficado claro que o articulista não teria capacidade de enxergar o lado
bom de uma teocracia evangélica. O importante é o seguinte: ela existe
como possibilidade concreta no horizonte brasileiro.
A segunda ameaça é menos insidiosa e mais barulhenta. Infelizmente
temos visto que ela está em processo avançado de estruturação como
Estado paralelo e tem plena consciência disso. Falamos do crime
organizado.
A propósito, um parêntese: o leitor já pensou que o índice oficial de
desemprego pode estar muito errado? No Brasil existem tantos bandidos
profissionais – sem falar dos políticos: bandido sem mandato, aquele
que, como escreveu o padre Vieira, “furta debaixo do seu risco” – que é
bem possível boa parte deles estar sendo contabilizada como
desempregados. Seria bom verificar, IBGE!
O contingente assustador de bandidos profissionais se torna mais
preocupante por uma razão singela: eles vivem armados e crescentemente
têm feito da vida nas grandes cidades (mas não só nelas) uma verdadeira
roleta-russa. Ora, nesse caso uma projeção para os próximos 20 anos
resulta alarmante; se a bandidagem armada crescer na taxa em que cresceu
desde os anos 1980, é perfeitamente possível pensar que podemos ter
nesse horizonte uma ditadura do crime organizado. Até os postes da
Light, como se dizia antigamente, sabem que a bandidagem se infiltra na
Justiça, no comércio e na política. Mas o mais assustador é a inércia do
Estado, que, por definição, deveria ter o monopólio do uso de armas.
Sem falar no estupor da opinião pública, que, aterrorizada pelo
noticiário, não inclui seriamente em suas preocupações a necessidade de
uma intervenção pesada do Estado – enquanto isso ainda é possível – para
deter a metástase social desse poder paralelo. Essa intervenção teria
que deixar de lado os discípulos contemporâneos de Rousseau, as polianas
moças e meninas que juram ser a sociedade, como um todo, culpada por
todas as perversidades de cada indivíduo se tornar capaz. Delegados de
polícia e políticos que se prezam como tais deveriam estudar com afinco o
romance Cidade de Deus, de Paulo Lins, que esclarece muito
mais sobre o fenômeno do tráfico do que a coleção de baboseiras
teórico-ideológicas sobre as quais está assentada a estupidíssima
política de combate às drogas, como tantos tiques nervosos que a
sociedade brasileira copia da norte-americana. Copiaremos Trump, também?
Número dois, então: a possibilidade de um Estado abertamente
criminoso, mais do que infiltrado por criminosos vivendo em escritórios
com ar-condicionado, existe concretamente, a julgar pelo desenvolvimento
inercial do fenômeno.
Mas quem será a besta número três, perguntará o assustado leitor
diante de tão apocalípticas projeções (veja-se que não são previsões,
pois o tempo dos profetas parece ter passado)? Deixemos que os números o
digam.
No orçamento da União para 2017, as despesas com educação, tidas por
alguns (tucanos à frente, claro) como excessivas, somarão 115 bilhões,
de acordo com a proposta enviada pelo governo ao Congresso. As despesas
da saúde somarão 85 bilhões. Preste atenção: BILHÕES de reais.
Vamos agora a outra rubrica do orçamento. As despesas com juros e o
serviço da dívida federal somarão 1,4 TRILHÃO. Entendeu bem? TRILHÃO.
Quer dizer, o dinheiro repassado pelo governo aos rentistas, penosamente
acumulado à custa das lamentações do pato da FIESP, será nada menos que
sete vezes o valor aplicado em saúde e educação. Quer dizer, o Estado
existe para promover o bem de todos, mas a fatia desse bem que toca aos
bancos e demais especuladores, aquela gente que só produzia papéis
carimbados e agora produz impulsos eletrônicos, está chegando perto da
METADE de tudo o que gasta o governo em um ano.
Os banqueiros e assemelhados, que no momento são proprietários do
Ministério da Fazenda personificado por Henrique Meireles (Serra fica
voando em círculos, como se fosse um urubu esperando a presa fechar os
olhos), já chegaram a ser mais que um Estado paralelo: são a metade mais
um da Brasil Sociedade Anônima, em que os anônimos de verdade terão, no
desejo dos moderníssimos Temer, Eliseu Padilha e Moreira Franco, que
trabalhar meio século para se aposentar.
Alguém já disse que fundar um banco é muito mais criminoso do que
assaltar um. Os pastores comerciantes e políticos, voltando ao que
escreveu o Padre Vieira, bem que têm o seu talento; R.R. Soares, por
exemplo, é tão impagável quanto Sílvio Santos, esse espantoso artista
que faz dinheiro até com a própria senilidade. Produzem sobretudo
enganação, mas ainda não obrigam ninguém a segui-los à força. Os chefes
do tráfico e das milícias, por sua vez, arriscam-se a cada minuto a ser
atravessados por um tiro de fuzil. Em comum, entre eles: seu poder tem
crescido como que em progressão aritmética.
Já os banqueiros, pela própria lógica da cobrança de juros, se
apropriam em progressão geométrica do que produz o conjunto da
sociedade. Quem (e como?) vai impedir esses assaltantes legalizados de
mandar no Estado brasileiro ao ponto de escancarar que existimos apenas
para que eles fiquem a cada segundo mais ricos?
Não pergunte aos principais veículos de comunicação brasileiros. O
principal anunciante de cada um deles costuma ser um grande banco.
* ELOÉSIO PAULO é professor da Universidade Federal de Alfenas (MG) e autor dos livros Os 10 pecados de Paulo Coelho (2007) e Loucura e ideologia em dois romances dos anos 1970 (2014)Fonte: https://espacoacademico.wordpress.com/2017/02/01/tres-poderes-que-ameacam-a-republica/
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