José Eustáquio Diniz Alves*
“A morte é o agente de mudança da vida” (Steve Jobs)
[EcoDebate]
O biogerontologista inglês Aubrey de Grey costuma dizer que a primeira
pessoa que vai chegar aos 150 anos já nasceu e que está próximo o dia em
que nós, humanos, viveremos 1.000 anos. Em entrevista à Folha de São
Paula, no dia 30/01/2017, ele reafirmou suas ideias de que o
envelhecimento é uma doença que pode ser vencida pela ciência.
Porém, por incrível que pareça, há quem vá além e considere estas
previsões pessimistas. O cientista Raymond Kurzweil vai mais longe e
prevê que poderemos nos tornar imortais e atingir a vida eterna na
Terra. A palavra longevidade será substituída pela eternidade. O humano
pelo pós-humano ou transumano. Será?
Ray Kurzweil é um escritor que se encaixa na denominação de tecnófilo
cornucopiano. Ele é autor do livro The Singularity is Near (A
Singularidade está próxima), acredita na primazia da tecnologia e na
junção da Inteligência Artificial (IA) com a biotecnologia, a genética, a
nanotecnologia, a revolução digital e a robótica para modificar
completamente a vida e a forma de viver no Planeta. Ele considera que
haverá um ponto de mutação definido como Singularidade, termo emprestado
da física, que corresponde a um ponto em que acréscimos finitos no
tempo conduzirão a um potencial tecnológico infinito. O desenvolvimento
ocorreria sem restrição e a humanidade entraria em uma nova fase
histórica. Ele diz:
“A Singularidade é um termo utilizado para definir um período
futuro durante o qual a vida humana será irreversivelmente transformada e
representará o culminar da fusão do pensamento biológico e da nossa
existência com a tecnologia, resultando em um mundo que ainda é humano,
mas transcenderá as nossas raízes biológicas. Não haverá distinção,
pós-Singularidade, entre homem e máquina ou entre o físico e o virtual” (Kurzweil, 2006).
Kurzweil também escreveu o livro “A medicina da imortalidade”, onde
defende a ideia da miscigenação entre o ser humano e as máquinas. Ele
explica que em primeiro lugar haverá um aumento dramático da
longevidade:
“No meu livro, refiro a três grandes revoluções sobrepostas a que
dei o nome de “GNR”, que significa Genética, Nanotecnologia e Robótica.
Cada uma delas propicia um aumento dramático da longevidade humana,
entre outros impactos significativos. Nós estamos neste momento na
primeira fase da revolução genética – também chamada biotecnologia. A
biotecnologia oferece os meios para alterar os genes: não apenas bebês
programados, mas natalidades programadas. Seremos igualmente capazes de
rejuvenescer todos os tecidos e órgãos do nosso corpo transformando as
células da pele em versões jovens de qualquer outro tipo de célula.
Neste momento, novos desenvolvimentos fármacos têm como objetivo o
combate de etapas importantes da arteriosclerose (a causa das doenças de
coração), a formação de tumores cancerígenos, e os processos
metabólicos que estão na base das doenças mais importantes e do processo
de envelhecimento. A revolução biotecnológica já está na sua fase
inicial e atingirá o seu pico na segunda década deste século
(2010-2020), um ponto a partir do qual seremos capazes de ultrapassar a
maior parte das doenças e retardar dramaticamente o processo de
envelhecimento. Seguir-se-á a revolução da nanotecnologia, que atingirá a
sua maturidade durante os anos vinte (2020s). Com a nanotecnologia,
seremos capazes de ir além dos limites da biologia, e substituir o nosso
atual ‘corpo humano versão 1.0’ com um substancial aperfeiçoamento
versão 2.0 fornecendo um aumento radical dos anos de vida” (Kurzweil apud Mito & Realidade, 2010).
Para Kurzweil a junção da Singularidade com os avanços da medicina
tornará possível a conquista da imortalidade, por meio da “clonagem
terapêutica”:
“Outra importante linha de ação é desenvolver novamente as nossas
próprias células, tecidos, e até órgãos inteiros, e introduzi-los nos
nossos corpos sem cirurgia. Um dos maiores benefícios desta técnica de
‘clonagem terapêutica’ é que seremos capazes de criar estes novos
tecidos e órgãos de versões das nossas células que também já foram
tornadas mais jovens – o campo emergente da medicina do
rejuvenescimento. Por exemplo, poderemos ser capazes de criar novas
células do coração a partir de células da sua pele e introduzi-las no
seu sistema através da corrente sanguínea. Com o passar do tempo, as
suas células do coração são substituídas pelas novas células, e o
resultado é um “jovem” coração rejuvenescido com o seu próprio DNA” (Kurzweil apud Mito & Realidade, 2010).
Assim, alcançando a imortalidade, deixaríamos de ser humanos para nos
tornar uma “espécie superior”. Daí surgiu um movimento intelectual
visando transformar a condição humana por meio da criação de tecnologias
aperfeiçoadas para aumentar as capacidades intelectuais, físicas e
psicológicas das pessoas. Com os novos desenvolvimentos tecnológicos, as
doenças e as limitações humanas seriam superadas e novas capacidades
surgiriam, abrindo a possibilidade de transformação total dos novos
seres, que passariam a ser pós-humanos ou transumanos.
Outro cientista singularitano, David Orban, que foi presidente da “Humanity+” diz que “os
avanços tecnocientíficos vão permitir modificar ad libitum o corpo e a
mente do ser homem, deixando em segundo plano a evolução biológica. A
ideia fundamental é que os seres humanos serão, um dia, capazes de se
redesenharem a si próprios. Desse modo, poderão escolher o tipo de
organismo em que pretendem transformar-se: um ciborgue (formado por
matéria viva e dispositivos eletrônicos), um siliborgue (organismo
criado com silício a partir de um DNA artificial), um simborgue
(indivíduo reencarnado que reside num meio interligado) ou qualquer
outra criatura imaginável que a tecnologia permita congeminar” (Super Interessante, 2011).
Para as pessoas que acreditam na Singularidade, no Transumanismo e na
vida eterna, mas vão morrer antes desta “revolução tecnológica” e desta
suposta inflexão no conceito de humano, a alternativa é recorrer à
criogenia. A criogenia é um ramo da físico-química que estuda
tecnologias para a produção de temperaturas muito baixas (abaixo de
-150°C). Um paciente mantido por tempo indeterminado em “cryostasis“.
Algumas instituições acreditam no poder de preservação da criogenia e
estão realmente colocando isso em prática. A promessa da criogenia é que
um corpo criopreservado limita danos em todas as estruturas e preserva
de forma que possa voltar à vida. Ou seja, um corpo preservado em
nitrogênio líquido poderia, em tese, ser ressuscitado no futuro e passar
do estado de humano para transumano.
Evidentemente, são muitas as críticas à Singularidade, à criogenia e
ao transumanismo. Para Kurzweil, a Lei de Moore (segundo a qual o número
de transístores de um chip duplica a cada 18 meses) é um exemplo do que
vai acontecer com outras tecnologias. Mas os críticos argumentam que
não se pode generalizar a Lei de Moore e nem superar os limites da
ecologia. Entre os críticos, a socióloga Débora Danowski e o antropólogo
Viveiros de Castro (2014) consideram que a ideia de uma autofabricação
do homem no futuro e de seu ambiente pela eugenética e pela síntese
tecnológica de uma nova Natureza está mais para o campo da ficção
científica do que da realidade.
O cientista político Francis Fukuyama – aquele que teorizou sobre o
fim da história – é um crítico da ideia do transumanismo. Em artigo da
revista Foreign Policy (23/10/2009) ele pergunta sobre o que vale
aumentar a longevidade e até atingir a imortalidade se o ser humano não
consegue vencer os seus defeitos e não consegue respeitar a natureza e
os ecossistemas. Além disto, a ideia de fazer uma “raça superior”
(transhumana) vai contra os princípios liberais e a ideia de que todos
os indivíduos são iguais perante a lei.
Já Nathan Pensky (03/02/2014) diz que Ray Kurzweil é uma pessoa muito
inteligente, mas que mistura algumas ideias sólidas com outras malucas:
“É como se você tivesse um monte de comida muito boa misturada com
fezes de cachorro sem poder distinguir o que é bom e o que é ruim”.
As evidências empíricas mostram que a possibilidade de um aumento
ilimitado da longevidade é praticamente impossível. Um estudo publicado
na revista Nature (05/10/2016) por Xiao Dong, Brandon Milholland e Jan
Vijg, afirma que existe um teto para o tempo máximo da vida humana.
Dificilmente alguém seria capaz de bater o recorde da pessoa que viveu
mais tempo na história, que foi a francesa Jeanne Calment que morreu com
a idade recorde de 122 anos e 164 dias. Os avanços médicos podem ter
aumentado a expectativa e a qualidade de vida, mas a longevidade
dificilmente passa de 115 anos. Para superar este limite seria preciso
mudar toda a estrutura genética da espécie humana. O processo de
envelhecimento é tão complexo que não será possível mudar
substancialmente o limite da vida humana. O estudo conclui dizendo que o
tempo de vida máximo dos seres humanos é mais ou menos fixo e está
sujeito a condicionantes naturais. A imortalidade não passa de uma
ilusão.
Artigo de Anne Case and Angus Deaton, publicado na PNAS (2016),
mostra um aumento acentuado na mortalidade de todas as causas de homens
brancos de meia-idade não-hispânicos e mulheres nos Estados Unidos entre
1999 e 2013. Esta mudança inverteu décadas de progresso na mortalidade e
fez diminuir a esperança de vida. Este fato é um que vai na contramão
da singularidade tecnológica.
Mas independentemente se os avanços tecnológicos vão prolongar ou não
a longevidade, existem questões filosóficas que precisam ser
consideradas. Jorge Luís Borges, no conto “Os Imortais”, descreve o
tédio mortal sentido pelos que nunca morrem, pois, o fato de sermos os
únicos a sabermos que vamos morrer é um estímulo que dá sabor e
intensidade à vida. Além disso, para ele, é uma grande generosidade
saber sair de cena para que novos seres nasçam. No livro “As
Intermitências da Morte”, romance de José Saramago, a morte é abolida de
um país, para rechaçar o desejo da imortalidade.
A glorificação da ciência e da tecnologia já foi questionada, em
1818, por Mary Shelley, nada menos que a filha do iluminista William
Godwin e da feminista Mary Wollstonecraft, quando aos 18 anos escreveu o
livro: “Frankenstein, o Prometeu Moderno”, mostrando como a
racionalidade e a tecnologia, em vez de libertarem o ser humano, podem
simplesmente criar monstros. Já na maturidade, Mary Shelley escreveu o
livro “The last man”, tratando não da imortalidade, mas do fim da
humanidade.
Simone Beauvoir, no livro “Todos os homens são mortais” nos dá uma
lição sobre a angustia e o desespero de ser imortal. Ela conta a
história de Fosca, rei de Carmona, nascido em 1279, bebe um elixir da
imortalidade. Ao longo do romance ele vai mostrando as vantagens da
imortalidade, suas conquistas e o desejo de fazer algo importante para a
humanidade. Mas depois de passar por guerras e períodos de paz, de
progresso e declínio, de amar e odiar, ele se pergunta sobre o sentido
da vida. Narrando a vida de um imortal, Beauvoir questiona os temas
inerentes à natureza humana, tais como a ambição, o poder, a
imortalidade, o prazer, o destino e a transcendência, mostrando que a
imortalidade não é tão boa quanto parece.
Os adeptos da Singularidade tecnológica, da criogenia e do
Transumanismo são considerados gênios e futuristas por alguns. Mas há
muitas questões profundas a serem consideradas sobre o aumento da
longevidade e a imortalidade. Este é um longo debate. Mas, de início,
considero que todos deveríamos aprender, filosoficamente, com o grande
inovador tecnológico que foi Steve Jobs, quando disse, em discurso, em
2005, para formandos da Universidade de Stanford:
“Lembrar que estarei morto em breve é a ferramenta mais
importante que já encontrei para me ajudar a tomar grandes decisões.
Porque quase tudo – expectativas externas, orgulho, medo de passar
vergonha ou falhar – caem diante da morte, deixando apenas o que é
importante. (…) a morte é o destino que todos nós compartilhamos.
Ninguém nunca conseguiu escapar. E assim é como deve ser, porque a morte
é muito provavelmente a principal invenção da vida. É o agente de
mudança da vida. Ela limpa o velho para abrir caminho para o novo”.
Referências:
Raymond Kurzweil. The Singularity Is Near: When Humans Transcend Biology, Penguin Books, 2006
Nathan Pensky. Ray Kurzweil is wrong: The Singularity is not near. Pando, February 3, 2014
Mito & Realidade. A imortalidade está a duas décadas de distância?, abril 28, 2010
Super Interessante. E depois de nós? O avanço imparável do trans-humanismo, SUPER 155, Março 2011
Débora Danowski e Eduardo Viveiros de Castro. Há mundo por vir? Ensaio sobre os medos e os fins. Ed. Cultura e Barbárie, 2014
Francis Fukuyama. Transhumanism, Foreign Policy, October 23, 2009
Sonia Arrison. 100 Plus: How the Coming Age of Longevity Will Change
Everything, From Careers and Relationships to Family and Faith, Basic
Books, 2011
Simone Beauvoir. Todos os homens são mortais. Difusão Européia do Livro, 1965
Steve Jobs. Discurso em Stanford, 2005 http://www.youtube.com/watch?v=yw5fuDMblYg
Xiao Dong, Brandon Milholland & Jan Vijg. Evidence for a limit to
human lifespan, Nature, 05 October 2016
http://www.nature.com/nature/journal/vaop/ncurrent/full/nature19793.html
Anne Case and Angus Deaton. Rising morbidity and mortality in midlife among white non-Hispanic Americans in the 21st century, PNAS, vol. 112 no. 49, 2016
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* José Eustáquio Diniz Alves,
Colunista do Portal EcoDebate, é Doutor em demografia e professor
titular do mestrado e doutorado em População, Território e Estatísticas
Públicas da Escola Nacional de Ciências Estatísticas – ENCE/IBGE;
Apresenta seus pontos de vista em caráter pessoal. E-mail:
jed_alves@yahoo.com.br
FONTE: https://www.ecodebate.com.br/2017/02/08/longevidade-singularidade-criogenia-e-transumanismo-artigo-de-jose-eustaquio-diniz-alves/
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