Filósofo polonês morto em 2017 falou sobre política, tecnologia e como enxergava o futuro
Daniel Augusto*
,
Colaboração para o Estado de S. Paulo
Colaboração para o Estado de S. Paulo
18 Fevereiro 2017
Vídeo da entrevista com Zygmunt Bauman, da série Incertezas Críticas, produzido pela Grifa Filmes.
Quando eu e o diretor de fotografia Jacob Solitrenick tocamos a
campainha da casa de Zygmunt Bauman, já estávamos com todo o equipamento
pronto para iniciar a entrevista. Ao entrarmos, porém, o sociólogo não
deixou que começássemos a trabalhar: fez questão de nos servir um lanche
com frutas, papear um pouco, como quem reduz a velocidade a que estamos
acostumados no cotidiano, abre uma brecha de humanidade na
produtividade. Não que ele estivesse sem o que fazer: precisava arrumar
as malas para uma conferência fora do país, tinha que deixar uma lista
de e-mails respondida, entre outros assuntos. Mas não pôde deixar de
abrir uma pausa na urgência, um desses gestos pequenos e gigantes ao
mesmo tempo, lição de adequação entre o pensamento e o cotidiano: não
basta criticar o tempo que vivemos, é preciso vivê-lo de outra maneira.
Bauman nasceu na Polônia em 1925, mas residia na Inglaterra, onde
foi professor titular da Universidade de Leeds. No decorrer da sua
trajetória, publicou dezenas de livros, traduzidos para diversas
línguas. Aliava uma vasta observação do mundo contemporâneo com uma
escrita acessível ao leitor não-especializado: seu conceito de
modernidade líquida, por exemplo, suscitou debates nas universidades,
mas também na imprensa, nas artes, assim por diante.
Fui entrevistar o sociólogo em junho de 2012 por conta de uma série de televisão que escrevi e dirigi, Incertezas Críticas,
produzida pela Grifa Filmes. Meu objetivo era inserir determinados
aspectos do nosso presente num horizonte mais amplo: isto é, apresentar
algumas possibilidades de análise e interpretação de temas como a crise
econômica, a internet, a arte contemporânea, entre outros, de modo a
sugerir quadros conceituais menos fixados na urgência das últimas
notícias. Nesse sentido, a conversa com Bauman era promissora: ao longo
da sua obra, existe uma variedade de assuntos notável, que caminha lado a
lado com uma ambição interpretativa alargada.
Ao saber da morte de Bauman no último dia 9, decidi tornar
público parte do material da entrevista, ainda inédita. Como se verá,
muito do que foi dito naquela tarde ajuda a explicar o mundo que vivemos
hoje.
Como você relaciona crise econômica e modernidade líquida?
A incerteza é a única certeza que temos. Não sabemos mais como planejar
a longo prazo e, quando planejamos, não temos certeza se o plano vai se
concluir. Isso se aplica ao nível individual e ao nível social. A crise
econômica é só um dos exemplos dessa instabilidade.
Como isso se dá?
Poder é a capacidade de
realizar as coisas. Política é a capacidade de decidir quais coisas
serão realizadas. As duas coisas, poder e política, até 50 ou 60 anos
atrás, andavam juntas, dentro do quadro dos Estados-nações. As pessoas
podiam estar à direita, esquerda ou no centro do espectro político, mas
todas concordavam em um ponto: o que fosse decidido, as instituições
políticas do Estado tinham o poder e os instrumentos para realizar.
Então, a questão toda era quem estava sentado no palácio presidencial ou
no comando do governo. Uma vez lá dentro, poderiam fazer política de um
jeito ou de outro. Tinham os meios, os instrumentos e a capacidade para
fazer isso. Não funciona mais assim.
Como funciona?
Na Europa, temos governos
que trabalham com algo que, na área de sociologia, chamamos de double
bind. Trata-se de uma pressão dupla em direções extremamente opostas.
Por um lado, eles estão expostos ao eleitorado, porque são reeleitos ou
tirados do poder a cada 3 ou 4 anos. Portanto, precisam escutar o que o
povo quer. Por outro lado, os governos sofrem a pressão extraterritorial
de finanças, capitais, bancos internacionais, corporações etc. Estes
não dependem do eleitorado, não foram eleitos e não ligam nem um pouco
para qual será a reação da população. Querem que o governo deixe de
escutar o povo e faça as vontades dos acionistas pois, para eles, a
economia equivale aos interesses dos acionistas, isto é, destes que
podem ganhar bilhões do nada, ou destruir bilhões, em um dia. São
pressões opostas. O resultado disso é que o governo tem opções
limitadas.
As crises tendem a se multiplicar?
Eu não
acho que essa situação de desordem econômica, pois é difícil chamar
isso de ordem, poderia sobreviver sem uma crise constante. Deve haver
algum lugar onde os capitais possam se reabastecer ou rejuvenescer,
sugando os espólios de outros locais. Então, o que é característico do
sistema mundial hoje, em tempos de modernidade líquida, é a constante
mudança ou flutuação de poder econômico de um lugar para outro. A
situação é essa: por um lado, há poderes que estão livres de qualquer
controle político; por outro lado, há políticos que sofrem com a falta
de poder. Temos poder sem política e política sem poder.
Como isso afeta cada um de nós?
Até
recentemente, os Estados tinham a obrigação de prover as necessidades
básicas da vida. Mas, por causa do déficit de poder dos governos
nacionais, eles não conseguem mais prover. Portanto, os governos
precisam deixar de lado as funções que tinham como obrigações. Eles tem
duas formas de deixar de lado essas funções. Uma delas é privatizar. A
outra forma é rebaixá-las a um nível que, após Anthony Giddens, chamo de
política da vida real. Na política da vida real, eu, você e todas as
pessoas, somos ao mesmo tempo parlamento, governo e judiciário. As
pessoas têm que decidir o que fazer, executar e julgar. Assim, diversas
funções que eram antes realizadas por uma comunidade, agora estão nos
ombros dos indivíduos.
Quais as consequências dessa política da vida real?
Por um lado, é um grande avanço de liberdade individual. Em princípio,
você pode ser o dono da sua própria vida. É o que chamo de indivíduos de
jure: nós somos indivíduos por decreto. Assim, goste ou não, você é
culpado por suas derrotas. Se você fracassa, não pode culpar a ninguém. O
que, é claro, afeta sua autoestima. Se os seus pais sofressem de
insônia, era sobretudo porque tinham medo de não estar suficientemente
bem conformados aos padrões. Mas, caso você sofra de insônia, não é por
medo de desviar da norma. Pelo contrário, você pode agir como quiser.
Você pode ter medo, talvez, de ser incapaz de realizar algo. Sentir que
não tem os recursos, o talento, a capacidade ou a energia suficientes
para ser quem gostaria de ser. Supostamente, você é livre para escolher
sua identidade, mas na prática você não consegue realizar isso.
Portanto, você é um indivíduo de jure, mas não é um indivíduo de fato.
Essa situação traz sentimentos muito desagradáveis, que são muito comuns
no mundo hoje. Um deles é o sentimento de ignorância constante, de não
saber o que vai acontecer. Outro sentimento é o de impotência, isto é,
mesmo que eu saiba exatamente qual o perigo, não posso fazer nada para
impedir. Não tenho o poder para isso. A combinação desses sentimentos,
ignorância e impotência, resulta no de humilhação, que é um golpe pesado
na autoconfiança e na autoestima. De acordo com as estatísticas, a
depressão é a doença mais comum do momento. Muita gente fica deprimida
em algum momento. A depressão é o produto dessa sensação de não ter
controle, de estar abandonado. Às vezes, chamamos isso de exclusão. Nós
somos excluídos de onde a ação acontece, de onde a vida real é vivida.
Não conseguimos chegar lá.
Nessa perspectiva, dá para pensar em utopia?
Viver nessas circunstâncias exige que as pessoas tenham nervos muito
fortes. Que tenham determinação e também que pensem em maneiras de
transformar o mundo em que vivem. É muito difícil de propor isso e mais
ainda de conseguir. As utopias, há 50 ou 60 anos, eram utopias sobre uma
sociedade perfeita, na qual cada pessoa teria um lar com segurança e
todos estariam mais ou menos satisfeitos com a vida. Ter uma boa vida
significava viver dentro de uma boa sociedade, por causa dela e graças a
ela. Hoje, essa utopia não existe mais. Utopia, como muitas outras
coisas na vida, foi privatizada. A utopia privatizada não é sobre uma
sociedade melhor, mas sobre indivíduos melhores, cada um em suas
situações individuais, dentro de uma sociedade muito ruim. Sobre a
sociedade, dizem que não dá para mudar. Mas o que as pessoas podem fazer
é cuidar de si mesmas, de seus entes queridos, sua família, cônjuge, o
que seja. Encontrar um lugar confortável em um mundo essencialmente
desconfortável.
Você pode dar um exemplo de utopia privatizada?
O Facebook. Nele, você pode ter um mundo imaginário, on line, que não
aparece na realidade offline. Você pode ser quem você quiser online.
Pode ter várias identidades diferentes, pode fingir ser algo que não é,
pode realizar todos os seus sonhos. É uma maneira de fugir das duras
exigências e asperezas do mundo offline. Uma outra reação é buscar algum
tipo de mudança na sociedade como um todo. Por exemplo, os movimentos
Occupy.
Como você vê o futuro a partir dessas alternativas?
Eu não sou pessimista nesse sentido. Porque toda árvore de carvalho de
cem anos começa com uma muda apenas. E, então, se torna um carvalho
majestoso em cem anos. Todas as maiorias na história começaram como
minorias. Se não fosse assim, ainda estaríamos no período paleolítico:
se ninguém quisesse sair da caverna, ainda estaríamos lá. Aqueles que
decidiram sair, eram minoria. Então, cedo ou tarde, o ser humano vai
encontrar soluções, mudar os hábitos, mudar a si próprio e começar a
viver de outra maneira. Tenho quase certeza disso, mas o problema que me
preocupa é quanto tempo isso levará para acontecer.
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Fonte: http://alias.estadao.com.br/noticias/geral,a-utopia-foi-privatizada-afirmou-zygmunt-bauman-em-entrevista-inedita,70001669976
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