Carlos
Eduardo Lins da Silva*
Philip Roth
Trump apropriou-se de slogan de personagem
de 'Complô contra a América',
de Philip Roth.
As primeiras semanas do governo de Donald Trump
nos EUA fizeram com que alguns livros antigos de ficção voltassem à moda por
terem relatado situações que a muitos se assemelham às atuais.
Um
deles e “Complô contra a América”, de Philip Roth, originalmente editado em
2004 ( no Brasil, em 2005, pela Companhia das Letras, com tradução de Paulo
Henriques Britto).
O
grande romancista sul-africano J. M. Coetzee foi um dos críticos que há 13 anos
apontaram a possibilidade de Roth ter escrito “Complô” com uma analogia
denunciatória da administração de George W. Bush, que terminavam seu primeiro
mandato na Casa Branca naquele ano.
Roth,
que se opunha vigorosamente a Bush, negou a hipótese com veemência. Disse que
seu tema era realmente o período entre 1940 e 1942, quando muitos
acontecimentos narrados no romance aconteceram de fato com o autor e sua
família , judeus em Newark.
Na
época, Roth afirmou que seu objetivo era “desfatalizar” o passado e mostrar que
a perseguição aos judeus na Europa na década de 1940 poderia ter acontecido nos
EUA, se alguma circunstância histórica a tivesse permitido.
No
caso, tal evento poderia ter sido a eleição do aviador Charles Lindberg para a
Presidência no pleito de 1940.
O
Lindberg real, herói americano, extremamente popular, simpatizante do nazismo,
isolacionista, flertou com tal possibilidade e foi um dos líderes da campanha
para que os EUA não entrassem na Segunda Guerra Mundial.
Roth
podia não estar pensando em Bush quando escreveu o “Complô”. Mas, como notou
Coetzee em 2004, sempre soube que um livro quando chega ao público passa a ser
propriedade de seus leitores, que modificam o seu sentido de acordo com suas preferências e desejos.
Coetzee
lembra que o próprio Roth afirmara que Franz Kafka, embora não tivesse escrito
seus livros como alegoria política, foi lido como se fossem na Europa Oriental
no pós-Guerra e em outras sociedades submetidas a ditadura, e serviram como
poderosos instrumentos de resistência.
Em
outro romance, “Pastoral Americana”(1997), um personagem de Roth até faz uso de
“It Can’t Happen Here”, de Sinclair Lewis (1935), obra também em voga na era
Trump, para mostrar como aquela ficção
podia ser usada nos EUA em defesa da democracia ameaçada por Richard Nixon.
Se
Roth não admitia que “Complô” fosse referencia aos anos Bush, agora ele parece
mais disposto a aceitar que possa ter sido premonitório em relação aos dias
atuais.
Em
entrevista à revista “The New Yorker” na semana passada, no entanto, respondeu
assim à pergunta sobre se o que imaginara tinha de fato acontecido: “É mais
fácil compreender a eleição de um presidente imaginário Lindbergh do que a de
um presidente real como Trump”.
Argumenta
que, apesar de protofascista e antissemita, Lindberg tinha demonstrado grande
coragem física, gênio aeronáutico e força de caráter ao cruzar pioneiramente o
Atlântico em 1972, o que lhe rendeu genuína admiração da parte de milhões de
compatriotas.
Já
Trump, segundo Roth, um mestre da trapaça, da fraude, e o livro de ficção que
melhor o descreveria é “The Confidence Man”, de Herman Melville, em que o
personagem principal engana a todos com sua amoralidade extremada e falta de
escrúpulos.
As
semelhanças entre os presidentes Lindberg e Trump impressionam. Trump até se
apropriou do slogan principal de Lindbergh: “America First”. Os dois
demonstravam admiração por ditadores europeus (Hitler e Putin).
Na ficção
de Roth, a Alemanha nazista interfere no processo eleitoral americano para
ajudar a eleger Lindberg, que fica exposto a chantagem; há suspeitas fortes de
que a Rússia interferiu no pleito do ano passado, o que teria favorecido Trump.
Quando
lhe perguntam se Trump foi além de sua imaginação, Roth responde: “Não é Trump,
a pessoa, o tipo humano bisonho, o empreiteiro cruel e insensível, que é difícil
imaginar, mas sim que essa pessoa seja o presidente dos EUA. Já foi difícil viver
sob Nixon e Bush. Mas, por piores que estes fossem, nenhum deles era tão
humanamente pobre como Trump”.
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Carlos
Eduardo Lins da Silva é livre-docente e doutor pela USP, mestre pela Michigan
State University e editor da revista “Política Externa”.
Fonte:
Valor Econômico impresso, Cad. EU& FIM DE SEMANA, 10/02.2017.
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