E se perguntássemos o inverso: “o que os trabalhadores extraem de seus chefes?”.
Foto: Agência Brasil
A solidariedade é uma necessidade entre os de baixo e soa estranha ao reservado chefe, escreve Thiago Barison, advogado trabalhista e professor de Direito, em artigo publicado por Brasil de Fato, 15-02-2017, analisando a série 'O chefe Secreto' do programa Fantástico da Rede Globo.
Eis o artigo.
O programa dominical Fantástico da Rede Globo vem exibindo uma série denominada “O Chefe Secreto”.
O roteiro básico é simples: um alto executivo de uma grande empresa se
disfarça de operário e vai ao chão de fábrica, como se fosse um
empregado recém-contratado. Convive com os trabalhadores, conhece um
pouco de suas histórias de vida e participa da execução dos trabalhos,
mas no posto de comandado.
Ao final, retira lições que levará à direção da empresa sobre como
melhor administrá-la, tanto no processo produtivo quanto na relação com a
mão-de-obra. O arremate de cada programa é o típico final feliz: o
chefe se revela aos “funcionários”, expõe-lhes sua admiração e distribui
bondades — oportunidades e mesmo atos de pura caridade.
O chefe disfarçado de “peão” pode já no primeiro dia de trabalho
tomar contato com os dramas dos trabalhadores, que, sem cerimônias,
integram o novato abrindo-lhe suas vidas. A solidariedade é uma
necessidade entre os de baixo e soa estranha ao reservado chefe. Uma
mulher que rompeu o casamento e tem de se virar sem vaga na creche para
criar três filhas pequenas e dar conta da jornada de trabalho
— comumente entre nós estendida além do limite legal. Os colegas de
setor fizeram uma “vaquinha” e compraram-lhe uma geladeira, o que
surpreendeu o chefe.
Noutro programa, uma realidade parecida: um empregado do almoxarifado
que também faz faculdade, de modo que vê seu filho sempre dormindo, de
manhã quando sai às 5h30 e à noite quando chega à meia-noite. É uma luta
constante entre o tempo do trabalho a ser absorvido pela produção e o
tempo para os filhos, o estudo e o prazer.
Mas a partilha não é só da miséria: sem nenhum esforço o novato é envolvido nas brincadeiras, sorrisos e “macetes”.
Os macetes. Sem eles a produção simplesmente não acontece. O trabalho
não anda. Os equipamentos não funcionam. Os processos não têm ritmo.
Oculto nas entrelinhas do regulamento de empresa há todo um saber
prático acumulado silenciosamente pelos trabalhadores. Este saber é o
“chefe secreto” que dirige realmente o trabalho, mas que não poderá ser
revelado para o desenlace do programa. Pois é a sua condição clandestina
o que dá aos superiores o direito de punir o empregado que obedecia ao
macete quando ele falha: “as normas — formais — da empresa não foram
respeitadas”.
No programa do dia 4 de outubro de 2016, o mesmo chefe que assinara a
carta de suspensão de uma empregada, que dormira sobre uma prateleira
em movimento e se acidentou, pôde trabalhar ao lado dela e perceber
imediatamente seu empenho. Causou-lhe emoção descobrir que a jovem
cursava engenharia, terminando o turno da noite na empresa às 6h da
manhã para entrar sem dormir às 7h na sala de aula. Antes de voltar ao
batente, a jovem vinha fazendo um curso técnico em sua área de atuação
na firma, quando se acidentou — “a empresa cogitara a demissão da
funcionária”, relata Max Gehringer, que conduz os aprendizados das incursões do alto comando entre os soldados rasos da produção.
Esses fatos trazem duas verdades, estas sim mal disfarçadas pela produção do “Fantástico”.
A primeira é a cultura patronal do acidente como “culpa” ou “falta” do
empregado. E a segunda produziu as lágrimas que o chefe não conseguiu
disfarçar quando se revelou à jovem operária: foi fácil dar uma punição
sem conhecer a realidade do trabalhador; depois de conhecê-la,
arrependimento e sensação de injustiça com uma “batalhadora” — chega a
ser surpreendente como os preconceitos dirigidos contra as classes
trabalhadoras são persistentes à realidade que se constata sem nenhum
esforço no dia a dia.
O chefe então confessa que se sentiu na pele da subordinada, “pois
também trabalhava para pagar a faculdade com a qual os pais não podiam
arcar” — alega o personagem principal do programa. Ao fim do episódio, o
chefe agraciou a jovem com uma bolsa de estudos e um estágio no setor
de engenharia. Num acesso de culpa ou de espírito caridoso, à operária
mãe de três filhos contratou uma creche e mobiliou a casa, que ainda
recebeu uma pintura. Por fim, o saber operário foi “escutado” e
transformado em melhorias no processo produtivo.
De fato, não dá para ir à produção e dela sair incólume. Lá mora o
segredo da riqueza, do poder e das diferenças sociais. Uma simples troca
de papéis pode dar ensejo a questioná-los. É necessário extrair outras
lições dessa relação.
Então entra em cena o arremate emocional do programa. Os de cima
reconhecem os de baixo e aprendem com eles, implementando melhorias na
organização do trabalho.
Aumentam a produtividade e os ganhos. Os empregos parecem assegurados.
Um pouco de humildade e haverá harmonia entre as classes e progresso.
Para fechar com chave de ouro, o “chefe secreto” lhes retribui a
dedicação com presentes que falam aos sonhos anteriormente relatados
ele. Não há novidades nesse esquema. Todos os domingos e em cada um dos
principais canais há um programa que se dedica só a essa narrativa, que
não faz senão afirmar a todo tempo a insignificância dos pobres
agraciados e a magnanimidade dos todo-poderosos do dinheiro, que
reformam casas, carros, pequenos negócios.
E se perguntássemos o inverso: “o que os trabalhadores extraem de seus chefes?”.
Sua atividade está muito mais na esfera do mercado que na da
produção: relações com clientes e fornecedores, investimentos, crédito,
novas aquisições, marketing, lobby no poder público etc. Travam a guerra
da concorrência e, nisso, há que se reconhecer, agem com audácia,
intrepidez (falta de escrúpulos, se preciso) e expertise. Mas quem
efetivamente comanda a tropa operária na produção é a tecnologia e o
saber produzido em sua operação prática.
O segredo que o “chefe” tem a esconder é a possibilidade de que ele seja prescindível e dispensável.
--------
Fonte: http://www.ihu.unisinos.br/564911-o-chefe-secreto-do-fantastico-e-o-segredo-do-patrao
Nenhum comentário:
Postar um comentário