João Pereira Coutinho*
Binho Barreto/Editora de Arte/ Folhapress
Acabei de ler o manifesto que Mark Zuckerberg escreveu sobre o futuro da
humanidade. Ri muito. Mas depois, quando cheguei ao fim, uma pergunta
severa instalou-se no meu crânio: Zuckerberg é um humorista ou ele
acredita mesmo em cada palavra?
Se estamos na presença de um humorista, podemos incluir Zuckerberg na
grande tradição dos utopistas satíricos. Você sabe: gente profundamente
descontente com a realidade em volta e que usa a literatura para
divertir ou moralizar.
O problema é que eu desconfio que Zuckerberg fala a sério porque "sentido de humor" é algo que não casa com o personagem.
Resumidamente, o manifesto deseja construir um futuro perfeito. E que
futuro é esse? Fácil: um futuro sem pobreza, sem guerra, sem angústia,
sem solidão. E como atingir esse futuro? Fácil também: mobilizando os
bilhões de seres humanos que usam o Facebook.
As minhas gargalhadas começaram logo no princípio: "Estamos a construir o
mundo que todos queremos?", pergunta o profeta Mark. Não, meu filho,
não estamos. Cada um constrói o mundo que entende porque a ideia de um
propósito comum só existe na cabeça de um fanático. Pior: de um fanático
que acredita falar em nome de "todos".
Em teoria, um mundo sem pobreza, sem guerra, sem angústia e sem solidão
pode ter os seus encantos. De preferência, se for proposto por uma
candidata a Miss Universo com biquíni a condizer.
Mas imaginar o sr. Zuckerberg em tais preparos, para além de
esteticamente arrepiante, é politicamente aberrante: aquilo que define a
espécie humana é a diversidade de interpretações e soluções sobre
qualquer assunto social.
Sim, a pobreza é um infortúnio. Mas saber como combatê-la
–redistribuindo a renda? Criando livremente? E de que forma?– é matéria
de discussão pluralista e secular. O mesmo vale para a guerra (há
guerras criminosas? Há guerras necessárias?), para a angústia (o que
seria da grande arte sem esse demônio interior?) ou para a solidão (há
momentos em que o inferno podem ser os outros, parafraseando o
filósofo).
Mas os delírios de Zuckerberg continuam. Escreve ele que o futuro
pertence aos "grupos significativos" (grupos de gente que partilham as
mesmas felicidades ou infelicidades).
Um exemplo: se eu tenho uma doença específica, posso encontrar a minha
turma específica. O futuro de Zuckerberg é feito de centenas, milhares
de guetos virtuais. Como as leprosarias da antiguidade ou os sanatórios
para tuberculosos.
De resto, Zuckerberg acredita que a inteligência artificial poderá um
dia salvar os seres humanos deles próprios. Se eu consumo fotos ou
vídeos onde o suicídio tem papel principal, será possível "identificar"
os meus comportamentos "desviantes" e impedir o ato funesto. Impedir
como?
Zuckerberg não diz. Imagino que haverá intervenção do exército: o jovem
estudante de sociologia, que faz tese de doutorado sobre "O Suicídio" de
Durkheim, terá a porta arrombada pelos militares e será caridosamente
enfiado numa camisa de força.
Para muitos pensadores, o suicídio é o último ato de liberdade –ou, como
dizia Cioran, é precisamente pela certeza de que existe sempre uma
saída para a existência terrena que nos podemos comprometer com a vida.
No mundo de Zuckerberg, nem a mais íntima das escolhas humanas estará a
salvo.
Finalmente, o óbvio: com o Facebook, eleitores e eleitos estarão mais
próximos do que nunca, escutando-se mutuamente. Tradução: se "a tirania
da maioria" aprovar atos de barbaridade, o político, para ser eleito,
defenderá atos de barbaridade.
Os mecanismos de mediação que as democracias liberais sempre defenderam
(tribunais, parlamentos etc.) devem ser derrotados em nome da "vontade
geral", essa categoria sinistra que Rousseau legou aos seus discípulos.
Para sermos justos, nada do que escreve Zuckerberg é novidade. Ele
apenas repete as falácias típicas do pensamento globalista: os problemas
globais só podem ser enfrentados por uma espécie de "comunidade global"
–um eufemismo para "governo global".
Fatalmente, não passa pela cabeça de Zuckerberg que é precisamente esse
globalismo supranacional e transnacional que produz a reação populista
(e nacionalista) atualmente em cartaz.
O manifesto de Mark Zuckerberg é um documento megalômano e autoritário
escrito com a tinta ilusória das boas intenções. Se adolescentes assim
não têm noção do ridículo, o mundo já será um pouco melhor se os adultos
não perderem o deles.
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* Escritor português, é doutor em ciência política.
Escreve às terças e às sextas.
Escreve às terças e às sextas.
Fonte: http://www1.folha.uol.com.br/colunas/joaopereiracoutinho/2017/02/1860523-manifesto-de-mark-zuckerberg-e-um-documento-megalomano-e-autoritario.shtml
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