Salma Ferraz | Foto: arquivo pessoal
Uma
velha questão debatida na história do Cristianismo era se Jesus sorria.
“Mas é óbvio que sorria! Se andava, deitava, chorava, por que não riria?”,
provoca a doutora em Letras Salma Ferraz. Ela afirma que esse debate se
relaciona ao fato de que “a iconografia que permaneceu da vida de Jesus de Nazaré foi baseada em sua crucificação, e não em sua gloriosa ressurreição”. As primeiras imagens de Jesus
sorrindo foram os protestantes dos Estados Unidos que publicaram
há cerca de 50 anos. “Jesus gostava de festas, casamento e vinho. Se era
humano, e era, sorriu!”, afirma em entrevista concedida por e-mail à IHU
On-Line.
Salma
propõe o desenvolvimento de uma Teologia do Riso, que pressupõe “exaltar
mais a ressurreição e a alegria juntamente com a cruz e a morte
de Jesus, uma teologia do riso, da felicidade, inclusiva, onde caibam
não apenas pobres, mas pessoas de todas as classes sociais, de todo o amplo
leque de gêneros e sem gêneros, casados ou divorciados, celibatários ou
não, de todas as raças e de todas as religiões, na qual ninguém herde pecado
original e nenhum outro pecado que não lhe pertença, na qual não existam
Diabos, daimon ou lucíferes”.
Para
a pesquisadora, “o sofrimento faz parte do DNA do catolicismo dogmático”. Mas
ela garante: “O humor salva!”. E cita o papa Francisco, que disse em uma
entrevista que “a atitude humana mais próxima à graça de Deus é o humor”.
Salma
Ferraz é graduada em Letras pela Faculdades Integradas Hebraico
Brasileira Renascença, mestra e doutora em Letras pela Universidade
Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho. Fez estágio pós-doutoral na Universidade
Federal de Minas Gerais. É professora da Universidade Federal de Santa
Catarina.
Confira
a entrevista.
IHU
On-Line – Jesus sorria? Conforme os registros da tradição, como se manifestava
a alegria dele?
Salma
Ferraz – A questão se Jesus sorriu ou não foi objeto de
diversos debates ao longo da história do Cristianismo. Isso está
relacionado ao fato de que a iconografia que permaneceu da vida de Jesus de
Nazaré foi baseada em sua crucificação, e não em sua gloriosa ressurreição
(observe o terrível mau gosto de Mel Gibson em seu famoso filme hemorrágico
[A paixão de Cristo, 2004]: lavou a tela de sangue
e dedicou um segundo para a ressurreição de Jesus). Basta vermos
os quadros de Jesus do período Barroco – só falta sair sangue de verdade
das estátuas e das pinturas. Como um Jesus se contorcendo de dor poderia
rir? São João Crisóstomo (347, Antioquia – 407,
Comana Pôntica), um dos mais ferrenhos adversários do riso, afirmava que Jesus
chorou, mas não riu. Mas é óbvio que sorria! Se andava, deitava, chorava, por
que não riria?
Observe
que foram os protestantes dos Estados Unidos que primeiro
publicaram a imagem de Jesus como Bom Pastor sorrindo, e isso não
faz 50 anos. Jesus gostava de festas, casamento e vinho. Se era humano,
e era, sorriu!
IHU
On-Line – A senhora afirma que a Bíblia exige um leitor que saiba ler os
silêncios, os segundos planos do texto, e que esse leitor achará o riso. Por
que, nas escritas sagradas, o riso não é explícito?
Salma
Ferraz – Na realidade, a leitura da Bíblia não é para qualquer um.
É uma biblioteca que exige o tal leitor ruminante, termo usado por Machado de Assis, ou leitor modelo, termo cunhado
por Umberto Eco. O problema é que muitos cristãos
acham que o conhecimento da Bíblia entra via axila e que carregá-la
debaixo do braço é atestado de conhecimento. José Saramago já afirmava, em seu ateísmo, o
perigo de se ler a Bíblia como um fundamentalista, levando ao pé da letra tudo
o que nela está. A leitura dela exige conhecimento, datação, contexto,
identificando o que deve ser deixado de lado, o que deve ser mantido.
Ao contrário do que é afirmado nesta pergunta, o riso está mais do que explicito na Bíblia. Acontece que as pessoas fazem uma leitura direcionada e dogmática desta biblioteca. Cito dois exemplos mais do que explícitos de riso na Bíblia:
1)
Sara ouvindo a conversa entre o Anjo e Abraão (Gênesis 18:11-15), o que por si
só já é muito feio para uma matriarca: “Abraão e Sara eram já velhos, avançados
em idade; e a Sara já lhe havia cessado o costume das mulheres. Riu-se, pois,
Sara no seu íntimo, dizendo consigo mesma: Depois de velha, e velho também o
meu senhor, terei ainda prazer? Disse o SENHOR a Abraão: Por que se riu Sara,
dizendo: Será verdade que darei ainda à luz, sendo velha? Acaso, para o SENHOR
há coisa demasiadamente difícil? Daqui a um ano, neste mesmo tempo, voltarei a
ti, e Sara terá um filho. Então, Sara, receosa, o negou, dizendo: Não me ri.
Ele, porém, disse: Não é assim, é certo que riste”. Aqui a matriarca ri,
aludindo ao fato de, naquela idade, ter prazer sexual. Há uma discussão de Sara
com YHVH [nome do Deus nacional dos israelitas, usado na Bíblia Hebraica], que se irrita com o riso
duvidoso dela. Primeiro Ele se dirige a Abrão e depois a Sara. Parece diálogo
de comadres: riu, não riu. E a criança se chamará Isaac (aquele que ri).
2)
O outro episódio é o relato do roubo da Arca. Os homens de Israel
retiram a Arca da Aliança da Tenda da Congregação e a levam como
relíquia, ou espécie de amuleto da sorte, para o campo da batalha contra os
filisteus. Os filisteus roubam a Arca e são assolados por terríveis
hemorroidas. O episódio cômico está relatado em 1 Samuel 5 e 6. A Pentápolis
Filisteia inteira é atingida por esta praga: Asdode, Gate, Ecrom,
Ascalom e Gaza. Em 1 Samuel 5:12, temos: “E os homens que não
morriam eram tão atacados com hemorroidas que o clamor da cidade subia até o
céu”. Para expiarem a culpa, os filisteus confeccionam réplicas/imagens das
hemorroidas, fazendo o molde em ouro. Observemos 1 Samuel 6:5: “Fazei, pois,
umas imagens das vossas hemorroidas e dos vossos ratos, que andam destruindo a
terra, e dai glória ao Deus de Israel; porventura aliviará a sua mão de cima de
vós, e de cima do vosso Deus, e de cima da vossa terra”.
Existe
coisa mais hilária que os poderosos príncipes filisteus tirando o molde de suas
próprias hemorroidas? E depois, o objeto sagrado (a Arca) que continha no seu
interior um pedaço de maná, as tábuas da Lei e o cajado de Aarão, sendo
enfeitada por hemorroidas de ouro e ratos? Um pouco antes, quando o sacerdote
Eli recebe a notícia, cai da cadeira e morre. Eu diria que há um intervalo
recheado de falcatruas, erros, enganos, logros, com episódios risíveis que vão
do nascimento de Isaac (aquele que ri), até a morte do profeta Eli. Sua nora,
ao receber a notícia da derrota de Israel, entra em dores de parto, tem
um filho e o chama de Icabô, acabou-se a glória de Israel.
IHU
On-Line – Na Bíblia, universo tão sisudo e hirto, que personagens são
bem-humorados? E que destaque eles têm?
Salma
Ferraz – Como podemos ver pelos exemplos acima, o universo bíblico
não é nem sisudo, nem hirto. Eu poderia citar dezenas de personagens e
episódios hilários. Mas vou citar quatro, um envolvendo Jesus. Não vou
falar de Jacó, o anti-herói bíblico, porque apenas sobre ele daria uma tese:
covarde, trapaceiro, ladrão (mas é ele que entra na galeria da fé, e não Esaú).
1)
O rei Acabe tem um grande senso de humor ao chamar o profeta Elias
de o Perturbador de Israel.
2)
Mas Elias, o grande profeta, tem um senso de humor muito maior do que o de
Acabe. No episódio em que desafia e enfrenta os 450 profetas de Baal, ele
dança, entra em transe e provoca: Por volta do meio-dia, Elias começou a zombar
deles e a dizer: ‘Gritem o mais que puderem! Afinal, ele é um deus!. Talvez ele
esteja entretido em seus pensamentos ou tenha ido fazer necessidades”. No
final, Elias manda matar todos os profetas de Baal. O troféu de profeta mais
mal humorado do Primeiro Testamento vai para Eliseu. O episódio em que
ele é vítima de bullyng pelos rapazinhos está relatado em 2 Reis 2:23-25:
“Então subiu dali a Betel; e subindo ele pelo caminho, uns rapazinhos saíram da
cidade, e zombavam dele, e diziam-lhe: Sobe, calvo, sobe, calvo! E virando-se
ele para trás, os viu, e os amaldiçoou no nome do Senhor; então duas ursas
saíram do bosque e despedaçaram quarenta e dois daqueles meninos”. Não teria
sido mais fácil ter pedido ao Senhor que lhe dessem cabelos como os de Sansão?
Este episódio foi base para a criação da música CRISTÃ cantada em vários
aniversários de crianças. A música se chama A Careca do Eliseu, da
compositora Sandrinha:
Porque
eles riram, rá rá rá
Do careca, rá rá rá
Criança educada assim não faz
Porque eles riram, rá rá rá
Do careca, rá rá rá
Riram uma vez pra nunca mais
Eram 42 meninos de rua
Que zombaram da careca de Eliseu
Saíram duas ursas lá do mato
Com a boca grande fez: UAU!!
E os comeu!
Do careca, rá rá rá
Criança educada assim não faz
Porque eles riram, rá rá rá
Do careca, rá rá rá
Riram uma vez pra nunca mais
Eram 42 meninos de rua
Que zombaram da careca de Eliseu
Saíram duas ursas lá do mato
Com a boca grande fez: UAU!!
E os comeu!
3)
O humor de Jesus era um humor mais "britânico", contido, com jogo de
palavras. Podemos observar isso na maneira em que provoca a mulher
sírio-fenícia, num dos encontros mais intrigantes que teve em sua missão. Em
São Mateus 15:25-28, temos este relato: “A mulher veio, adorou-o de joelhos e
disse: ‘Senhor, ajuda-me!’. Ele respondeu: ‘Não é certo tirar o pão dos filhos
e lançá-lo aos cachorrinhos’. Disse ela, porém: ‘Sim, Senhor, mas até os
cachorrinhos comem das migalhas que caem da mesa dos seus donos’. Jesus
respondeu: ‘Mulher, grande é a sua fé! Seja conforme você deseja’. E naquele
mesmo, instante a sua filha foi curada”.
Jesus
é duro, rápido nas palavras, domina diálogo socrático, testa a fé da mulher com
rudeza. De certa forma, indiretamente a chama de cadelinha, o que é muito grave
para um estrangeiro. Jesus era inteligente, sabia muito bem que sua ascendência
incluía Rute e Raabe, ambas estrangeiras. Por que então afirma que não pode
atender a estrangeiros e que foi enviado somente à casa de Israel? Pura e
simplesmente porque queria testar a fé da mulher e porque era um especialista
neste tipo de diálogo (o que deixou Pilatos impressionado). Mas a mulher
sírio-fenícia, em sua humildade aparente, reponde a Jesus à altura do diálogo
proposto. Sai vencedora, e Jesus se rende. Aliás, ele queria que ela saísse
vencedora.
IHU
On-Line – A senhora propõe o desenvolvimento de uma Teologia do Riso. Do que se
trata? Nestes termos, que espaço haveria para tal proposição?
Salma
Ferraz – Exaltar mais a ressurreição e a alegria juntamente
com a cruz e a morte de Jesus, uma teologia do Riso, da Felicidade,
inclusiva, onde caibam não apenas pobres, mas pessoas de todas as classes
sociais, de todo o amplo leque de gêneros e sem gêneros, casados ou divorciados,
celibatários ou não, de todas as raças e de todas as religiões, na qual ninguém
herde pecado original e nenhum outro pecado que não lhe pertença, na qual não
existam Diabos, daimon ou lucíferes. E que cada um seja responsável pelos seus
atos e não um mísero títere nas mãos de deuses e demônios disputando a pobre
alma humana que não deseja mais ser tutorada. Que outras bibliotecas sejam
respeitadas tal como a Bíblia o é, em que as mulheres, se o
desejarem, sejam ordenadas, e que tenham vez e voz, na qual não precisamos de
tantos intermediários, anjos, santos e igrejas para termos acesso direto ao
sacro, na qual até os sem deus sejam respeitados, uma teologia que abomine o
matar em nome do seu deus e que respeite outros deuses e outros paraísos. Finalmente
nas quais os homens possam apenas ser tão veredas próprias.
Cabe
lembrar aqui um dos meus teólogos preferidos, Dietrich Bonhoeffer [1], um pioneiro na luta
pelo ecumenismo. Em suas Prédicas e alocuções,
afirma que “a cruz não é propriedade privada de ninguém, mas pertence a toda a
humanidade e tem a ver com toda a humanidade” (2007, p. 18).
Se
a cruz não pode ser privatizada por ninguém na terra e por nenhuma religião –
não se pode fazer usucapião da cruz, nem deter os seus direitos autorais –, o
mesmo pode ser dito sobre o rosto de Deus e de Jesus: podem estar
sorrindo! Alegremo-nos!
Precisamos
aprender a ver pelas frestas dos dedos de Deus, o seu rosto escondido na fenda
da rocha! Se ele estivesse sorrindo, certamente não morreria jamais e nós
seríamos muito mais felizes. Humanos e miseráveis que somos, apenas pó,
incrustados na fenda da rocha do tempo, mergulhados no mistério da existência
humana, não queremos mais ver Deus pelas costas!
O
espaço para proposição da Teologia do Riso é a Teopoética.
IHU
On-Line – Quando se pensa no judaísmo e no cristianismo, violência e culpa são
elementos que se sobressaem nas narrativas. O riso e o humor são dissonantes na
tradição dessas religiões?
Salma
Ferraz – A resposta é muito complexa e demandaria uma análise muito
grande. Eu indico o livro História do riso e do escárnio, de George
Minóis. No geral, o riso e o humor estão mais presentes no Judaísmo do que
no Cristianismo. Mas veja que, nos últimos 30 anos, dezenas de programas de
humor ao redor do mundo, na televisão e na internet, tem no Cristianismo uma
fonte inesgotável de paródia e riso. Cito alguns: Monty Python, George
Carlin, South Park, Os Simpsons, Porta dos Fundos,
Pastor Adélio, Um sábado qualquer.
E
sem falar na Unção do Riso, em que o riso é visto como manifestação do Espírito
Santo, mas isto daria outra entrevista.
IHU
On-Line – No romance O nome da rosa, de Umberto Eco, e no filme homônimo
de Jean-Jacques Annaud baseado na obra que se passa na Idade Média, o riso
motiva um embate entre os monges beneditino Jorge de Burgos e o franciscano
Guilherme de Baskerville. Burgos considerava o riso um ato demoníaco que
deforma o rosto. Baskerville, baseado em Aristóteles – cujo segundo livro da Poética,
considerado perdido, tratava do riso e suas virtudes –, apresentava o riso como
algo próprio do homem, típico da racionalidade humana. Para além dessa obra
ficcional, o debate acerca do riso foi importante na tradição cristã?
Salma
Ferraz – Sim, foi importante para aquele momento histórico. Mas, olhando com os olhos de hoje, eu
diria que foram debates de quem não tem o que fazer de mais importante na vida,
assim como hoje se debate e se questiona se Jesus foi casado ou não. São fatos que não são essenciais
para o cristianismo.
IHU
On-Line – Em datas como a Sexta-Feira Santa, é comum que cristãos tradicionais
cumpram alguns protocolos de recato: não ouvir música alegre, não falar alto,
não sorrir, por exemplo. Que festas ou rituais são alegres?
Salma
Ferraz – O Domingo de Ramos, que celebra a entrada triunfal
de Jesus em Jerusalém. Analisemos este episódio. Jesus humilde?
Você decide. Aqui ele faz quase que uma paródia das entradas triunfais dos
generais romanos em Roma, o famoso Triunfo Romano.
Sobre
a malhação do Judas, fico pensando: por que Judas é malhado e Pedro,
que negou Jesus, foi o Pai da Igreja? Sim, sei que a resposta é que
Pedro se arrependeu... mas há muitos mistérios envolvendo Judas. Basta ler o
conto de Jorge Luis Borges As três versões de
Judas. Há outro conto magnifico do monge Julio de Queiroz, que se
chama Encontro de culpas, no qual Pedro e Judas discutem suas culpas.
Pedro afirma que será muito mais infeliz que Judas, porque os galos sempre cantarão
em sua cabeça.
IHU
On-Line – Por que cerimônias católicas mais alegres costumam gerar críticas?
Salma
Ferraz – O sofrimento faz parte do DNA do catolicismo dogmático. Fiz
uma disciplina no seminário sobre ascese cristã e descobri que ainda
existe a ordem das virgens... Consagração da vida e virgindade ao Senhor... O
Senhor não precisa disto. A ascese está ligada ao sofrimento, meditação,
silêncio, o castelo interior. A alegria é o contrário de tudo isso!
Bem-aventurados os alegres, porque deles é o reino na Terra e no Céu.
O
humor salva!
O
papa Francisco deu uma entrevista sobre o humor no ano passado, na qual
afirmava: “A atitude humana mais próxima à graça de Deus é o humor”. Quem ri é
seguro de si, tem autoconfiança, não atribui seus fracassos nem a Deus nem ao
Diabo. Quem ri assusta porque toma sua vida e seu destino nas suas mãos. Quem
ri não tem medo.
IHU
On-Line – Deseja acrescentar algo?
Salma
Ferraz – Já que você citou Umberto Eco, gostaria de terminar a entrevista
com uma frase de O Nome da Rosa: “Talvez a missão daqueles que
amam a Humanidade seja fazer com que as pessoas se riam da verdade, porque a
única verdade consiste em aprender a libertar-nos da paixão insana pela
verdade”.
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Reportagem por Vitor Necchi
Fonte: http://www.ihu.unisinos.br/564507-o-humor-salva-entrevista-especial-com-salma-ferraz
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