A visão do conselheiro-sênior do presidente
norte-americano Donald Trump sobre crise civilizacional e renovação
violenta tem raízes profundas na tradição política do país
O caos provocado pela ordem executiva do presidente dos EUA, Donald
Trump, barrando seletivamente a entrada de cidadãos de países muçulmanos
no país, causou um debate urgente sobre o homem por trás da medida,
Stephen K. Bannon. Ele, como sabemos agora, teve participação direta
tanto no rascunho do banimento, quanto na orientação ao Departamento de
Segurança Doméstica para impedir pessoas com autorização de residência
nos EUA e portadores de green cards de entrar no país.
Alguns comentaristas veem a indiferença aos procedimentos legais e aos
protestos de massa como uma evidência da grosseira incompetência de
Bannon; outros, sinais divinos incipientes de um golpe em grande escala.
Muitas vezes, no entanto, é ignorada a visão mais ampla da política,
informando sobre o novo experimento de Bannon com o poder estatal.
Por trás do caos, ele deixa à mostra uma teoria profética de crise
civilizacional e renovação violenta – uma tese com raízes profundas na
tradição política norte-americana.
Visão de Bannon
A visão política de Bannon encontra sua expressão mais clara no
documentário “Geração Zero”, feito por ele em 2010. O filme apresenta a
crise financeira e o resgate aos bancos [de 2008] como produto de uma
classe política incompetente atada às elites financeiras globais. “O
partido de Davos”, argumenta Bannon, pilhou impiedosamente os recursos
dos homens e mulheres trabalhadores do país. Mas o documentário, claro,
não é uma polêmica à esquerda.
Sustentando o discurso melodramático e populista de direita – imbuído
no discurso de posse de Trump, repleto de “carnificina” – há uma teoria
estranha de mudança histórica proposta por Neil Howe e William Strauss.
Escrevendo nos anos 90, Howe e Strauss afirmaram que a história
norte-americana poderia ser compreendida como um sistema ordenado de
mudanças geracionais. Cada quatro gerações constitui um “saeculum” que
passa por quatro estágios de desenvolvimento previsíveis – cada um deles
duraria aproximadamente 20 anos.
Um “saeculum” começa no surgimento de uma grande crise. Reinam o
conformismo e a autonegação, e a energia é canalizada para construir e
proteger instituições estáveis. Essa primeira geração, ou “virada”,
eventualmente dá lugar à geração seguinte, durante a qual a ordem social
começa a erodir. A conformidade bestificante é descartada na busca pela
descoberta espiritual e pela liberdade individual.
A segunda virada leva à terceira, onde um ceticismo corroído desmonta
instituições estáveis e a confiança da sociedade se parte. A sociedade
se atomiza e as identidades se fraturam, enquanto a especulação e a
elite do poder se libertam de barreiras tradicionais. Esse ciclo de
desvelamento é seguido por uma “quarta virada” apocalíptica em direção
ao novo “saeculum”. O colapso completo das instituições sociais mergulha
a sociedade no caos, e indivíduos são forçados a abraçar um propósito
comum para poder reconstruí-la. Como Howe explica no documentário de
Bannon, “quartas viradas” são trágicos (porém necessários) estágios na
consolidação da unidade nacional.
Howe e Strauss identificaram três grandes ciclos de crises sazonais na
história norte-americana: a Guerra da Independência, a Guerra Civil e a
Segunda Guerra Mundial. Em cada um desses casos, o país se viu de frente
à aniquilação existencial por conta de divisões internas ou perigos
externos. E, em cada caso, a nação emergiu mais forte do que antes, por
causa do heroísmo e do sacrifício dos cidadãos.
“Geração Zero” posiciona a crise financeira de 2008 como a última
“quarta virada” dos EUA, subproduto e sucessora da contracultura dos
anos 1960 e 1970.
Como conta Bannon, o socialismo e a política “black power” dos anos
1960 fizeram um cerco tanto à estabilidade institucional dos anos 1950
quanto aos valores culturais que tradicionalmente sustentaram a livre
iniciativa norte-americana, liberando uma torrente de ganância que,
finalmente, causou a crise financeira. “Geração Zero” traça a
convergência dessas linhas de crise desde o governo de Bill Clinton
(1993-2001), quando o capitalismo de amigos e o socialismo de bem-estar
ostensivamente conspiraram para esvaziar a economia norte-americana e
abandonar “os homens esquecidos”.
Bannon vê este atual ciclo de crises como o mais perigoso até agora,
pois faltariam aos Estados Unidos os “valores judaico-cristãos” que
sustentaram a excepcionalidade norte-americana em eras anteriores de
crise. Os EUA e sua tradução de liberdade e livre iniciativa irão
suportar a convulsão que vem? Ou essa “virada” será o fim da civilização
norte-americana como a conhecemos? O zero que numera esta geração
denota ser o primeiro ou o último? Tudo o que o conselheiro sênior de
Trump sabe é que a direita precisa se alinhar para uma batalha de 20
anos para atravessar o quarto ciclo.
Essa teoria cíclica de crises de Bannon clarifica mais um discurso que
fez em 2014 no Instituto da Dignidade Humana, que circulou amplamente.
Falando para uma plateia católica no Vaticano pelo Skype, Bannon
apresentou sua teoria de crises nacionais em termos globais.
Em certo momento da história, argumentou Bannon, uma “forma esclarecida
de capitalismo” prevaleceu, juntamente com paz e prosperidade. Mas a
secularização destruiu os valores judaico-cristãos que deram vida a essa
ordem e desconectaram o lucro de seus fundamentos morais.
O resultado? A atual era de capitalismo “controlado pelo Estado” ou
“corporativo”, que direciona as riquezas nacionais aos bolsos da elite
global de Davos e “procura tornar as pessoas commodities”, esvaziando os
valores civilizacionais. O “capitalismo de amigos” que serve como
combustível para raiva popular no mundo capitalista avançado é um
sintoma do declínio dos “valores judaico-cristãos” que antigamente
mantinham o livre mercado sob controle.
Para Bannon, essas crises econômicas e espirituais são compostas por
mais um terceiro elemento: o crescimento do “fascismo jihadista
islâmico”. A civilização ocidental, insiste, está se fraturando por
dentro e sendo aterrorizada por “bárbaros” por fora.
Ecoando sua profecia de uma “quarta virada” em “Geração Zero”, ele
alertou a plateia de católicos de direita: “estamos nos estágios
iniciais de um conflito global, e, se nós não nos unirmos como parceiros
a a outros países... esse conflito irá entrar em metástase”.
Antecessores de Bannon
A visão de Bannon de um choque de civilizações a caminho é
aterrorizante, particularmente agora que ele tem assento no Conselho de
Segurança Nacional. Mas, por mais que ela seja assustadora e bizarra,
essa teoria especulativa de declínio civilizacional e crise tem diversos
precedentes no pensamento político norte-americano.
Na verdade, ela teria feito sucesso com intelectuais e políticos norte-americanos do final do século 19.
Como o historiador T. J. Jackson Lears argumenta no seu clássico estudo da “Era Dourada da América”, o discurso da elite da virada do século era marcado por um antimodernismo reacionário que lamentava o declínio civilizacional e mirava a violência e o perigo como um manancial de renovação.
O historiador Brooks Adams, por exemplo, previu que o século que viria
veria o esgotamento da civilização norte-americana. No seu livro “As
Leis da Civilização e Decadência”, de 1896, Adams ofereceu uma teoria da
história que consistiria em dissipação de energia, na qual as mesmas
forças que impulsionam o desenvolvimento civilizacional acabam, por fim,
deixando-o espiritualmente enervado e pronto para a queda e conseguinte
revitalização por meio de um período de colapso social. Adams
acreditava que o gasto de poder necessário para industrializar a
economia e centralizar o estado deixou os EUA “inertes enquanto eram
abastecidos por material energético fresco, trazido pela infusão de
sangue bárbaro”.
Em 1885, Josiah Strong juntou declínio nacional com significado milenar
em seu muito popular livro “Nosso País: Seu Futuro Possível e sua Crise
Atual”. Profetizando a iminente “competição final das raças” pela
supremacia global, o líder gospel social [movimento religioso da virada
dos séculos 19 e 20] defendeu o expansionismo imperial como a única
maneira de salvar a raça anglo-saxã na América. Infelizmente, lamentou
Strong, as forças da secularização, imigração e mamonismo [termo
derivado da Bíblia que representa ganância, avareza] enfraqueceram a
natureza nacional e deixaram os anglo-saxões incapacitados de enfrentar
esse desafio urgente. “Nosso País” era uma lamentação que chamava o país
de volta a seus valores cristãos, que combateriam as forças da
corrupção interna e “levariam a um alto nível de sacrifício” exigido
pelo futuro apocalipse racial.
Mas nenhuma outra figura capturou tanto a melancolia republicana do
pensamento político da era dourada – alta preocupação com valores
cívicos perdidos, críticas à ganância corrupta, medo de imigração e de
“contaminação de raças”, fantasias de impérios globais, romantização de
renovações por meio de sacrifícios – do que o promotor da diplomacia do
Big Stick [grande porrete], o ex-presidente Theodore Roosevelt.
Na visão dele, os Estados Unidos eram uma representação global da
civilização anglo-saxã. No entanto, ela era ameaçada por fora (pelos
poderes imperiais que competiam com o país e contaminação cultural) e
decadente por dentro (graças ao mercantilismo, à imigração, à “mistura
de raças” e ao sentimentalismo humanitário).
Guerra era a resposta. Ele fez com que conflitos militares fossem
campos de treinamento para homens norte-americanos que não tinham a
coragem e o espírito público que a cidadania exigia. Como Roosevelt
disse para uma plateia no Hamilton Club de Chicago, na primavera de
1899:
“Quando homens temem o trabalho ou temem a guerra justa, quando as
mulheres temem a maternidade, eles tremem à beira da desgraça; e é
quando eles devem desaparecer da Terra, onde eles são sujeitos aptos
para o desprezo de todos os homens e mulheres que são, eles mesmos,
fortes e bravos e nobres de princípios.”
Para Roosevelt, o destino da civilização anglo-saxã dependia de se a
“vida extenuante” do soldado norte-americano – que estava lutando para
expandir o “império da liberdade” nacional pelo hemisfério ocidental –
seria abraçada.
A guerra de Bannon
O que podemos colher da visão política de Bannon após examinar seus
antecedentes intelectuais e sua suposta obsessão com Strauss e How?
À primeira vista, mostra que a visão apocalíptica de Bannon pode ser
creditada ao que Richard Slotkin diagnosticou como a mitologia
norte-americana de regeneração por meio da violência: uma celebração da
violência como um ritual de expiação que pode renovar tanto o indivíduo,
quanto a nação.
A fixação de Bannon e do Breitbart News [site que ele dirigiu] com
banhos de sangue, violência e sacrifícios é muito bem documentada. O
coautor de uma adaptação (feita por Bannon) de Coriolano, montada em
hip-hop e que se passava durante as revoltas populares de 1992 em Los
Angeles, disse ao New York Times que Bannon era “tragado pelas peças romanas de Shakespeare por causa de sua violência militar heroica”.
A fascinação de Bannon com a violência não é puramente uma provocação.
Assim como Roosevelt, ele vê na guerra uma experiência transformadora de
regeneração moral que serve como um baluarte contra o declínio
civilizacional. Uma “das grandes questões em aberto neste país”,
declarou Bannon na Rádio Breitbart no último verão, é se os Estados
Unidos estão dispostos a abraçar a vida extenuante. “Aquela
determinação, aquela tenacidade que nós vimos nos campos de batalha
ainda estão aqui (...) lutando por algo maior que elas?”
A recordação histórica também mostra que nós devemos levar a sério a
insistência de Bannon de que a corrupção nos EUA e a decadência serão
expurgadas por meio de uma guerra apocalíptica. David Kaiser, que
aparece em “Geração Zero”, relata a fascinação “alarmante” de Bannon com
as implicações das grandes guerras citadas em Strauss e Howe. “Ele
espera uma nova e ainda maior guerra como parte da crise atual”, diz
Kaiser, “e ele não parece estar de nenhuma maneira perturbado com essa
perspectiva”.
O ciclo de crises precisa de um conflito militar – somente a ameaça de
total aniquilação que pode convocar uma nação de volta a um objetivo
comum e inspirar sacrifícios mútuos para enfrentar um perigo coletivo.
Para Bannon, essa guerra já começou. Como ele explicou em sua palestra para o Vaticano:
“Existe uma grande guerra em preparação, uma guerra que já é global.
Ela será global em escala, e a tecnologia, a mídia e o acesso a armas de
destruição em massa de hoje irão levar a um conflito global que,
acredito, precisa ser enfrentado hoje”.
A guerra na cabeça de Bannon é a que o Islã radical está travando com o
“Ocidente”. Ela envolve a convocação dos “militantes da Igreja” para
“lutar pelas nossas crenças contra essa nova barbaridade que está se
iniciando e que irá erradicar completamente tudo o que viemos deixando
de legado nos últimos 2.000, 2.500 anos.”
Compreendidos em termos proféticos, os detalhes horríveis com os quais
Bannon descreve as atrocidades do Estado Islâmico na Rádio Breitbart e
seus alertas de uma “quinta coluna” muçulmana dentro dos Estados Unidos
não são simplesmente chamados para a preparação para uma guerra
vindoura. Eles são incitações com o objetivo de acelerar a catástrofe
que se aproxima, que irá purificar a nação e trazer o próximo “saeculum”
de ordem e estabilidade.
A guerra total é tanto o desafio que a civilização norte-americana
enfrenta quanto a sua salvação. Como Bannon anunciou na Rádio Breitbart
em 2015, “é guerra. É guerra. Todo dia, nós ressaltamos: A América está
em guerra, a América está em guerra. Nós estamos em guerra. Anote,
prezado comandante-em-chefe: nós estamos em guerra.”
Realmente estamos. Contra Steve Bannon.
*Publicado originalmente em Jacobin
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