O economista norueguês Erik Reinert diz que o ano de 2016 representou uma ruptura importante com "a utopia do livre mercado", do mesmo modo como ocorreu em 1848, com as revoluções em vários países da Europa, e em 1933, com a reação à Grande Depressão. Para ele, o Brexit (a saída do Reino Unido da União Europeia) e o discurso contra o livre-comércio nos Estados Unidos de Donald Trump e Bernie Sanders marcam uma reviravolta ideológica de peso, repetindo as que aconteceram em meados do século XIX e nos anos 30.

"Embora as alternativas atuais pareçam sombrias, eu saúdo a mudança como um alerta ideológico necessário", diz Reinert, professor da Universidade de Tallin, na Estônia, e Ph.D. pela Universidade Cornell, nos Estados Unidos. "Em 1848, mesmo o arquétipo do liberal, John Stuart Mill, retratou-se sobre os benefícios automáticos do livre-comércio. Os anos 1930 nos deram três ideologias contra o 'laissez-faire': o fascismo, o comunismo e [Franklin Delano] Roosevelt e o 'New Deal'."

Segundo ele, não são obviamente as duas outras ideologias que é necessário trazer de volta, mas sim o "New Deal" de Roosevelt - o conjunto de políticas adotadas pelo presidente americano que governou os Estados Unidos de 1933 a 1945, envolvendo medidas como o aumento do investimento público e a redução da jornada de trabalho. O momento, afirma Reinert, é de perguntar "como um 'New Deal' deve parecer no cenário atual".

"Depois da Segunda Guerra Mundial nós tivemos uma ideologia baseada nos princípios do Plano Marshall: todas as nações devem poder se industrializar", diz Reinert. "Isso produziu o que hoje é conhecido como 'les trente glorieuses': 30 anos de crescimento excepcional, nunca vistos antes no mundo. Isso incluiu o 'milagre brasileiro'." Para ele, que ressalva não ser especialista em economia brasileira, dois problemas do país atualmente "parecem ser juros elevados e demanda fraca".
Presidente da fundação The Other Canon (O Outro Cânone), Reinert é autor do livro "Como os Países Ricos Ficaram Ricos... e Por que os Países Pobres Continuam Pobres", lançado no Brasil pela Editora Contraponto e pelo Centro Internacional Celso Furtado de Políticas Públicas e Desenvolvimento. Na obra, Reinert diz que "as principais diferenças entre países ricos e países pobres é que todos os países ricos passaram por uma fase sem livre-comércio, o que depois tornou o livre-comércio, quando bem-sucedido, desejável".

Segundo Reinert, os países que enriqueceram chegaram a esse estágio porque "durante décadas, muitas vezes séculos, seus governos e suas elites dominantes instituíram, subvencionaram e protegeram indústrias e serviços dinâmicos". A Inglaterra protegeu a sua indústria por mais de 300 anos, a Coreia do Sul por algo como quatro décadas, mas as nações que se tornaram ricas seguiram por esse caminho. "A melhor exceção em que eu consigo pensar é Hong Kong. Mas mal se trata de um país", disse Reinert, em entrevista ao Valor.

Valor: O senhor diz no seu livro que os países ricos se tornaram ricos porque, por décadas ou mesmo séculos, subsidiaram e protegeram indústrias e serviços dinâmicos. Por que essa estratégia não tem sido seguida por muitos países pobres nas últimas décadas? Quem seria o culpado?
Erik Reinert: Isso pode ser explicado pelo estudo dos padrões cíclicos de longo prazo na "moda" da economia: políticas bem-sucedidas ao longo do tempo levaram a uma forma eufórica de fundamentalismo de mercado, e essa "hubris" [arrogância, confiança excessiva], por sua vez, leva a uma forma de colapso econômico. Desde o fim dos anos 1400 a Inglaterra protegeu a sua indústria manufatureira. No começo do anos 1800, o país não precisava de proteção industrial. Baseada na teoria de comércio de David Ricardo (1817), a Inglaterra parou de proteger a agricultura (1846) e criou um momento internacional de sucesso para a "ideologia" do "laissez-faire". O fim dessa ideologia ocorreu rapidamente: uma grande crise financeira em 1847 foi sucedida por revoluções em todos os grandes países europeus, com exceção da Inglaterra e da Rússia, em 1848. A crise que começou em 1929 mostrou um padrão similar. Em 1933, John Maynard Keynes admitiu que a ideia do livre-comércio, que ele via como parte da lei moral, estava errada. Crises mudaram a teoria dominante em 1848 e em 1933. Depois da Segunda Guerra Mundial nós tivemos uma ideologia baseada nos princípios do Plano Marshall: todas as nações devem poder se industrializar. Isso produziu o que hoje é conhecido como "les trente glorieuses": 30 anos de crescimento excepcional, nunca vistos antes no mundo. Isso incluiu o "milagre brasileiro". Mais tarde, especialmente depois da queda do muro de Berlim, em 1989, a utopia do livre mercado/livre-comércio novamente reuniu ímpeto ideológico, até o seu recente colapso com a crise financeira de 2008 e, em 2016, com o Brexit e com Bernie Sanders e Donald Trump concordando que o livre-comércio prejudica os EUA. Em 1933, Keynes admitiu que fatos suficientes haviam se acumulado contra a utopia do livre-comércio e ele mudou de ideia. Hoje, podemos culpar a economia "mainstream" por não seguir o exemplo de Keynes. Nós podemos essencialmente culpar a ideologia e os economistas e instituições econômicas que a promoveram.

"Todos os países ricos passaram por fase sem livre-comércio, 
o que depois tornou o livre-comércio, 
quando bem-sucedido, desejável"

Valor: O senhor diz que as diferenças entre países ricos e pobres é que todos países ricos tiveram um período sem livre-comércio. Quais são os melhores exemplos. Não há exceções?
Reinert: O ex-economista-chefe do Banco Mundial Justin Yifu Lin escreveu recentemente: "Exceto por alguns poucos países exportadores de petróleo, nenhum país jamais se tornou rico sem primeiro ter se industrializado". Eu acrescento a isso que nenhum país jamais atingiu isso sem proteção. A Inglaterra protegeu a sua indústria por mais de 300 anos, a Coreia do Sul por talvez apenas 40, mas todos fizeram isso. Algumas vezes, a proteção ocorreu involuntariamente por meio da imposição de boicotes, como na África do Sul e no Sul da Rodésia sob o apartheid, mas foram extremamente bem-sucedidos do mesmo modo. Os resultados não intencionais muito positivos de boicotes comerciais parecem ter sido entendidos. Quando o Ocidente quis punir a Rússia recentemente, optou por um boicote financeiro, e não por um boicote comercial. O melhor exemplo provavelmente são os Estados Unidos, que involuntariamente começaram a proteção sob as guerras napoleônicas. Tarifas também tiveram um efeito importante para a renda fiscal. No fim do século XIX, rendas provenientes de tarifas cobriam até 70% do orçamento federal dos Estados Unidos. O imposto de renda federal só começou [a ser cobrado] depois que a renda das tarifas caíram drasticamente. Os Estados Unidos representam uma transição quase perfeita da proteção ao livre-comércio quando a sua indústria já estava suficientemente sólida. A melhor exceção em que eu consigo pensar é Hong Kong. Mas mal se trata de um país.

Valor: Como o senhor vê a economia brasileira? O país enfrenta uma recessão grave, que começou há quase três anos. O governo de Dilma Rousseff, que tentou proteger a indústria e adotou políticas mais intervencionistas, fracassou em estimular o crescimento sustentado.
Erik Reinert: Dois dos problemas brasileiros parecem ser juros elevados e demanda fraca. A teoria de David Ricardo do comércio internacional celebra o seu 200º aniversário em 2017. Na minha visão, essa teoria é a principal raiz da desigualdade de renda entre as nações. Como os economistas dos Estados Unidos descobriram no século XIX, é claramente possível para um país ter uma vantagem comparativa em ser pobre. Mas David Ricardo estava certo num ponto importante: o nível natural do salário de qualquer economia é o de subsistência. Por que empregadores pagam mais do que o necessário para manter o trabalhador vivo? Isso faz com que nós esqueçamos a importância da demanda para o desenvolvimento econômico. Vindo de uma país que faz fronteira com a União Soviética, eu achava o comunismo um sistema horrível. Mas, estranhamente, eu comecei a sentir falta dele. O comunismo era uma "ameaça crível" à economia capitalista de mercado, uma ameaça que deu poder aos sindicatos e salários decentes na indústria manufatureira. Com salários reais em queda, nós vemos a demanda encolhendo, e o ciclo virtuoso do "milagre brasileiro" é revertido. A ideologia global da austeridade reforça esses círculos viciosos. Nós também devemos lembrar o que a pesquisadora venezuelana Carlota Perez nos ensinou: mudanças tecnológicas ocorrem em "arrancadas", à medida que janelas de oportunidade abrem e fecham. "Os 30 anos gloriosos" se basearam na produção padronizada em massa de bens industriais. Agora, com mais crescimento no setor de serviços, enquanto a China tomou boa parte da atividade manufatureira, nós temos novos desafios. Os anos 1970 nunca voltarão, e numa economia globalizada é difícil reconquistar terreno perdido.

Valor: O senhor diz que é um erro considerar o crescimento impressionante da China, da Índia e da Coreia do Sul como um exemplo de sucesso da globalização. Por quê? Eles seguiram ou estão seguindo a estratégia que os países ricos adotaram no passado?
Erik Reinert: Sim. Desde o fim dos anos 1950 a China e a Índia perseguiram constantemente uma política industrial em grande parte protecionista, embora não necessariamente a mais racional. Como parte do conflito da Guerra Fria, permitiu-se que a Coreia do Sul quebrasse todas as regras para conter o comunismo. Apresentar simplesmente o sucesso desses países como um sucesso da globalização é fundamentalmente desonesto. Parece-me razoavelmente claro que, enquanto o Ocidente começou a acreditar em sua própria propaganda - nos benefícios do livre-comércio em qualquer circunstância -, o Leste da Ásia entendeu e emulou o mesmo jogo que o Ocidente jogava com as suas colônias de fato. O fato de que tanto a esquerda, com Bernie Sanders, quanto a direita, com Donald Trump, essencialmente concordaram que o livre-comércio não é mais do interesse dos Estados Unidos foi uma importante reviravolta ideológica também para o resto do mundo. Isso basicamente repete as reviravoltas de 1848 e 1933.

Valor: Na América Latina, países como Peru, Colômbia, Chile e México têm mostrado nos últimos anos um desempenho melhor em termos de crescimento do que países como Brasil e Argentina. Os primeiros adotaram políticas mais ortodoxas e de livre-comércio que os segundos, embora Brasil e Argentina tenham mudado recentemente a orientação de suas políticas. O senhor considera a estratégia do primeiro grupo um sucesso ou o seu melhor desempenho relativo não é suficiente para ser classificado como um sucesso?
Erik Reinert: O boom de preços de produtos básicos que começou logo depois da virada do milênio indubitavelmente ajudou países como Peru e Chile. Os preços do cobre, por exemplo, quadruplicaram antes de terem desabado [nos últimos anos]. Nos dois países, os salários nos anos 1970 entraram em colapso e descolaram do crescimento do PIB, como nos Estados Unidos. Esse é um fenômeno essencialmente global. Do ponto de vista do PIB e do comércio global, esses países podem parecer melhores do que o Brasil, mas se nós quisermos maximizar o bem-estar humano - mais do que o comércio internacional eles têm um desempenho pobre. Mas, de novo, esses países são diferentes. Apesar de sua ideologia, parece-me que o Chile fez um trabalho melhor que o Peru em agregar valor a seus produtos básicos, tanto no cobre quanto no vinho. Apesar dos crimes e horror cometidos, o general Pinochet era mais um fascista do que um neoliberal. E fascistas, como comunistas, entenderam a importância da indústria manufatureira. A política econômica peruana foi mais neoliberal e, desse modo, mais danosa. Espero que não achem que os meus comentários sobre o fascismo e o comunismo significam que simpatize com qualquer um dos dois. Eu apenas disse que o entendimento deles sobre a política industrial e a estrutura econômica eram bem melhores do que a dos neoliberais.

Valor: Há uma onda global de populismo, como o Brexit e a vitória de Trump ilustram, o que parece ser uma consequência de um descontentamento relativamente disseminado com a globalização. Em que medida as suas ideias ajudam a explicar o que está ocorrendo nos Estados Unidos e em vários países europeus?
Erik Reinert: Acho que 2016 representa uma ruptura importante com a utopia do livre mercado, como em 1848 e 1933. Embora as alternativas atuais pareçam sombrias, eu saúdo a mudança como um alerta ideológico necessário. Em 1848, mesmo o arquétipo do liberal John Stuart Mill retratou-se sobre os benefícios automáticos do livre-comércio. Os anos 1930 nos deram três ideologias contra o "laissez-faire": fascismo, comunismo e Roosevelt e o "New Deal". Na Europa, os políticos que não gostam da situação presente são frequentemente classificados como comunistas ou fascistas. É o "New Deal" de Roosevelt que precisamos trazer de volta, não as outras duas ideologias! Nós devemos nos perguntar como um "New Deal" deve parecer no cenário atual, trazendo de volta as lições de Roosevelt e de seu extremamente inteligente presidente do Fed, Marriner Eccles, que atuou de 1934 a 1948. Em várias maneiras, Eccles antecipou Keynes e administrou a demanda, a estrutura econômica, comércio, distribuição de renda e moeda. Os 30 anos gloriosos depois de 1945, período ao qual pertence o surto de crescimento do "milagre brasileiro", se basearam nas lições dos anos 1930.
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Fonte:  http://www.valor.com.br/cultura/4857026/ruptura-com-utopia-do-livre-mercado    
- Cad. EU&FIM DE SEMANA, 03 de fevereiro de 2017, pág. 14 e 15.