quarta-feira, 25 de outubro de 2017

A gente não quer só comida

Julio de Oliveira Silva*

 
 
Alimentação na escola
Com a farinata, Doria distingue a alimentação digna, privilégio de sua casta, 
da nutrição da força de trabalho, um inconveniente  a ser contornado Share
Acervo Monteiro Lobato/Fotos Públicas

Privar crianças do acesso a uma alimentação digna retira dessas pessoas a possibilidade de uma existência plena

Há pouco mais de 30 anos, quando a banda Titãs e a sociedade brasileira exigiam uma cidadania plena, com diversão e balé, era difícil imaginar que pedir apenas comida seria um dia uma posição audaciosa.

Pois cá estamos, 2017, uma época em que a cultura é criminalizada e nossos governantes nos obrigam a repensar o significado da alimentação.

O prefeito de São Paulo, João Doria Jr., ao propor a distribuição de restos de comida transformados em ração à população mais vulnerável, é pelo menos consequente com sua visão de mundo.
Uma visão forjada ao longo de séculos de escravidão da qual ele é, literalmente, herdeiro, tendo entre seus antepassados senhores de engenho donos de escravos.

Não é coincidência que uma das principais "publicações" do "grupo Doria" seja uma revista chamada Caviar Lifestyle. Ao mesmo tempo, o prefeito, em vídeo de 2007, questiona em seu reality show se os pobres e miseráveis possuem "hábitos alimentares". Claro que não.

Dória é consistente quando distingue a alimentação digna, privilégio de sua casta, e a nutrição da força de trabalho, um inconveniente a ser contornado.

Nenhuma novidade.

Celso Furtado nos recorda, por exemplo, que em momentos de alta no preço do açúcar os senhores de engenho aumentavam a área de canavial em prejuízo da cultura de subsistência, levando a episódios de fome entre escravos e a pequena população livre e pobre.

A deterioração da merenda escolar parece ser prioridade, dentro de um projeto de abandono dos mais vulneráveis. Derrubar casas com gente dentro, tirar o leite das criancinhas (Programa Leve Leite, criado pelo Maluf!), fechamento de unidades de atendimento de saúde, o desastre da cracolândia apenas demonstram para quê e quem Doria governa.

O recente episódio da ração humana, abençoada pela igreja católica, é apenas mais um capítulo nessa novela distópica.

A falta de transparência, a já notória truculência com que se apresentam projetos, tem sido amplamente criticadas pela mídia, assim como o aparente trambique entre empresas de fachada, grandes interesses corporativos e um prefeito em plena campanha.Tratarei, portanto, de aspectos culturais e econômicos, não menos centrais à essa questão.

Fome, um projeto das elites 

Os brasileiros costumam apreciar a gastronomia americana. Hambúrgueres, cachorro-quente, batata-frita e onion rings, até bolacha (ou biscoito, para os cariocas) eles fritam.

A seção de congelados de um supermercado qualquer possui opções de culinárias internacionais, refeições completas prontas para o microondas.

Embora muitos prefiram tais comodidades, o que se observa há alguns anos é o retorno a hábitos alimentares mais tradicionais e menos dependentes de alimentos processados.

Recorrentes estudos da Organização Mundial da Saúde e outras entidades que se dedicam ao tema apontam para a necessidade uma alimentação balanceada, que inclua ingredientes "de verdade", como arroz, feijão, carne, salada.

Os EUA, que passaram por um processo de urbanização anterior e mais abrangente do que o brasileiro, além de serem o centro mundial da comida industrializada, são o mau exemplo nessa história.

O país apresenta um dos maiores índices de obesidade e, menos frequentemente notado, sua população perdeu em larga medida as referências alimentares mais básicas. Muitas vezes, fazendo compras por aqui, tive de explicar ao caixa do supermercado que aquilo era uma beterraba, uma batata doce ou um rabanete.

A perda de contato com o campo, aliada ao barateamento relativo dos produtos industrializados frente aos orgânicos, levou os EUA à atual situação. Ao mesmo tempo, hoje, cozinhar tornou-se um sinal de sofisticação das classes mais altas.

O Brasil, quanto a isso, é um país privilegiado.

Temos ao menos cinco gastronomias distintas, todas elas riquíssimas, e o antropofagismo de Oswald de Andrade chegou aos pratos dos "quilos", onde se misturam sushi e picanha com a maior naturalidade. Já na carta de Pero Vaz descreve-se não a fome dos locais, que não havia, mas a fartura de um paraíso na terra. A fome chegou com os portugueses e é um projeto das elites governantes desde então.

Mantivemos, no entanto, ao longo do tempo, hábitos alimentares que não apenas nutrem o corpo, mas fazem parte da nossa cultura e sociabilidade. O almoço na casa da avó, o churrasco com os amigos, a feijoada no domingo. São experiências que se opõem à tendência de homogeinização e isolamento e nos dão algum sentido de pertencimento.

A alimentação, o ato de preparar alimentos, já disse Lévi Strauss, é pilar fundamental de uma sociedade e um sinal de sua sofisticação. Outros bons exemplos seriam o México ou o Japão.

A proposta da ração humana de Doria vai na contramão do que dizem os especialistas, do que somos como sociedade e das políticas bem sucedidas que já estavam em curso na gestão de Fernando Haddad (PT), subitamente interrompidas, bem com no nível federal, com o Programa de Aquisição de Alimentos.

Mais um retrocesso, que contraria, inclusive, o Guia Alimentar para a População Brasileira, de 2014, publicado pelo Ministério da Saúde.

A receita que tirou o Brasil do mapa da fome é simples: promoção da agricultura familiar e local, o que reduz custos logísticos, com financiamento subsidiado e seguro de safra e uso da produção em escolas e hospitais (além do aumento da renda e emprego, é claro).

Tal política barateia os alimentos não-processados para todos e, de bônus, mantém o pequeno agricultor no campo, reduzindo desigualdades regionais e pressões sobre os centros urbanos. Há ampla evidência, por fim, de que uma alimentação saudável reduz os custos com saúde.

Privar crianças e vulneráveis do acesso a uma alimentação digna retira dessas pessoas a possibilidade de uma existência plena, reduzindo-as a máquinas que necessitam de combustível.

Como entender todas as referências da cultura brasileira à comida, os tantos sambas que dão água na boca, as naturezas mortas que retratam para eles objetos desconhecidos?

Nenhuma natureza morta seria mais morta do que um quadro daquelas bolotas cinzas e insossas apresentadas por Doria. Aos eruditos, que seria de Proust e sua obra-prima se as "madeleines" fossem feitas com farinata?
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* Julio de Oliveira Silva é economista e diplomata, vice-cônsul do Brasil em Nova York. Os artigos refletem exclusivamente as ideias do autor e não representam, de maneira alguma, posicionamentos ou proposições do Ministério das Relações Exteriores
FONTE:  https://www.cartacapital.com.br/sociedade/a-gente-nao-quer-so-comida 24/10/2017

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