O escritor Milton Hatoum Marcos Vilas Boas
O escritor se prepara para lançar o primeiro volume de uma trilogia que fala sobre a ditadura militar
Brasília
surgiu no meio do cerrado como uma utopia, o símbolo de um país que se
avizinhava novo e integrava seu próprio território. Em pouco,
transformou-se em distopia. Sob a ditadura militar
e seus atos institucionais, as avenidas largas, as quadras planejadas,
os espaços rarefeitos de edifícios e gentes, o vazio de uma cidade
erigida do zero se aliou ao vazio existencial e político do Brasil. O
que resultou disso foi uma sensação de obra inconclusa, de alienação. É
esse o cenário de A Noite da Espera, o primeiro volume da trilogia O Lugar Mais Sombrio, que o escritor Milton Hatoum lança no dia 27 de outubro pela editora Companhia das Letras.
Em seu escritório em São Paulo,
Hatoum diz que a capital do fim dos anos 1960, menos de uma década
depois da inauguração, era a metáfora do inacabado, pois interrompido
pelo golpe militar. Ele sabe por experiência própria, porque, meio
nômade – cresceu em Manaus e morou na Europa –, também viveu três anos,
de 1967 a 1970, em Brasília. “Habitávamos um grande deserto, que é
também um labirinto do qual não se consegue escapar”, diz. A sensação
vem do próprio conceito da capital, a cidade parque, sem esquinas, sem
cruzamentos, sem ruas de bairro, mas que, combinado “com o golpe
militar, deu em algo fatal, pois o vazio, que era da cidade e era nosso,
era governado pelo medo” infligido pelo autoritarismo.
Em A Noite da Espera,
Hatoum conta a história de Martim, um adolescente paulistano que
muda-se para Brasília com o pai, que acaba de atravessar uma separação
traumática e misteriosa com sua mãe no fim dos anos 1960. Já em Paris,
dez anos depois, o protagonista revisita aqueles anos tentando
reconstruir, a partir de memórias, reminiscências e cartas, os anos
turbulentos que passou na capital. Assim, a narrativa não é construída
por um discurso linear em terceira pessoa, mas conduzida por fragmentos
de textos repletos de vazios, interrupções e reflexões. A escolha formal
do escritor conversa com a cidade e com o próprio Martim, que se
ressente da ausência da mãe, não compreende o momento político do país e
descobre um mundo novo a partir do contato com um grupo de amigos
aspirantes a artistas e intelectuais.
E esse é um do principais méritos deste primeiro volume da trilogia A Noite da Espera – que Hatoum lança nove anos depois da publicação de seu último romance, Órfãos do Eldorado
–, recriar a sensação de isolamento, algo absurdo, que se tinha na
Brasília sob a ditadura. Martim e seus amigos pertenciam a uma geração
que, se não experimentou a estabilidade e a tranquilidade no Brasil,
estava preparada para colher os frutos de um país cada vez mais moderno,
livre e inventivo, “mas que foi bruscamente e brutalmente interrompido
pelo golpe”. “A sensação que ficou era essa: a impossibilidade de
dizer”.
Escrevendo o romance faz cerca de sete anos, o escritor não
poderia saber o clima turbulento que o lançamento do primeiro livro
encontraria, mas diz não se espantar. “Voltamos, novamente, ao
‘pequenino fascismo tupiniquim’ de que Graciliano Ramos falava em Memórias do Cárcere [escrito nos anos 1930 durante a prisão do escritor na ditadura Vargas]. De outro modo, por que a performance de um ator nu
seria associada à pedofilia?”, indaga. “Só mentes muito obscuras podem
fazer essa associação. É uma sociedade que odeia a arte, porque odeia a
liberdade. Que se cala ante o assassinato de homossexuais e é favorável a leis que dificultam a fiscalização do trabalho escravo.
Eu me pergunto qual é o projeto dessas pessoas. Onde elas querem chegar
com isso? Mas não me surpreende. Foi isso ontem, é isso hoje, no Brasil
e na América Latina”.
Ao longo dos três livros (Hatoum ainda está trabalhando, sem
data para lançamento, nos próximos volumes, que se passarão em São
Paulo e Paris), Martim vai passando da ingenuidade adolescente para a
vida adulta. E, possivelmente, do exílio dentro de seu próprio país em
Brasília – fugido de seus traumas pessoais e um pouco alheio ao que
acontecia ao seu redor – para a condição de exilado real na fria Europa.
Segundo o escritor, sem o seu protagonista não haveria romance de
formação e, ademais, ele é o representante da maioria. “Os jovens eram
como ele, não como os amigos mais combativos e politizados que ele fez
em Brasília. Ele é um ingênuo, imagina uma vida em uma casinha caiçara
enquanto o Brasil implode”.
Em A Noite da Espera, o trauma da ruptura familiar e
o sonho idílico de Martim vêm antes da preocupação política, mas nem
uma coisa nem outra são capazes de mantê-lo a salvo do autoritarismo –
assim como também acontece com a utopia da capital modelo. Em uma
passagem do romance, o personagem rema despreocupadamente no lago
Paranoá, que circunda toda a cidade, até que, cansado, adormece. É
acordado por militares que o levam preso quando seu bote toca a margem
do Palácio da Alvorada, residência presidencial – embora seu único
“crime” fosse estar perdido flutuando na água. Martim é toda uma
geração: condenada por calhar de ser jovem em 1968, poucos meses antes do Ato Institucional nº5, antessala da proliferação dos porões e paus-de-arara dos militares.
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Reportagem por André de Oliveira - São Paulo
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