sexta-feira, 27 de outubro de 2017

Milton Hatoum: “O Brasil vive um eterno romance de desilusão”

O escritor Milton Hatoum

O escritor Milton Hatoum

O escritor se prepara para lançar o primeiro volume de uma trilogia que fala sobre a ditadura militar

Brasília surgiu no meio do cerrado como uma utopia, o símbolo de um país que se avizinhava novo e integrava seu próprio território. Em pouco, transformou-se em distopia. Sob a ditadura militar e seus atos institucionais, as avenidas largas, as quadras planejadas, os espaços rarefeitos de edifícios e gentes, o vazio de uma cidade erigida do zero se aliou ao vazio existencial e político do Brasil. O que resultou disso foi uma sensação de obra inconclusa, de alienação. É esse o cenário de A Noite da Espera, o primeiro volume da trilogia O Lugar Mais Sombrio, que o escritor Milton Hatoum lança no dia 27 de outubro pela editora Companhia das Letras.

Em seu escritório em São Paulo, Hatoum diz que a capital do fim dos anos 1960, menos de uma década depois da inauguração, era a metáfora do inacabado, pois interrompido pelo golpe militar. Ele sabe por experiência própria, porque, meio nômade – cresceu em Manaus e morou na Europa –, também viveu três anos, de 1967 a 1970, em Brasília. “Habitávamos um grande deserto, que é também um labirinto do qual não se consegue escapar”, diz. A sensação vem do próprio conceito da capital, a cidade parque, sem esquinas, sem cruzamentos, sem ruas de bairro, mas que, combinado “com o golpe militar, deu em algo fatal, pois o vazio, que era da cidade e era nosso, era governado pelo medo” infligido pelo autoritarismo.

Em A Noite da Espera, Hatoum conta a história de Martim, um adolescente paulistano que muda-se para Brasília com o pai, que acaba de atravessar uma separação traumática e misteriosa com sua mãe no fim dos anos 1960. Já em Paris, dez anos depois, o protagonista revisita aqueles anos tentando reconstruir, a partir de memórias, reminiscências e cartas, os anos turbulentos que passou na capital. Assim, a narrativa não é construída por um discurso linear em terceira pessoa, mas conduzida por fragmentos de textos repletos de vazios, interrupções e reflexões. A escolha formal do escritor conversa com a cidade e com o próprio Martim, que se ressente da ausência da mãe, não compreende o momento político do país e descobre um mundo novo a partir do contato com um grupo de amigos aspirantes a artistas e intelectuais.

E esse é um do principais méritos deste primeiro volume da trilogia A Noite da Espera – que Hatoum lança nove anos depois da publicação de seu último romance, Órfãos do Eldorado –, recriar a sensação de isolamento, algo absurdo, que se tinha na Brasília sob a ditadura. Martim e seus amigos pertenciam a uma geração que, se não experimentou a estabilidade e a tranquilidade no Brasil, estava preparada para colher os frutos de um país cada vez mais moderno, livre e inventivo, “mas que foi bruscamente e brutalmente interrompido pelo golpe”. “A sensação que ficou era essa: a impossibilidade de dizer”.

"É o romance da desilusão no país que vive um eterno romance da desilusão”, diz Hatoum. Para ele, há um claro paralelismo entre o que a geração de Martim – e dele próprio – viveu e o que se vive agora. “O Brasil, parece ser sempre assim, caminha numa trajetória ascendente, com avanços sociais e, de repente, mergulha na desilusão, no desamparo”, continua o escritor. “Hoje, a geração de 1994 é, assim como a de Martim, a geração da desilusão. Eles viram o país avançando para chegar a um momento de ruptura brusca com um impeachment, um golpe parlamentar, que alterou a trajetória ascendente de estabilidade e conquistas”.

Escrevendo o romance faz cerca de sete anos, o escritor não poderia saber o clima turbulento que o lançamento do primeiro livro encontraria, mas diz não se espantar. “Voltamos, novamente, ao ‘pequenino fascismo tupiniquim’ de que Graciliano Ramos falava em Memórias do Cárcere [escrito nos anos 1930 durante a prisão do escritor na ditadura Vargas]. De outro modo, por que a performance de um ator nu seria associada à pedofilia?”, indaga. “Só mentes muito obscuras podem fazer essa associação. É uma sociedade que odeia a arte, porque odeia a liberdade. Que se cala ante o assassinato de homossexuais e é favorável a leis que dificultam a fiscalização do trabalho escravo. Eu me pergunto qual é o projeto dessas pessoas. Onde elas querem chegar com isso? Mas não me surpreende. Foi isso ontem, é isso hoje, no Brasil e na América Latina”.
Lançamento será no em 27 de outubro 
Lançamento será no em 27 de outubro
Ao longo dos três livros (Hatoum ainda está trabalhando, sem data para lançamento, nos próximos volumes, que se passarão em São Paulo e Paris), Martim vai passando da ingenuidade adolescente para a vida adulta. E, possivelmente, do exílio dentro de seu próprio país em Brasília – fugido de seus traumas pessoais e um pouco alheio ao que acontecia ao seu redor – para a condição de exilado real na fria Europa. Segundo o escritor, sem o seu protagonista não haveria romance de formação e, ademais, ele é o representante da maioria. “Os jovens eram como ele, não como os amigos mais combativos e politizados que ele fez em Brasília. Ele é um ingênuo, imagina uma vida em uma casinha caiçara enquanto o Brasil implode”.

Em A Noite da Espera, o trauma da ruptura familiar e o sonho idílico de Martim vêm antes da preocupação política, mas nem uma coisa nem outra são capazes de mantê-lo a salvo do autoritarismo – assim como também acontece com a utopia da capital modelo. Em uma passagem do romance, o personagem rema despreocupadamente no lago Paranoá, que circunda toda a cidade, até que, cansado, adormece. É acordado por militares que o levam preso quando seu bote toca a margem do Palácio da Alvorada, residência presidencial – embora seu único “crime” fosse estar perdido flutuando na água. Martim é toda uma geração: condenada por calhar de ser jovem em 1968, poucos meses antes do Ato Institucional nº5, antessala da proliferação dos porões e paus-de-arara dos militares.
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Reportagem por  André de Oliveira - São Paulo

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