Richard Baldwin, um dos maiores especialistas sobre a globalização, veio
a Portugal discutir a desigualdade numa conferência na Fundação
Francisco Manuel dos Santos. E está convicto que a tecnologia vai passar
a
ser alvo de críticas da sociedade.
A revolução tecnológica e a globalização
colocam novos problemas à economia, problemas esses que têm vindo a ser
combatidos com fórmulas antigas e desadequadas. Para Richard Baldwin,
hoje faz sentido voltar a discutir quem detém os meios de produção, como
dar a todos os cidadãos um rendimento mínimo de sobrevivência e o
aumento do peso do Estado.
A convicção de que toda a gente beneficia com a globalização faz algum sentido face ao que sabemos hoje?
Creio que provavelmente isso nunca foi verdade, no sentido em que há
sempre quem ganhe e quem perca. Até um certo ponto, o próprio conceito
de globalização assenta no favorecimento dos sectores mais competitivos,
ao mesmo tempo que afasta as pessoas dos sectores menos competitivos —
ou seja, a globalização tende sempre a oferecer mais oportunidades aos
cidadãos mais competitivos e a aumentar a competição para os cidadãos
menos competitivos. Mas os ganhos de uns superam as perdas de outros, e
com as medidas certas a nível nacional todos podem progredir. Por isso,
quando existe um progresso geral, talvez possamos dizer que toda a gente
é beneficiada mas, per se, a globalização só é directamente
vantajosa para os mais competitivos. O progresso está exactamente na
transferência de recursos dos sectores menos competitivos para os mais
competitivos. Sempre foi assim, simplesmente isso ocorre agora de
maneira mais rápida e mais óbvia.
E o carácter aleatório dos efeitos da globalização também é cada vez mais óbvio.
Sim,
hoje conseguimos olhar para o efeito da globalização na economia com um
grau de detalhe muito maior. Antes, havia a tendência para aglomerar os
sectores, e a competição media-se pelos bens que cruzavam fronteiras.
Portanto, analisava-se os ganhos e as perdas pelo prisma de todo o
processo de produção de um determinado bem material. Agora, dado que a
globalização permite a fragmentação dos processos de produção, é
possível analisar as várias etapas dos processos de produção. Mais
recentemente, começámos mesmo a observar esses efeitos a nível do
indivíduo, porque passou a ser possível competir individualmente na
economia global. Tanto podemos perder o emprego para um qualquer
departamento informático na Índia, como podemos beneficiar deste
contexto.
Esse maior grau de detalhe que podemos
identificar na globalização deve-se ao facto de hoje a globalização
afectar não só os bens, mas também os serviços e o conhecimento?
Isso
é o que eu chamo a “terceira onda da globalização”. Os avanços na
tecnologia das comunicações e no processamento de informação, as
tecnologias de disrupção digital, estão a fazer com que seja mais fácil
às pessoas prestarem os seus serviços remotamente. Por exemplo, empresas
americanas contratam programadores que vivem no Paquistão ou na
Ucrânia, e que fazem o seu trabalho de lá. Isso é uma tendência cada vez
mais generalizada, mesmo dentro dos países, à medida que as empresas
vão mudando a maneira como trabalham. As hierarquias vão-se reduzindo e o
trabalho organiza-se em projectos independentes. Tudo isso faz com que
seja mais fácil a participação de pessoas que não estão fisicamente no
local de trabalho. O passo seguinte é um trabalhador de uma empresa da
Baixa de Lisboa não estar nos subúrbios de Lisboa, mas no Quénia. O
trabalho remoto e o teletrabalho estão a internacionalizar-se e essa
“terceira onda” da globalização, que se aplica aos serviços e não só à
produção (que irá continuar a desenvolver-se, como até aqui), é a face
mais visível da mudança de paradigma, e irá manifestar-se, por exemplo,
numa competição salarial directa com estrangeiros.
Devemos então pensar em proteger os postos de trabalho e não os trabalhadores?
Eu
iria até mais longe do que isso. A economia está a mudar a um ritmo
mais acelerado. A tecnologia cada vez mais desenvolvida, nomeadamente a
digital, faz com que os produtos percam a relevância e até a utilidade
de ano para ano — as modas e as tecnologias evoluem muito rapidamente. A
noção de que é preciso manter os postos de trabalho como forma de
proteger os trabalhadores é uma falácia, não funciona assim. A
alternativa, que é onde se baseia o conceito de flexicurity, é
um modelo assente numa espécie de contrato social, pelo qual quando se
perde o emprego — seja devido à globalização, à automação, à idade ou a
mudanças climáticas, o que seja — o Estado e a sociedade têm a obrigação
de ajudar o trabalhador a ajustar-se à nova realidade. Pode não
funcionar para toda a gente, mas é um modelo que pelo menos dá uma
oportunidade aos menos favorecidos: todos estão na mesma “equipa”,
vencedores e vencidos. Isto é a maneira de nos focarmos nos
trabalhadores, em vez de nos postos de trabalho. A maneira antiga, as
tentativas de protecção da indústria têxtil ou do calçado, acabou. Pode
adiar os problemas por uns meses ou um ano, mas já não funciona.
E quão preparados estão os países para estas mudanças?
A
maior parte dos países europeus estará relativamente bem preparada, no
sentido em que muitos já têm boas políticas para um mercado de trabalho
activo. Verifica-se que no Sul da Europa há uma tendência para a
manutenção de leis de trabalho mais proteccionistas, que apontam mais
para a protecção dos empregos, mas isso está a desaparecer. E esse
fenómeno acontece num mercado de trabalho dual: protecção do emprego dos
mais velhos, enquanto os mais novos têm de lidar com esta nova
economia. Na Europa existe pelo menos a noção de que a sociedade deve
ajudar os que perdem o emprego a ajustarem-se e a enfrentarem os
desafios. É nos Estados Unidos, principalmente, que vemos que as pessoas
estão entregues à sua sorte. Olha-se para quem fica sem trabalho como
se fosse ou estúpido ou preguiçoso e as pessoas tendem a culpar-se a si
próprias. Ao mesmo tempo, os ganhos obtidos com a globalização e a
tecnologia são canalizados para as elites, e é isso que causa esta
reacção negativa, que vimos bem na campanha de Trump.
Portanto, é um problema não só das instituições mas também dos indivíduos?
Sim,
o maior problema é a impreparação das pessoas para a velocidade com que
estas mudanças estão a ocorrer. E isto começa agora a atingir o sector
dos serviços, que até aqui era visto como um sector não-transaccionável.
Um empregado fabril em Portugal sabe bem o que é a globalização, já há
muito que é afectado por ela, mas um empregado de escritório ou um
bancário não está preparado para que o seu posto seja entregue a alguém
que recebe menos do que ele. Em simultâneo, os mesmos avanços
tecnológicos estão também a trazer cada vez mais automação e
inteligência artificial, por isso estamos perante um duplo desafio para o
sector dos serviços, que terá de enfrentar tanto a globalização como a
automação. Vai ocorrer uma revolta social contra a tecnologia, vejo isso
a acontecer nos próximos três a cinco anos. Da mesma forma que
apontamos o dedo à China ou ao islão ou aos imigrantes, creio que vamos
começar a ver as pessoas a culparem a tecnologia. Um bom exemplo é a
Uber e as reacções que tem provocado. Hoje em dia, a maior parte das
pessoas olha para estas questões como histórias interessantes e
isoladas, mas daqui a pouco tempo será mais óbvio que tudo isto está
relacionado, que a tecnologia está a mudar o mundo, e que nós como
sociedade temos de abrandar e assumir o controlo.
Pensa então que essas reacções negativas vão ocorrer mais nos Estados Unidos do que na Europa?
Sim,
porque nos EUA não existe protecção do trabalhador, que está por sua
conta, e portanto haverá uma maior tendência para isso. Nos Estados
Unidos há 20 anos que o salário médio não sobe. A Administração Bush
teve oito anos para solucionar isso e nada aconteceu. Oito anos de
Administração Obama, a mesma coisa. E por muito que Trump prometa o
contrário, também ele não vai conseguir mudar nada. E, quando os
americanos perceberem isso, prevejo que vão culpar a tecnologia — mas é
um fenómeno global. Tal como temos visto as pessoas a protestarem contra
a globalização ou contra os imigrantes — pelo menos nos países mais
ricos —, o mesmo irá acontecer relativamente à tecnologia. Claro que os
níveis são diferentes — perder o emprego em França não significa que uma
pessoa se torne sem-abrigo ou que uma família seja destruída.
Mesmo
assim, dentro da União Europeia (UE) há realidades muito distintas, até
em termos salariais. Não deveria a UE tentar uma uniformização dessas
realidades antes de se preparar para enfrentar essa nova realidade?
Certo.
A questão do salário mínimo é complexa. Creio ser algo que é
fundamentalmente uma questão nacional e que mexe com sensibilidades
nacionais. É preciso ter cuidado com aquilo que desejamos: se a Alemanha
fizer subir os salários portugueses, também a competição que Portugal
irá enfrentar será muito diferente. Em muitos países, os baixos salários
são um factor da competitividade desse próprio país, e os países mais
ricos adorariam ver esfumar-se essa competitividade. Acredito que os
países deviam apostar menos nas políticas regionais e concentrar-se mais
na ajuda directa à população, nomeadamente na aprendizagem de novas
competências.
Em Portugal isso é especialmente verdade,
porque temos a segunda taxa mais baixa de ensino médio a nível europeu,
ao mesmo tempo que nos debatemos com um grande envelhecimento da
população, num momento muito delicado para as empresas. Num quadro como
este, deveria a UE intervir?
Sim, mas em termos de
educação e formação, e não em estradas e aeroportos desnecessários.
Reagir à globalização com uma estratégia baseada nas infra-estruturas é
próprio de uma lógica centrada na produção e na construção. Mas esta
globalização afecta também os outros sectores, e isso torna as coisas
muito diferentes. É por isso que defendo uma reforma das políticas
regionais, das quais um exemplo seria as políticas agrícolas. Creio ser
um erro esperar que a UE resolva os problemas de cada país, porque 99%
dos problemas são nacionais. Primeiro é preciso pôr a nossa casa em
ordem. Não quer dizer que não haja possibilidade de medidas
supranacionais, como políticas agrícolas comuns, mas todo esse dinheiro
tem de ser canalizado para outras prioridades.
Já afirmou que os impostos sobre o trabalho não funcionam. Como irá então acontecer essa redistribuição dos meios de produção?
Depende
da velocidade a que estes fenómenos se sucederem. Se acontecerem muito
rapidamente, irão provocar uma convulsão, o que levará inevitavelmente a
uma grande agitação social. Tal como aconteceu na crise global, que
levou a uma regulação maciça do sector bancário, e que politicamente não
teria sido possível antes, ou como nos anos 30, com a introdução do
Estado social, da taxação dos rendimentos ou da educação universal. Eu
vejo esta questão mais a longo prazo, e aquilo que me preocupa (é,
aliás, o tema do meu próximo livro) é que as pessoas não estão cientes,
ou estão em negação, da rapidez com que isto pode acontecer. É para isso
que tento chamar a atenção.
Há muitos caminhos possíveis para o
longo prazo, nomeadamente no que se refere aos impostos e ao
desenvolvimento da tecnologia. Se a tecnologia evoluir como os
caminhos-de-ferro, em que há uma rede detida apenas por uma empresa,
então vamos ter um problema, porque essa empresa terá tanto poder que
mesmo o poder político não terá legitimidade para lhe exigir um imposto
de 90%. Mas também pode evoluir para um sistema como o dos carros, em
que cada pessoa é proprietária do seu, descentralizando assim essa
realidade económica. Ainda não é certo como se vai processar esta
evolução, mas no entretanto é nosso dever fazermos com que todo esse
poder não se concentre na mão de umas poucas empresas, principalmente
estrangeiras. Não sou totalmente contra o investimento estrangeiro, mas
se a Google e a Amazon fizerem tudo para toda a gente do mundo, isso
será um problema para a Europa e para a Ásia e para todos os outros
continentes.
Se precisamos que os governos façam mais, como fazê-lo sem provocar uma grande ineficiência do sector público?
Creio
que um bom ponto de partida são os sistemas que temos actualmente no
Canadá e na Europa. As pessoas vão ter de mudar de emprego mais vezes,
mas esse elemento-base de mudar de emprego e procurar um novo trabalho
não é nada de revolucionário, são apenas as mudanças sociais a
acontecerem mais rapidamente. Acho que essas medidas têm de ser
reforçadas e enquadradas politicamente, para que as pessoas percebam que
os governos sabem que estes são tempos de mudança e que estão a dar o
seu melhor para as ajudar, e não se culpem a si próprias nem acreditem
num qualquer lunático que diz que a culpa é da tecnologia ou de outra
coisa qualquer. Creio que grande parte da resposta está no discurso
político.
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