António Lobo Antunes*
Vamos tomar este comprimidinho, vamos ver a nossa temperatura, vamos beber, excepcionalmente, um golinho de água. Isto depois de me cegarem com a lâmpada do tecto, no interior da qual o insecto que eu era se agitava
Os
olhos das pessoas nas camas dos hospitais, que gritam em silêncio o
tempo todo, ensurdecendo-me. Quantas vezes, ao ir-me embora, tinha a
certeza de sair dali a gritar também. Claro que nas alturas em que fui
internado estou certo que os meus olhos não se calavam igualmente mesmo
que tentasse sorrir. Sobretudo à noite, quando ficava sozinho,
acompanhado pelo rectângulo mais claro da janela, a certeza que a noite
lá fora me trazia apenas tristeza e sofrimento. Depois, de repente,
acendiam as luzes, mexiam em mim, injectavam-me ou davam-me remédios a
engolir, saíam outra vez e eu estupefacto que fossem capazes de andar,
eu que nem sequer conseguia carregar na campainha, ao lado da almofada,
que me diziam servir para chamar os enfermeiros, os quais se dirigiam
quase sempre a mim na primeira pessoa do plural, cheios de diminutivos
surpreendentes:
– Vamos tomar este comprimidinho, vamos ver a nossa temperatura, vamos beber, excepcionalmente, um golinho de água.
Isto
depois de me cegarem com a lâmpada do tecto, no interior da qual o
insecto que eu era se agitava, movendo as pobres patas filiformes, sem
entender, arrepiado, aflito. A claridade desaparecia, as solas diminuíam
no corredor, eis a janela de novo, eis o silêncio, eis o que designam
de noite. Tão escura a noite, tão indecifrável, tão plena de ameaças
confusas, terríveis, contra as quais as minhas pobres mãos quietas nada
podiam, os meus joelhos agudos nada podiam, as frágeis membranas das
minhas pálpebras nada podiam.
De vez em quando uma torre no corredor,
um telefone longíssimo, vagos sons dispersos, o colchão tão duro na
minha coluna, suponho que pernas, lá em baixo, que considerava minhas e
não as sentia. Sentia, quando muito, um ténue zumbido à minha roda mas
de quem, mas de quê, meio submerso em trevas fixas, opacas. Sentia os
meus dentes, incapazes de morderem, de morderem-se, a pasta sem forma da
língua, feita de areia e lama. O ar entrava e saía, numa espécie de
assobio vago, no meu corpo esburacado. Não pensava em ninguém. Não
pensava fosse no que fosse: encontrava-me dentro de um pobre verme
inerte, restos de eu que não existiam já.
E tentando dizer
– Eu
que
som me chegaria? Se a morte é isto não é difícil nem estranha, apenas a
continuação de uma queda sem fim apesar de imóvel. De tempos a tempos
vagos rostos inexplicáveis, vagos gestos, vagas palavras, gestos e
palavras que não me pertenciam: o que me pertencia era um vazio
gorduroso que parecia pulsar, uma ausência mas de quê, nem sequer uma
dor: uma ausência absoluta, sem motivo, sem nexo, que me não dizia
respeito, dizia respeito ao escuro que me rodeava, entrando em mim e
afastando-se de mim, eu que sem mim possuía. Tudo tão distante agora,
tão alheio, tão vago. Nome? Se me perguntassem, por exemplo, o nome, não
compreendia a pergunta. O que significa um nome, o que quer dizer um
nome, que coisa é um nome, o que se faz com um nome, eu que nem me
interrogava acerca do nome consoante não me interrogava acerca fosse do
que fosse: o que são interrogações, o que são respostas? Estamos já
depois disso, não descubro os nexos de nada, não penso, não questiono,
aceito se isto é aceitar, se isto é continuar vivo ainda. Continuar
vivo? Qual o sentido de vivo, o que quer dizer? Vivo que palavra
estranha, mais que estranha: impossível. A luz de novo, que aceito sem
aceitar nem rejeitar: sou um objecto ou nem sequer um objecto, algo que
deixou de haver. Que diferença faz que haja ou não é uma pergunta que
não formulo porque não formulo perguntas nem me interessam perguntas,
afasto-me apenas, quer dizer não me afasto sequer, não sou, nunca fui,
já não grito. Nenhum grito. NENHUM GRITO. Nenhum grito mas também
nenhuma paz. Um restinho de areia, um restinho de pó. Não: nem areia,
nem pó, uma espécie de entrada numa espécie de espaço e não entrada nem
espaço, somente uma queda invisível, uma espécie de queda imóvel numa
espécie de ausência que, por sua vez, desaparece também. Agora posso
levantar-me e partir mau grado não ser eu quem se levanta e parte. Quem
é? Não sei, não tenho curiosidade em saber. NÃO TENHO NADA.
E o não ter
nada desvanece-se também. Fica a janela apenas. E a noite que cessa.
Só
queria, só queria, só queria, só queria, só que queri, só quer, só que,
só qu, só q, só, s
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* Escritor e psiquiatra português.
Crónica publicada na VISÃO 1284 de 12 de outubro
Fonte: http://visao.sapo.pt/opiniao/opiniao_antonioloboantunes/2017-10-19-E-pronto
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