Christian Dunker em debate com Pierre Dardot, Christian Laval e Laura Carvalho sobre o livro Comum, no “Seminário Internacional 1917: o ano que abalou o mundo” (foto de Artur Renzo). A gravação integral da mesa está disponível na TV Boitempo!
A virada moralista que tomou conta do Brasil nos útlimos tempos é apenas uma negação recorrente da importância e do valor do que é comum.
Por Christian Ingo Lenz Dunker.*
O debate que tivemos com Christian Laval e Pierre Dardot
parece cair em um momento crucial da situação brasileira. Mais do que
nunca, se acirra no Brasil de hoje a falsa oposição entre o Estado e o
mercado. Ao identificarmos o estatal com o público, e o público com o
estatal ficamos sem alternativa positiva e prática aos argumentos de
austeridade que justificam e naturalizam o desmonte de direitos, a
precarização de equipamentos e predação de bens públicos. Essa autêntica
terapia de reversão força uma escolha entre o Estado-público e a
possessão privada. Por trás desta retórica há um argumento econômico:
não há dinheiro para tudo e para todos. Começa então uma luta
administrada para resistir ou se reapossar do Estado.
A alternativa que Dardot e Laval nos apresentam em seu novo livro, Comum: ensaio sobre a revolução no século XXI, ultrapassa
justamente este ponto. Criticando o paradigma estatista, que no Brasil
tornou-se sinônimo agressivo de esquerda, eles nos mostram como esta é
uma falsa escolha, precisamente porque além do Estatal e do privado há o
comum. O comum que pode ser gerido e instituído de forma comum. O comum
que subverte o binário formado por usuários de um lado e funcionários
do outro.
O livro traz sete proposições claras para este momento:
- É preciso construir uma política do comum, por meio da qual nossas instituições possam ser reconstruídas como instituições comuns.
- É preciso contrapor “direito de uso” a “propriedade”. Hoje, a propriedade é um conceito jurídico que determina o que significa possuir algo, em detrimento de usar algo.
- O comum é o princípio de emancipação do trabalho.
- É preciso instituir empresas comuns.
- A associação econômica deve preparar a sociedade do comum.
- O comum deve fundar a democracia social.
- O serviços públicos devem ser instituições do comum, que podem se federalizar e se internacionalizar.
Neste sentido a reconstrução do estatal
como comum poderia passar, por exemplo, pela retomada da UERJ, uma
importante universidade brasileira, como uma universidade comum. Os
equipamentos de saúde mental que estão sendo deteriorados ou empreitados
por comunidades religiosas em São Paulo poderiam ser retomados como
lugares instituídos e geridos pelos comuns. Nesses casos hipotéticos
recoloca-se o problema da produção envolvendo a circulação e gestão do
dinheiro no espaço dos comuns, inclusive do ponto de vista do direito
econômico.
Esse novo tipo de direito de uso que
recria o que já existe não depende nem apela para a noção de bens comuns
ou bens coletivos, pois não se trata de objetos passíveis de serem
partilhados ou cedidos, mas de relações de uso: “um rio não é
um rio, mas a conexão entre um rio e o coletivo que cuida dele”.
Acompanhamos recentemente a experiência de desapropriação de um rio, o
Xingu, por ocasião da construção da barragem de Belomonte, que desalojou
uma grande população no norte do Brasil.
Quando pensamos na crítica do conceito de
propriedade contido na ideia de bem comum, quando discutimos a práxis
instituinte do comum e quando falamos dos limites entre o uso e o abuso,
sempre vem à mente a partilha de experiências desejáveis e
potencialmente úteis. Mas é preciso pensar também no mal-estar comum,
nos destinos do que não gostamos ou do que não nos reconhecemos e ainda
assim faz parte de nossa experiência do comum.
O neoliberalismo não é apenas uma
proposta econômica, mas também uma moral que apreende o sofrimento como
uma nova fronteira do “capital humano”. Produzir anomia para vender
segurança. Propor metas semestrais inalcançáveis para ter o pretexto
subsequente para realizar ajustes instrumentais. Produzir competição
nociva entre os próprios funcionários de uma empresa para extrair mais
produtividade. Demandar mais serviço do que um trabalhador pode atender
para deixá-lo em estado permanente de déficit. Produzir medo
para criar mais subserviência. Criar trabalhos sazonais e contrários
precários para administrar a competição angustiada por uma oportunidade
de emprego. Ou seja, fazer sofrer mais para render mais. Todas estas
táticas que não foram inventadas pelo neoliberalismo, mas articuladas
por ele como um projeto de unificação a vida em forma de empresa.
* * *
Consideremos agora o cenário reverso e
veremos como a recente crise moral que tomou conta do Brasil reflete uma
perda premeditada da experiência do comum. Consideramos a massa de
pessoas que legítima e genuinamente decidiram fazer alguma coisa para
alterar o quaro institucional brasileiro. Vestiram camisas da seleção
brasileira, bateram panelas, apoiaram a Lava Jato e festejaram a grande
vitória, que daria início à grande virada com um novo Brasil assado a
limpo pelo MBL, pelos jovens, pelos movimentos de renovação.
Não é preciso imputar má fé a tão grande
número de envolvidos, nem mesmo temer que a população seja sempre
irracional quando se organiza em grupos. Havia, de parte a parte, a
emergência de um comum, tanto nas manifestações tanto de direita quanto
de esquerda que antecederam a destituição de Dilma. O comum emerge, para
o bem e para o mal, com expectativas de gestão e de continuidade entre
os meios e os fins, de repetição de processos, de reformulação de
práticas. Ocorre que nada disso ocorreu. Escândalos maiores e
imoralidades piores vieram à luz sem que as mesmas punições fossem
aplicadas. As reformas apresentadas não se mostram em continuidade com o
movimento comum que as antecedeu. A gestão da crise não presta contas
nem reconhece os atores que lhe deram causa. As lideranças políticas e
judiciárias permanecem, como sempre foram ao longo de toda a crise,
agindo autonomamente, sem participação dos grupos que se mobilizaram em
torno da insatisfação comum. As pesquisas de opinião mostram massiva
desaprovação em relação a quase todas as iniciativas do governo tampão.
Então, o que seria mais fácil:
reconhecer, envergonhadamente, que se foi enganado ou criar novos e mais
poderosos inimigos? É o que se vê nas discussões morais que tomaram
conta do país. Sumariamente:
- Quem antes reclamava da qualidade de nossa escola agora silencia diante de um pacote tirado do bolso, na última hora, sem a participação de educadores e especialistas. A educação deixa de ser uma instituição comum.
- Quem antes pedia uma reforma política “higienista”, agora se contenta com mais uma versão de “a raposa que toma conta do galinheiro”. A política deixa de se orientar, explicitamente, para o comum e se torna propriedade de bancadas movidas pela autoconservação.
- Quem antes pedia pela redução do custo Brasil e pelo fim de nosso burocratismo, viu apenas a regulamentação do trabalho se flexibilizar.
- Quem antes pedia por mais desenvolvimento e menos “ignorância”, agora aplaude o corte de verbas para ciência e tecnologia.
- Quem antes atacava as empresas estatais como fonte e origem do atraso e da corrupção nacional agora recusa-se a entregá-las para a administração comum, transparente e aberta.
- Quem antes advogava uma Escola sem Partido, agora aprova o ensino religioso unidimensional.
- Quem antes pedia por mais liberdade e menos doutrinação, agora aprova o fechamento da Queermuseu em Porto Alegre, a retirada de quadros eróticos em Goiânia ou chama de pedofilia a performance artística envolvendo a nudez, no Museu de Arte Moderna de São Paulo.
Como se vê, a virada moralista é apenas
uma negação recorrente da importância e do valor do que é comum. Estamos
na negação direta de cada um dos sete princípios que, segundo Laval e
Dardot, constituem o comum. A negação do comum corresponde à criação de
novos inimigos. Inimigos necessários para que o tamanho de nosso “nós”
se avolume, nos afastando de toda comunidade com o “eles”.
A negação do comum é compreensível como
regressão individualista em meio à vergonha e o medo. Um efeito indireto
da grande dissonância cognitiva que se tem que resolver para
convencer-se de que todo o trabalho para tirar Dilma em nenhuma hipótese
pudesse corresponder ao apoio dado a Temer. Como se fosse possível
querer os fins, mas não querer os meios. Quando percebemos nossa própria
contradição, quando ela fica perto demais, a reação mais simples é
falar mais alto, gritar para esquecer de que nós e nossos inimigos somos
feitos da mesma matéria prima.
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Christian Dunker está realizando na TV Boitempo uma leitura comentada de seu livro, vencedor do Prêmio Jabuti, Mal-estar, sofrimento e sintoma: uma psicopatologia do Brasil entre muros. Toda semana publicamos uma aula nova sobre um dos capítulos do livro. Não perca!
Christian Ingo Lenz Dunker
é psicanalista, professor Livre-Docente do Instituto de Psicologia da
Universidade de São Paulo (USP), Analista Membro de Escola (A.M.E.) do
Fórum do Campo Lacaniano e fundador do Laboratório de Teoria Social,
Filosofia e Psicanálise da USP. Autor de Estrutura e Constituição da Clínica Psicanalítica (AnnaBlume, 2011) vencedor do prêmio Jabuti de melhor livro em Psicologia e Psicanálise em 2012 e um dos autores da coletânea Bala Perdida: a violência policial no Brasil e os desafios para sua superação (Boitempo, 2015). Seu livro mais recente é Mal-estar, sofrimento e sintoma: a psicopatologia do Brasil entre muros (Boitempo,
2015), também vencedor do prêmio Jabuti na categoria de Psicologia e
Psicanálise. Desde 2008 coordena, junto com Vladimir Safatle e Nelson da
Silva Junior, o projeto de pesquisa Patologias do Social: crítica da razão diagnóstica em psicanálise. Colabora com o Blog da Boitempo mensalmente, às quartas.
Fonte: https://blogdaboitempo.com.br/2017/10/27/a-pratica-do-comum-e-a-necessidade-de-inimigos/
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