domingo, 22 de outubro de 2017

E se o erro, a fabulação, o engano revelarem-se tão essenciais quanto a verdade?

OSWALDO GIACOIA JUNIOR *
 Resultado de imagem para notícias falsas, ou "fake news"
 
RESUMO O autor analisa o atual fenômeno de relativização da verdade à luz de conceitos como o perspectivismo nietzschiano. Ele sustenta que, num cenário de produção e consumo ininterruptos de informação, a ambiguidade do conteúdo difundido parece ser pré-requisito para despertar o interesse do público e fidelizá-lo. 


Integram o cortejo dos espectros que rondam Donald Trump, presidente dos Estados Unidos, certas noções vagas como "pós-verdade" e "cultura pós-factual", as quais, a despeito de sua fluidez, aparecem no debate público como se fossem conceitos filosóficos. 

Ambas designam a poluição da mídia por notícias falsas, ou "fake news", e geram uma transformação nas relações entre verdade e mentira. Já não se pergunta simplesmente se uma notícia é falsa ou verdadeira, mas em que consiste a noção de verdade de uma informação. Ou seja, a própria ideia de verdade surge como um problema. 

Declarações ambíguas, enviesadas, enganosas ou derivadas de enganos são na prática equiparadas a mentiras inventadas deliberadamente pelos mais diversos motivos: ganhar dinheiro de anunciantes, alcançar resultados eleitorais específicos, formar e influenciar correntes de opinião, induzir metas de políticas públicas e reforçar vínculos de identificação coletiva, formatando maneiras de pensar e sentir em determinados segmentos sociais. 

Avulta entre essas figuras a "disinformatzya": o objetivo aqui não é defender uma bandeira particular ou atacar um adversário determinado, mas causar desinformação. Inundam-se os suportes de difusão de mensagens com afirmações falaciosas e distorções sensacionalistas no intuito de minar as bases de confiança tanto dos veículos tradicionais de comunicação quanto das diferentes redes informáticas que se aninham na internet. 

Trata-se, portanto, de solapar o crédito de informações que se pretendem objetivas, como se não houvesse um critério para diferenciar a notícia falsa da verdadeira. O leitor, largado num meio sabidamente repleto de mentiras, pode nivelar por baixo e duvidar de todos os conteúdos publicados, ou pode agarrar-se àqueles que lhe pareçam mais apropriados. 


Zanone Fraissat/Folhapress
'Arte de vandalizar/Pixo, existo', pichação de Djan Ivson, artista que ilustra a edição da Ilustríssima de 19 de fevereiro 
Que importa se, objetivamente, era possível medir o tamanho do público presente à cerimônia de posse de Trump? O governo americano sentiu-se à vontade para mencionar um número maior, iniciativa que depois uma assessora do presidente definiu como a apresentação de "fatos alternativos".
Não existe nesse tipo de atitude nada que se confunda com a postura filosófica do perspectivismo, segundo o qual o ponto de vista de cada um interfere no modo de conhecer e apreender a verdade (que existe). Na era da "pós-verdade", tudo se passa como se a verdade simplesmente não existisse e todos os pontos de vista tivessem valor idêntico -como se a suposta "verdade" divulgada pelo governo americano não fosse pior do que a "verdade" factual apurada pelos jornais tradicionais. 

Ora, se todas as "verdades" são igualmente válidas, se cada cidadão pode escolher o ponto de vista de seu agrado, qual o sentido de um debate público que busque o esclarecimento? Em outras palavras, está em jogo o emprego sistemático de técnicas de propaganda para obliterar e entorpecer a capacidade de pensar criticamente. 

O filósofo Friedrich Nietzsche (1844-1900), falsamente identificado como precursor desse relativismo ambientado na penumbra em que todos os gatos são pardos, foi, em vez disso, o pensador que antecipou um conflito eventual que pode nos ajudar a compreender as agruras do momento problemático que atravessamos. 

É conhecida sua formulação: e se o erro, a falsidade, o engano revelarem-se, tanto quanto a verdade, essenciais como meios úteis para a conservação da vida? Essa pergunta incomoda o pensamento filosófico desde que Nietzsche teve a ousadia de colocá-la em toda sua extensão e profundidade. 

Ora, os fenômenos que nos confrontam hoje podem ser interpretados na chave hermenêutica que Nietzsche generosamente nos colocou nas mãos. Vivenciamos um conflito entre verdade e condições de existência. De que existência, porém, se trata aqui? Daquela que, como pensava Nietzsche, sempre se produz em termos de relações de poder, de jogos de força em que encontram apoio e expressão interesses vitais, desejos, temores, expectativas de reconhecimento, aspirações de domínio e estratégias de resistência. 

Identifiquemos, então, algumas das variáveis no debate atual sobre a definição e as consequências das "fake news" para os rumos da cultura e da política nas democracias contemporâneas. 

VERIFICAÇÃO
 
Com a explosão dos novos meios de comunicação no ambiente digital, distribuídos pela malha includente da sociedade global em arranjos de alta capilaridade (rizomáticos, a rigor) e se reproduzindo em milhares de centros virtuais dificilmente localizáveis e responsabilizáveis (nos sentidos ético e jurídico), torna-se instável a possibilidade de verificação isenta de fatos, bem como muito mais dinâmica e inventiva a produção e a circulação de mensagens, seja qual for o seu teor. 

Em sociedades lastreadas na troca de informações e na comunicação sustentada por tecnologias de ponta, que se autorreplicam e formatam todos os setores da vida -economia, política, educação, cultura etc.-, os interesses estratégicos e as condições de existência estão estreitamente vinculados às possibilidades, tecnologicamente facilitadas, de "tornar-comum" o conteúdo veiculado, ou seja, de difundi-lo a um universo amplo de pessoas e de reduzi-lo a sua dimensão mais simplória, num movimento que cria oportunidades para o vulgar e o sensacionalista. 

Com isso, torna-se possível inserir nessas redes tudo o que for capaz de abastecê-las com eficiência, passando, então, a fazer parte da "nutrição cotidiana" de cada um. Não importa tanto se o conteúdo é "verdadeiro"; importa acompanhar "como a coisa rola". A ambiguidade das mensagens é condição necessária para manter acesa a avidez por "novidades", a reiteração da expectativa curiosa em espiral infinita. 

Informações transformaram-se em mercadorias intercambiáveis num arranjo cujos agentes são reduzidos ao denominador comum de consumidores e cuja lógica operante é a da produção e da circulação mercantil. 

Razão pela qual importa menos a pretensão de validade do que a expectativa de realização de desejo que a informação venha a satisfazer. Por isso adquire plausibilidade o pseudoargumento: afinal, o que é a verdade, já que temos bons motivos para descrer de toda verificação factual? 

A imputação de falsidade por parte de um opositor funciona como seu contrário. Reforça convicções previamente firmadas, preconceitos arraigados e impermeáveis a razões, mas dóceis às moções afetivas de autoidentificação. 

Daí por que notícias inventadas na esteira do sensacionalismo midiático não são desqualificadas, mas, ao contrário, reafirmadas e até estimuladas pelos melhores esforços para desmascará-las; pois o que importa para os atores e as organizações sociais interessados na proliferação desse tipo de comunicação é manter acesa a chama da curiosidade que elas atiçam e alimentar o falatório até suas derradeiras possibilidades de rendimento. 

Uma explicação para isso encontra-se na lógica interna de tais processos, infensos ao escrutínio crítico, já que o único critério que conta são os acessos, ou indicadores quantitativos de consumo. Desenvolve-se uma simbiose perfeita entre a comprovada demanda crescente dos clientes e o rendimento auferido graças à divulgação de material publicitário. 

Dado que os indicadores de acesso substituem os antigos critérios de verificação, embute-se o risco de esse novo parâmetro gerar um círculo vicioso: a quantidade de acessos quase sempre está em relação com o potencial de atração contido na distorção da mensagem. Isso significa que o horizonte de avaliação é o do impacto causado. 

Para manter vivo o interesse pela informação vale tudo, inclusive induzir e filtrar seletivamente as escolhas preferenciais do leitor por meio de algoritmos que "adivinham" sites mais consentâneos com suas tendências. As possibilidades e limites da apropriação político-ideológica dos conteúdos, bem como aquelas de seu controle responsável, são virtualmente indetermináveis, e isso a despeito de todas as catastróficas consequências que esse desregramento pode causar, dentre as quais o estímulo ao cinismo irresponsável, o desfecho eleitoral pernicioso e a destruição sistemática de reputações. 

A capacidade de pensar por si e de assumir responsabilidades por opiniões e ações passa pela antiga e saudável desconfiança e pelo esforço de nos distanciarmos do que se nos pretende impingir como última novidade, como sinal dos tempos da "pós-verdade". 

É possível que se oculte aí apenas um velho fetiche, uma manobra diversionista para desviar a atenção e dispensar da reflexão, reforçando o isolamento narcísico que parece estar vinculado à inclusão aparente e à conexão em redes de comunicação com alcance planetário. 
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* OSWALDO GIACOIA JUNIOR, 62, é professor titular de história da filosofia contemporânea e ética na Unicamp.

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