Felicidade talvez seja um romance para escrever e
pássaros para ver. Na Califórnia, onde vive, ou numa paragem de
promoção de um livro ou conferência - em Lisboa, por exemplo. Um dos
mais celebrados autores americanos confessa que foi a nostalgia que o
levou à escrita e a ira que o alimentou.
Chama-se torcicolo e tem qualquer coisa de
reptilíneo na maneira como mexe o pescoço. É um pássaro pequeno, algo
raro que se confunde com os troncos ou galhos onde costuma pousar. Come e
espreita o que o envolve, uma mata de sobreiros, um lago ladeado de
juncos, uma águia patuda que voa em círculos. O telescópio permite ver a
lista negra das penas ao longo do pescoço que se contorce. A visão do
torcicolo no silêncio da tarde quente de Outono é capaz de provocar o
maior sorriso no rosto de Jonathan Franzen e um “só por isto já valeu o
dia!”.
Se querem saber como é o escritor descontraído, “profundamente
feliz”, como afirma, é acompanhá-lo no seu passatempo preferido:
observar pássaros. Escreveu sobre isso nas suas memórias, Zona de Desconforto (original
de 2006 publicado em Portugal em 2012 pela D. Quixote). “A minha
reacção a esta felicidade foi, como seria de esperar, o receio de ter
caído nas garras de alguma coisa doentia, nociva e errada. Uma
dependência. (...) Ver uma ave interessante dava-me vontade de ficar cá
fora e ver mais aves interessantes. Não ver uma ave interessante
deixava-me triste e de mau humor, o único remédio para isso era também
continuar a observar”, escreveu então num texto sobre o princípio desse
prazer que o fazia culpar-se, por exemplo, de passar tantas horas
fechado a olhar para um computador. Voltou ao tema no romance Liberdade (D.
Quixote, 2011), mas não fala disso agora. Não fala, aliás, do escritor
no dia em que só quis matar saudades dos pássaros da Europa, quase 30
anos depois de ter estado em Portugal pela primeira vez. Veio em
trabalho, uma conferência na Fundação Luso-Americana para o
Desenvolvimento, algumas entrevistas, mas fez o que sempre faz: tirou
tempo para ver aves. Só isso. E ali está o inusitado torcicolo. Volta ao
telescópio e ao silêncio, o sorriso mantém-se; serão só mais uns
segundos, quem sabe um minuto, até o pássaro voar.
Tem que ver com
prestar atenção, com silêncio, nada disso está desligado do acto de
escrever, “a sensação exaltante” de que o “mundo está cheio de
possibilidades”, como também refere nesse texto escrito seis anos depois
de ser um escritor de sucesso, o grande escritor da América, como lhe
chamaram aos trinta e poucos anos, quando publicou Correcções, sátira a uma certa América centrada na família Lambert. Com Liberdade e Purity (D.
Quixote, 2015) associaram-no a um compromisso: o de um escritor com a
sociedade em que vive. Não é isso que o move. “Isso vem cá muito em
baixo na lista do que me faz querer ser escritor”, afirma numa conversa
em Lisboa, de janela aberta para o rio, um jardim e o canto dos pássaros
que, quando chega, o faz parar tentando adivinhar de que espécie é
aquele trinar.
Passaram-se dois anos de Purity, o romance em que Franzen explora a ambiguidade da palavra “pureza”.
A começar pela protagonista, uma jovem de vinte anos que rejeita o nome
próprio, Purity, por não se achar digna da pureza implícita, a mesma
rapariga que entra numa organização liderada por um homem que compete
com Julian Assange e a WikiLeaks. A missão é purificar o mundo,
libertá-lo da culpa que acaba por ser uma rede intrincada em que essa
mesma rede, a Internet, é o motor do novo totalitarismo. Franzen sorri. O
livro é uma sátira e nele a palavra pureza, com toda a carga de
moralismo que questiona e desmonta, não carregava o peso dos que a
evocaram para eleger Donald Trump. Pureza de valores, de raça, a América
pura como ideal político. Franzen recosta-se na cadeira, une as mãos à
volta do queixo. “Não me parece directamente ligada a Donald Trump.” Ou
talvez. “A frase que mais me ocorre e mais me parece ligada a essa ideia
é a famosa ‘drain the swamp’, drenar o pântano, a purga. Ele
chegou a Washington para drenar o pântano. Por outras palavras,
Washington está suja e corrupta e aquele homem de negócios de sucesso
quer limpar as coisas. É essa ideia de pureza que se pode associar a
Trump. Mas o candidato da pureza era talvez Bernie Sanders, que perdeu
para Hillary Clinton nas primárias.” Porquê? “Era por ele que os mais
jovens se sentiam atraídos, porque ele tinha ideias fantásticas sobre um
mundo melhor. Não foi bem-sucedido, nem sei se alguma vez poderia ser,
mas quando ele dizia que a saúde deve ser um direito universal, isso
move. É uma excelente ideia, mas de algum modo percebe-se que não vai
acontecer nos Estados Unidos.”
Facebook: ficção dissimulada
Jonathan
Franzen não esconde o incómodo em falar de Donald Trump. Preferia
sempre não o fazer, mas volta a ele de forma voluntária e recupera-o
para a conversa. “A pureza, no caso de Trump, também pode ser percebida
na lealdade pessoal que ele exige para ele e para pessoas como Steve
Bannon, o seu estratega, que montou uma campanha para purgar o Congresso
de pessoas que não fossem leais a Trump. Sempre que alguém saca do
revólver em nome da pureza, para purgar, é mau.”
Purity é um romance.
Ficção, sublinha, onde surgem perplexidades e o que se sabe ser uma
perspectiva muito crítica em relação ao modo como as novas tecnologias
se apresentaram e foram adoptadas e assimiladas pela sociedade. Há
utilidade? Sim, mas... “Indiscutivelmente, uma das coisas que me
preocupam são as multidões e as suas dinâmicas. Trato disso em Purity.
Por exemplo, a ideia de Silicon Valley poder salvar o mundo, tornar o
mundo um lugar melhor. Hoje talvez isso já nos faça sorrir. Uma das
coisas boas que aconteceram com a eleição de Trump é que as pessoas
estão a preocupar-se com as redes sociais. O Twitter entrou em
descrédito. Ele criou o Presidente Trump e continua a ser o seu palco de
discurso preferido. Mesmo o Facebook está a falhar na sua intenção de
tornar o mundo um lugar melhor. Veja-se a discussão acerca da relação
entre as fake news e o Facebook... O Facebook é uma máquina de
fazer dinheiro, não é um organismo de utilidade pública, e eles não se
podem permitir filtrar as notícias, porque se as filtrassem as pessoas
não usariam o seu produto. Isto está a começar a fazer acordar as
pessoas.” Entusiasma-se para logo moderar o tom. “A Europa tem estado à
frente dos Estados Unidos no que se refere ao receio de como estas
empresas podem afectar as nossas relações, mas mesmo na América essas
questões surgem, em parte por causa da eleição de Trump.”
Por isso está optimista. Isso mesmo. Optimista com o crescente
cinismo dos utilizadores face às redes que utilizam, a consciência de
saber que estão a ser manipulados, saber o que é editar-se como um
escritor edita as suas personagens na ficção. Um perfil de Facebook é
uma representação, há uma persona. Ter essa ideia, de que cada
um se pode falsear e de que todos se podem falsificar, ajuda a entender o
mecanismo? Outra pausa. Os silêncios de Franzen são para se situar.
Mesmo que repita um pensamento não gosta de repetir a sua formulação.
“Sim, é verdade, é como na ficção, excepto o facto de a ficção se
apresentar enquanto ficção.” E coloca assim o Facebook no capítulo da
ficção dissimulada. “É uma diferença crucial”, acrescenta, para depois
comparar o que se passa com o Facebook e as fake news com o
sistema de crédito nos Estados Unidos, que atribui um perfil de cliente
em função dos dados que obtém. É a partir dessa categoria que irá gerir a
sua vida. É a partir também dessa categorização que irá funcionar em
rede. Tudo se baseia numa suposta confiança, por um lado, e por outro na
capacidade de resposta. Em troca, o cliente ou utilizador também
confia.
“Oferecem às pessoas o que parece um meio maravilhoso
totalmente grátis; mas não é grátis, não é de borla. Não estamos a ser
servidos pela Google, mas é a Google que nos está a usar”, refere. “Nós
somos o produto, não os consumidores.”
Falava de Trump, do efeito fake news.
“Esta consciência é extremamente encorajadora. E por mais que deteste
estas empresas, não venho dizer que este é o fim dos tempos e escorregar
numa visão completamente distópica do futuro. Estamos muito no início,
mas dez anos depois das redes sociais e de vinte anos desde o Google as
pessoas estão a começar a dizer ‘espera aí, eles estão a roubar-me
informação e a vendê-la a alguém!’. Esta consciência é coisa para se
estar optimista.”
O modelo consumista das relações pessoais
Parte
da escrita de Franzen decorre na fronteira entre o privado e o modo
como esse privado ou o indivíduo se reflecte e é afectado socialmente.
Estamos em território tão íntimo quanto político. A linguagem faz parte
disso. Por exemplo, a linguagem dos protestos anti-Trump é a linguagem
certa, ajustada?
“Não”, mas faz uma pausa antes de continuar.
“Bem... alguma será. Acho que o foco das pessoas do movimento Black
Lifes Matter no apelo de Trump aos supremacistas brancos é apropriado.
Está a construir e a reerguer os supremacistas brancos e é muito duro
ser um afro-americano; temos um problema quando pomos tanta gente negra
na prisão, a polícia trata os negros pior do que os brancos. Ter um
Presidente que joga com os medos raciais é ofensivo. Por outro lado, não
acho que sirva de alguma coisa dizer que Trump é um doente mental — a
maior parte das pessoas tem doença mental —, fiquei agitado em Janeiro
quando o PEN America organizou os escritores num movimento Writers
Resist para dizer que Donald Trump era uma grande ameaça à liberdade de
expressão. E perguntei-me se tinham lido os seus tweets. A
expressão parece-me sobejamente livre nos Estados Unidos! Talvez
demasiado livre. Sim, é o pior Presidente que o país já teve. Está a
fazer coisas terríveis no ambiente, há o sentimento de estarmos entre a
maior crise de todos os tempos, mas a nível económico as coisas parecem
estar muito bem. Sim, estou preocupado com a questão da Coreia do Norte,
mas realmente ele está a falhar; não está a conseguir fazer nada.
Porque é que isso é uma crise?! Ele é um Presidente terrível que não
consegue fazer nada excepto aprovar umas poucas ordens executivas.
Porque é que não se pousa o telefone e se pensa noutra coisa? Deixem-no
ser um idiota. Se tweetar é o problema, então não... Ahhh. Não
participem nisso Ele está apenas a conseguir conteúdo para o Twitter.”
Trump
nem para personagem de romance serve, e é no romance que se foca agora.
Lêem-se os seus livros e percebem-se as camadas em que o ser humano —
personagem — se movimenta. São cinco romances desde 1988. Raramente
refere os dois primeiros, The Twenty Seventh City e Strong Motion (1992). Diz que escreveu três bons romances: Correcções, Liberdade e Purity.
Três livros, três palavras, três títulos que manifestam uma zanga
pessoal com o que essa palavra significa em determinado contexto ou
momento. As correcções dos mercados financeiros do final do século XX; a
suposta liberdade apregoada pela Administração Bush e invejada pelos
inimigos terroristas, a tal pureza que tanto pode estar na boca de
membros do Tea Party, em Silicon Valley, ou em membros da jihad.
Palavras de múltiplo sentido, ambíguas, sinal de um tempo de que o
romance faz parte enquanto todo, um universo total que pode ser lido
isoladamente e que tem vida para lá desse tempo. Mais: não pretende ser
legitimado pela sociedade que lhe deu origem. Nasce dela e ganha vida
própria quando encontra o leitor.
E a conversa segue agora para outra palavra: leitura. Saber como se edita na rede pode ajudar a ler ficção?
“Isso seria talvez possível se as pessoas que usam o smartphone passassem
a ler um livro. Não acontece. As pessoas já não lêem, e se sabem um
pouco mais acerca do modo como um escritor manipula a linguagem, isso
não nos ajuda em nada enquanto pessoas que publicam livros.” É preciso
olhar para o motivo. “As pessoas editam-se nas redes sociais com o
objectivo de que gostem dela, querem que gostem delas. Podemos
argumentar que também gosto de que os meus livros sejam apreciados e
trabalho cuidadosamente para isso. Vivo como escritor e não tenho nada
contra vender, mas nas redes sociais o que estamos a vender somos nós
próprios!. Parece o modelo consumista de comprar e vender aplicado a
larga escala ao nível das relação pessoais. Parece-me uma perda de
tempo, mas não sou grande consumidor... E nunca achei que toda a gente
gostar de mim fosse grande ideia ou fizesse muito sentido...”
Um pacto com o riso
Ele
é o homem que escreve porque isso o faz feliz e, ao contrário do que a
sua maneira de ser — facilmente irascível, confessa — pudesse sugerir, é
um escritor que tende a aproximar-se cada vez mais de quem o lê. Em
várias entrevistas, entre elas a que deu ao PÚBLICO em 2015 a propósito
de Purity, confessa que quer dar prazer a quem o lê. Nos livros
de Franzen, na ficção, memória ou ensaio, há uma relação que ele quer
cúmplice entre escritor e leitor. Para isso, fala de um pacto, de
verdade, em que o riso ajuda a compor o lado negro para onde ele tende a
ir. Chamem-lhe comediante que ele até gosta. Ou escritor público,
porque publicamente não se coíbe de manifestar posições fortes. Como
ainda recentemente, numa leitura perante estudantes em Harvard. “Então,
vamos simplesmente desistir da natureza?”, interpelou a audiência. Era
ele a chamar a atenção para as alterações climáticas, o ambiente
político, as medidas anunciadas pelo Presidente. Quando diz que não
gosta da ideia de estar comprometido com a realidade não quer dizer que
não se interesse, mas apenas que esse não é o seu projecto literário.
Volta quase ao início. A Correcções, o romance com que venceu o National Book Award. “O que se passou com Correcções foi
muito louco. Foi publicado no dia 3 de Setembro de 2001 e todo o livro
está na sombra de uma espécie de bolha que tem de ser corrigida.” A tal
correcção bolsista. Mas também outra ideia que atravessa o livro: a de
que uma geração vem para corrigir a anterior, quer suplantá-la. O filho
que se irrita com os defeitos do pai e faz tudo para não os ver em si
mesmo. A sociedade em permanente tentativa de superação. “E a correcção
aconteceu literalmente no país oito dias depois de o livro ser
publicado. Esquisito!”
Conta que de vez em quando revisita esse livro. “Pego ocasionalmente em Correcções e
há passagens que acho interessantes, boas personagens, e há coisas que
mudaria.” O quê? Porquê? “Porque mostro demais”, responde. A ideia é
sempre deixar espaço, dar espaço, silêncios. “E há por vezes um
adjectivo a mais. É isso que vejo quando olho para o livro e não uma
tentativa de representar a realidade... Não é coisa em que pense
enquanto escrevo, não sou bom a falar da representação da realidade
social.”
E recosta-se mais uma vez na cadeira. Não teme o
silêncio também nas conversas. É capaz de ficar calado e os olhos são o
único sinal de que continua na conversa. Procura a frase, a clareza da
ideia. Onde está a ira de que se alimenta? “Acho que estou a ficar mais
calmo”, ri. Poderia dizer como Denise, em Correcções: “A ira é uma ocorrência neuroquímica autónoma.” Franzen diz apenas que não sabe.
Jonathan Franzen, The Comedy of Rage,
escreveu Philip Weinstein como título da biografia literária deste
escritor do Midwest, nascido no Illinois há 58 anos. “Quem é Jonathan
Franzen e o que é a comédia da raiva?”, pergunta Weinstein no início da
introdução a este livro publicado em 2015, o ano de Purity. “A
primeira pergunta é fácil. Franzen é talvez o mais conhecido escritor
americano da sua geração” capaz de atingir os leitores mais sofisticados
aos menos exigentes. E a segunda pergunta remete para a primeira,
refere Weinstein, e é o objectivo do livro. A resposta à pergunta pode
começar assim: “Profundamente incorporado em si mesmo (ali inculcado
durante a sua infância e adolescência, e na sua experiência numa
universidade de elite) está um céptico esquisito e corrosivo.”
É isso que alimenta a literatura de Jonathan Franzen, o rapaz do Midwest.
O Midwest e a ira
É um rapaz do Midwest? “Sim, o que quer que
isso signifique”, responde, consciente de já ter tantas vezes
desmontado e voltado a montar as características, o preconceito, a
imagem associada a ser-se do interior dos Estados Unidos nem que seja
para dizer que é um rótulo como outro, cheio de falhas, excessivamente
genérico. “Mas não sou o protótipo do rapaz do Midwest. Os meus pais
eram muito do Midwest. Passaram todas as suas vidas no Missouri e no
Illinois. Não creio que ser do Midwest tenha um significado, não creio
que descreva qualquer atributo específico e que o que se possa dizer do
Midwest não possa também ser dito em relação a certas partes da
Austrália ou de Inglaterra. Acho que o Midwest é uma história que as
pessoas da Costa Leste contam a si próprias, como Nova Iorque também é
uma história que a gente do Midwest conta a si mesma. Se há alguma
diferença? Acho que a minha infância se prolongou à maneira do Midwest
quando fui para a Costa Leste. Mas estamos a falar do Midwest suburbano
em relação à Nova Iorque urbana.” E que diferença é essa? “Na Nova
Iorque urbana os miúdos são muito sofisticados e eu era muito pouco
sofisticado. Permaneci uma criança até ter 18 ou 19 anos. Tive uma
experiência traumática quando fui para a universidade com todos aqueles
nova-iorquinos super-sofisticados que tinham muito pouca paciência para a
minha inocência. Mas será que se pode dizer que o Midwest é um lugar
mais inocente? No meu caso quer apenas dizer que a inocência durou mais
dois anos. Não é ter 35 anos e ser inocente porque se está no Midwest.
Não acho que haja diferença. Mas tenho um sentimento nostálgico que me
permitiu ser criança por mais tempo, o que me arruinou junto dos meus
colegas mas também me ajudou, e é uma das razões pelas quais me tornei
escritor. Brinquei até tarde, até me interrogar: ‘Mas será que vou
passar toda a minha vida a brincar?’ É de facto o que faço. Brinco,
levanto-me e invento histórias.”
Nunca foi bem um sonho,
explica. “Quando estava a terminar o liceu, achei que era uma coisa
porreira de se fazer, ser apenas um escritor, ninguém me dizer o que
tenho de fazer, não ter de ir para a escola para poder ser isso — apesar
de gostar de escola —, ter tempo livre e inventar. E ainda por cima
darem-me dinheiro por isso. O que é que havia para não gostar nesse
trabalho?”
Nos subúrbios de St. Louis, onde cresceu, criou o centro do clã Lambert, a família à volta da qual Correcções é
construído. “Sim, parte do livro passa-se em St. Louis, mesmo que St.
Louis se chame St. Jude”, refere, descontraído, sem ira aparente mesmo
quando diz que as coisas mudaram desde então. “O Missouri transformou-se
num estado muito conservador. Era um estado que ia mudando de cor
política, o chamando swing estate, mas tornou-se um estado de
Trump de uma forma substancial. Continua a ter um senador democrata de
que sou fã e que lê os meus livros, Claire McCaskill.” Dá uma
gargalhada. “Mas o centro deste livro são uns pais muito conservadores e
três filhos que vivem na costa. Os pais não aprovam o estilo de vida
dos filhos e os filhos vivem frustrados com os valores conservadores dos
pais. Foi há 16 anos. O modo como o país mudou? Essa divisão entre a
América conservadora e a América costeira tornou-se muito mais
pronunciada.”
Escreveu sobre essa divisão em Liberdade.
“Aí temos uns brancos muito zangados no Upper Midwest, que se sentem
deixados para trás, e há os liberais por outro lado, e tudo parece
correr bem para eles; são os que têm o dinheiro. Os pobres têm os
camiões e as armas. Eis a direita que elegeu Trump e Bannon. Ou seja,
isso deixou de ser apenas um tema estético para se tornar uma
realidade”, diz o escritor para voltar a sair do tempo e entrar numa
dimensão mais universal, literária. “Essas questões estão lá porque as
personagens têm as suas circunstâncias, mas Correcções é sobre
aquele homem que está a perder a memória, o que significa ser demente.
Isso não muda. Há o que muda e há o imutável. A experiência da demência
em 1999 é muito como a experiência da demência agora”, sublinha, ao
falar de Alfred Lambert, o patriarca, a personagem que mais se orgulha
de ter criado, que como o seu pai sofre de demência e nesse processo se
vira para o interior e para o que parece ser a impossibilidade de
comunicação.
Batem à porta. A conversa tem tempo marcado. As horas
em Lisboa estão contadas. Vai falar de literatura, do grande romance
americano, da felicidade que é escrever e ler, de coisas de que gosta e
de que não gosta. Gosta de falar em público, confessa. De gerir
atenções. Sente-se à vontade. E a janela continua aberta e a atenção
desvia-se para outro pássaro. Inevitável. As cidades estão cheias de
pássaros e as pessoas não dão por isso, diz de outra forma, mais
desenvolvida. No dia seguinte falará das espécies que se podem ver no
Central Park em Nova Iorque. Continua a ter casa na grande cidade. Vive
entre a Costa Leste e a Costa Oeste, em Santa Cruz, perto da baía de
Monterrey. O rapaz do Midwest, como os filhos Lambert, converteu-se à
costa e chamam-lhe escritor urbano. “É porque tenho uma noção romântica
das cidades. As cidades atraem-me mais nos romances do que os subúrbios
ou o campo. A cidade é um fluxo de energia. Os subterrâneos, os
cruzamentos, as várias camadas. Estou sempre a ser estimulado. Eis um
rosto que nunca vi antes, o que e que ele me sugere? Uma cultura no
Leste do México? E está no metro de Nova Iorque! Tudo isso me
entusiasma. As cidades trazem a diferença. Os subúrbios e a ruralidade
não carregam essa diferença. Uma quinta será provavelmente muito
semelhante à quinta seguinte. Mas isso também está a mudar e é
interessante; o campo americano está a ficar muito mexicano. Andamos
pelo interior do Ohio ou do Iowa e as estações de rádio são quase todas
em espanhol. É fantástico. Mas a cidade enquanto ideal romântico
atrai-me como romancista.”
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Fonte: https://www.publico.pt/2017/10/18/culturaipsilon/entrevista/jonathan-franzen-tenho-um-sentimento-nostalgico-que-me-ajudou-a-ser-escritor-1789168
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