Antonio Martins*
No Brasil, reina a melancolia. Mas em países como Inglaterra e
Estados Unidos, uma postura claramente anti-neoliberal está permitindo à
esquerda reconectar-se com a sociedade
e sacudir o cenário político
Você quer optar por manter-se melancólico – e crer que o duro esforço
de recriar a esquerda é inútil, porque o mundo tornou-se
definitivamente conservador. Nesse caso, olhe para a Alemanha,
onde o partido de extrema-direita voltou ao Parlamento, pela primeira
vez desde o nazismo. É uma perspectiva sombria e real; por isso, é
legítimo escolhê-la. Mas, por favor, não diga que é a única, nem a mais
atual.
A velha mídia brasileira ainda não vê, mas rapidamente vai tomando
corpo uma outra tendência, de sentido oposto. É a reemersão inesperada,
como no final dos anos 1990, de uma crítica potente ao neoliberalismo.
Ela vai muito além dos círculos intelectuais, desperta a juventude,
propõe uma nova agenda.
Como na virada do século, o movimento teve início nos países
centrais do sistema: desta vez, Estados Unidos e Inglaterra. Comecemos
por ela. A revista Economist, que não nutre a menor simpatia por
Jeremy Corbyn, líder rebelde do Partido Trabalhista inglês, acaba de
dizer que ele é o provável próximo primeiro-ministro do país. A imagem é
eloquente: no último número da revista, Economist imagina Corbyn – um homem de 68 anos, cabelos brancos e boina – à frente da emblemática Downing Street nº
10, a sede do governo britânico. A porta principal – oh, heresia! – foi
pintada de vermelho. Diante da casa, estão postados um gato e a
bicicleta de Corbyn, também escarlate.
Não é ironia apenas. Ainda em fevereiro, Economist previu a morte
do centenário Partido Trabalhista, que seria provocada pelas políticas
rebeldes de Corbyn (repare na boina, sobre o túmulo…). Tudo mudou, em
sete meses. Por terem sido capazes de atualizar seu programa, e de se
manter fieis a ele, contra todas as pressões, os trabalhistas
reergueram-se. Nas eleições parlamentares do meio do ano, garantia-se
que seriam varridos do mapa. Mas ao invés de recuarem, e se adaptarem ao
que a mídia esperava deles, souberam dar a volta por cima.
Seu programa teve por foco a redistribuição de riquezas. Obrigar os
ricos a pagar mais impostos. Restaurar o Sistema Nacional de Saúde.
Renovar a Educação. Eliminar a cobrança de mensalidades nas escolas
públicas, introduzidas pelos conservadores e mantidas pelos trabalhistas
acomodados. Renacionalizar as ferrovias. Tudo isso sob um slogan claro:
“Para os muitos, não para os poucos”
O resultado foi um ponto totalmente fora da curva. Depois de anos de
declínio, quando obedeciam as receitas da mídia, os trabalhistas
estiveram a um passo de ganhar as eleições. Politicamente, venceram. A
primeira-ministra conservadora, Theresa May, arrasta-se, e não sabe como
lidar com o trauma que a saída da União Europeia representará. Em
poucos meses, os trabalhistas foram capazes de reanimar sua enorme
militância. Como no Reino Unido as eleições são distritais, estes
militantes dedicam-se agora
a uma tática de tensionamento da representação tradicional. Vão de casa
em casa, de pub em pub, distrito por distrito, questionar os votos dos
deputados conservadores.
Reinseriram os jovens na política. Entre a população abaixo dos 25 – reconhece Economist, não
sem um certo pesar – já têm o apoio de três em cada quatro pessoas.
Agora, querem ir adiante. Na primeira conferência do partido após as
eleições do meio do ano, que está ocorrendo neste fim de semana, Jeremy
Corbyn apresentou planos para enfrentar a especulação imobiliária – por
exemplo, estabelecendo controle público sobre os preços dos aluguéis. Ou
assegurando que, sempre que houver intervenções de “recuperação” de
áreas urbanas, os imóveis afetados retornem a seus antigos moradores
após as obras, ao invés de serem capturados pelas corporações
imobiliárias.
Corbyn também propõe – para escândalo da Economist – um quantitative easing
para o povo. Na última década, os bancos centrais emitiram rios de
dinheiro para a aristocracia financeira, alegando que era a forma de
evitar que a recessão se agravasse. Agora, este velho trabalhista
sugere: se isso foi possível, por que não podemos, também, imprimir
dinheiro para os proglramas sociais?
* * *
Um processo semelhante está ocorrendo, exatamente agora, nos Estados
Unidos. Diante do desgaste de Donald Trump, quem está se fortalecendo
não é a extrema direita que o apoiou, nem a cúpula do Partido Democrata –
mas Bernie Sanders, o candidato que questionou, nas eleições de 2016, o
domínio dos grandes bancos sobre a economia.
É a mesma Economist quem reconhece: o avanço tem por base
políticas muito concretas. Há quatro anos, Sanders, que é senador,
apresentou proposta para tornar estatal o sistema de assistência à
Saúde. Ninguém o apoiou. Há poucas semanas, ele voltou a reapresentar a
proposta: teve adesão de 16 senadores democratas, entre eles todos os
demais possíveis candidatos à presidência, em 2020. A mudança de ares é
vasta. A maior parte dos militantes já arova a proposta de um salário
mínimo de 15 dólares por hora (que Hillary não assumiu em 2016). Também
defende um pacote de investimentos públicos de 1 trilhão de dólares na
economia e o controle estatal sobre os oligopólios. “Os democratas
apoiam a intervenção governamental sobre a econoia numa escala não vista
desde o New Deal” de Franklin Roosevelt, admite, ainda que a
contragosto, a revista britânica.
A onda de direita é global, inundou o Brasil, emerge em cada post no
Facebook. Mas, vê-se claramente agora, não é o único fenômeno político
contemporâneo. Diante de um mundo dividido, há, entre tantas, duas
atitudes principais. A primeira é render-se comodamente à melancolia, ao
fim do mundo. A outra, muito mais difícil e desafiadora é imaginar as
alternativas.
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* É Editor do
Outras Palavras
Fonte: http://outraspalavras.net/brasil/outra-esquerda-e-possivel/
Imagem da Internet
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