Lya Luft*
Esse pássaro noturno pousado em meu ombro me faz sentir o quanto todo o
resto parece pequeno
Hoje, quando escrevo isto, está uma manhã brilhante, clara. Olho a
paisagem enquanto tomo meu café, vejo algumas notícias de jornal e TV porque
isso é um de meus vícios, venho ligar este computador porque tenho trabalho –
mas a notícia da morte de mais uma pessoa jovem pousa no meu ombro como uma ave
noturna.
Há alguns anos, comecei um romance (O Quarto Fechado) com uma
cena que nasceu lá dos cantos retorcidos do meu coração: pai e mãe sentados dos
dois lados do caixão do filho adolescente morto. Toda a trama do livro parte
desse momento, e acho que com ele termina. Não sei mais por que me ocorreu,
nunca vi cena igual, mas tudo o que lemos, sonhamos, vivemos, nos contam, se
deposita no nosso inconsciente como aquela lamazinha no fundo de um aquário.
Escrever é como mexer ali com um lápis, uma varinha: tudo vem à superfície.
Morte é o grande enigma; morte de jovens é o coração mais escuro desse
enigma, ali onde nem o amor alcança. "Gente demais morrendo",
queixou-se uma amiga. Acrescentei "jovens demais morrendo" – por
doença, por fatalidades, ou porque namoram, nas drogas, a morte. Lembro das
visitas que fiz, anos atrás (gosto de repetir), a uma famosa clínica para
recuperação de adictos no interior de São Paulo. Da estrada, via-se um belo
resort (acho que ainda nem usávamos a palavra): colinas, edifício bonito de
dois andares, árvores, piscina grande. À beira dela, grupinhos de jovens,
biquínis e sungas, guarda-sóis, alguém batucava um samba numa das pontas, e
todos pareciam alegres.
Morte é o grande enigma; morte de jovens
é o coração mais escuro desse
enigma,
ali onde nem o amor alcança.
Mais tarde, chegando perto deles, vi poucos olhares atentos: a maioria
distantes, parados, ausentes de si mesmos. Vários pulsos com cicatrizes ou
ainda curativos. Depoimentos angustiados ou ditos com indiferença: muitos eram
assíduos ali, tinham alta e em semanas ou menos estavam de volta. Mesmo lá
dentro, sob vigilância que devia ser forte, conseguia-se alguma droga. Fora
dali, em casa, uma das meninas me contou que os traficantes jogavam pelotinhas
de coca pela sua janela de madrugada.
Sempre saí de lá com uma terrível sensação de desesperança, embora, sei
disso, haja os que de verdade se recuperam: agarram aquele touro selvagem pelos
chifres e, com tratamento, psiquiatra, família firme, muita sorte – sobretudo
vontade de viver e viver melhor –, vão em frente sem a fatal muleta da droga (álcool
é droga). Alguns deles, me diziam, estavam cansados. Não era por diversão que
cortavam os pulsos, saltavam da janela ou se injetavam mais veneno, querendo se
aliviar do duríssimo fardo do desalento.
"Algumas pessoas nascem mal equipadas para a vida", comentou
alguém numa dessas ocasiões, e nunca esqueci. Como se não tivessem pele que as
proteja, para elas qualquer brisa é uma dor infinita. Querem sossego, querem
alívio, querem morrer. E quando a dor é demasiada, fica difícil analisar o
sofrimento dos que vão ficar, ou a possibilidade de, horas depois, poder ter-se
arrependido.
Esse pássaro noturno pousado em meu ombro me faz sentir o quanto todo o
resto – que não é resto, sei!!! –, os mil desastres e dificuldades que por aqui
imperam, parece pequeno quando ouvimos pulsar, ameaçador, o coração do eterno
enigma.
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* Escritora.
Imagem da Internet
https://gauchazh.clicrbs.com.br/colunistas/lya-luft/noticia/2017/10/o-coracao-do-enigma-cj8gldm7y00ne01mqob1pv8rr.html
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