Rabino Nilton Bonder acha que uma aula de religião bem dada pode até abrir a cabeça do aluno, mas que escola pública não é lugar para profissões de fé
Autor renomado e um dos religiosos mais
influentes do país, o rabino Nilton Bonder, de 59 anos, evoca a própria
experiência ao falar sobre a recente e ruidosa decisão do Supremo
Tribunal Federal (STF) que permite aulas de religião nas escolas
públicas. Na infância, Bonder foi dispensado da matéria, ensinada em sua
escola por uma freira. Lembra-se até hoje de seu constrangimento quando
era o único garoto que se levantava e saía da sala. “Era um horror”,
diz. Nascido em Porto Alegre e radicado no Rio de Janeiro, Bonder
discorda da decisão do STF e acha que o ensino religioso não pode
privilegiar nenhuma confissão. Mas, feita a ressalva, é a favor da aula
de religião como meio de transmitir às crianças valores e tradições que
ultrapassam fatos, locais e datas. “É um espaço para mostrar que a vida
pode ser vista além da racionalidade”, diz nesta entrevista a VEJA.
O que representa a liberação pelo STF do ensino confessional religioso nas escolas públicas?
Vejo nas aulas dadas por padres, pastores ou rabinos uma brecha para
que a religião vire proselitismo. Colocado na base do pode ou não pode,
de se é constitucional ou não, o debate acaba restrito ao plano mais
rasteiro. A pergunta que deveria ser martelada o tempo todo é: o que se
espera que a religião acrescente à tão combalida educação brasileira?
Faltou uma reflexão sobre conteúdo. As aulas de religião deveriam abrir
aos alunos uma nova dimensão de conhecimento. Mas, se divulgam uma fé,
fecham o espectro do pensamento, o que é nocivo.
O senhor quer dizer então que ensinar uma religião específica faz mais mal do que bem?
Pode fazer mal, sim. A identificação com um grupo tem um lado tóxico,
porque há o risco de levar à cegueira. Isso acontece, por exemplo, com
as torcidas de futebol, quando descambam para a irracionalidade. Não se
constrói a diversidade apresentando uma única narrativa. E um professor
que siga uma determinada fé provavelmente encaminhará a aula na direção
que lhe pareça mais condizente com ela.
O fato de o ensino religioso ser facultativo não resolve o problema?
Ocorre que, na prática, as coisas são diferentes. Quando eu era
pequeno, frequentei durante dois anos uma escola pública em que havia
aula opcional de religião católica, dada por uma freira. Meus pais
pediram à direção que eu não participasse e foram atendidos. Mas, para
mim, era um horror. Quando chegava a hora da aula, eu tremia. Sair da
sala era um constrangimento. Cheguei a pedir a meus pais que me
deixassem ficar, só para não ser o excluído da turma. Como não
permitiram, eu me juntava a outros dois meninos judeus e ficávamos lá à
toa, esperando a aula acabar.
Na escola particular, a situação é diferente?
Sim, ali se pode ensinar uma religião específica, até porque muitas
delas estão ligadas a igrejas. Ao matricularem os filhos, os pais sabem
que tipo de ensino esperar.
A existência de aulas de religião na escola pública fere o princípio do Estado laico?
Não vejo assim. Acho até que abrir esse espaço engrandece a educação. O
Estado laico não é justificativa para banir toda e qualquer
manifestação religiosa. Pelo contrário, ele é uma proteção que a própria
Constituição criou para prevenir imposições de natureza religiosa — uma
espécie de cláusula de barreira muito sadia. Até pouco tempo atrás,
quando o Brasil era um país essencialmente católico, era justamente essa
cláusula que protegia minorias como a minha.
Na dúvida sobre como a religião deveria ser ensinada, é preferível banir essa disciplina?
Não. A presença da religião é positiva, desde que conduzida de maneira
crítica pelos educadores. É por isso que rabino, padre ou pastor não
podem dar aula em escola pública. A razão é simples: além do preparo
para lecionar, falta-lhes o distanciamento necessário.
Quem deveria então se encarregar da tarefa?
Antes de entrar no currículo, o ensino religioso precisa ser
rigorosamente avaliado por educadores que tenham em mente aonde se quer
chegar. Enfatizo isso porque o debate atual parece ignorar esse ponto
essencial. Fica a impressão de que as decisões sobre o ensino de
religião nas escolas atendem principalmente a interesses dos próprios
religiosos, em detrimento da educação e da qualidade. É um erro de
prioridades.
A decisão tomada pelo STF favorece grupos religiosos específicos?
É óbvio que sim. O que mais me preocupa, no debate atual, é saber se o
foco é mesmo a melhoria da educação ou se por trás de tudo estão grupos
religiosos tentando se infiltrar na escola. Existem disputas religiosas
no país, que na maioria das vezes se disseminam de forma silenciosa.
Aliás, na cultura brasileira muitos problemas se mantêm assim, latentes —
o racismo, a intolerância.
E aonde se deveria chegar com aulas de religião?
Levar religião às escolas pode ser uma preciosa janela para a cultura,
para as tradições, para a construção de valores e para a noção de
identidade. As religiões têm outra virtude escassa no mundo de hoje, que
são as utopias. A esperança de um futuro melhor está presente em todas
elas, ainda que expressa de maneiras diferentes.
Mas esses valores não podem ser ensinados em outras matérias?
Podem. Eles se encaixam nas aulas de história ou de geografia, por
exemplo. Mas vejo seu ensino no universo das religiões como uma espécie
de contraponto poético, um espaço para mostrar às crianças que a vida
pode ser vista para além da racionalidade. As religiões são ricas em
narrativas pouco discutidas, mas que marcaram um grupo ou a humanidade
inteira em todos os tempos. Eu adoraria, como brasileiro, aprender sobre
aquilo em que os índios acreditavam, como entendiam a passagem do
tempo.
No Brasil, a religião também se faz presente nos
crucifixos em espaços públicos e na frase “Deus seja louvado” na nota de
real. É condenável? Depende do contexto. A frase na nota
representa muito mais do que uma preferência religiosa. Trata-se da
noção coletiva de que há algo superior que guarda nosso trabalho, nosso
dinheiro. O que dá valor àquele pedaço de papel é justamente a crença
que as pessoas têm de que estão construindo algo bom. Da mesma forma,
acredito que a presença da cruz em repartições públicas funciona como um
símbolo de grandiosidade — como a águia para os Estados Unidos. Não
estou dizendo que os dois símbolos não possam ser debatidos. Aliás, se
dependesse de mim, não haveria símbolo algum. Mas percebo que, se a
frase e o crucifixo representam uma identidade nacional, eles são
válidos.
A legislação define Israel como um Estado laico,
mas, como se sabe, a religião se pronuncia ali nas mais diversas áreas.
Isso não compromete a laicidade? Compromete, sem dúvida
nenhuma, e esse é um assunto extremamente problemático, que remete às
origens do país. A própria criação de um Estado judeu que almeja ser
laico já é uma contradição em si. E Israel paga um preço alto por não
conseguir demarcar a fronteira entre Estado e religião. Para se ter uma
ideia, lá não existe nem casamento civil. É sempre civil e religioso.
Tudo é dominado pela religião.
Inclusive a sala de aula? Na educação, essa
também é uma questão bastante delicada. Israel tem uma rede pública que
é relativamente protegida da religião. Por outro lado, gasta muito
dinheiro concedendo benefícios a grupos religiosos, que dominam todas as
outras áreas e acabam por influenciar também o ensino. Vale lembrar que
estamos falando de um país em guerra e de um povo que passou por um
genocídio. Como a história da religião está muito atrelada à história
sangrenta dos judeus, os dois departamentos facilmente se misturam. O
Brasil, por suas raízes e pluralidade, teve muito mais facilidade em
delimitar onde termina a religião e começa o Estado. E deve assegurar
isso como uma conquista sagrada.
O senhor considera o Brasil um país tolerante?
Não é uma resposta fácil. Uma coisa é a letra fria da lei, a outra é
sua aplicação. Quando o Brasil reúne à mesa boas cabeças para refletir
sobre conceitos universais, coloca-se muitas vezes entre os países mais
avançados do mundo. Há uma lei contra o antissemitismo aqui que, até
onde sei, não tem igual em outra parte. Assim como existem boas leis
contra o racismo e a homofobia. O problema, portanto, não está na
teoria, mas, de novo, no modo como ela se expressa. É nesse ponto que,
apesar do verniz legal, podemos ser extremamente intolerantes em relação
a toda e qualquer diferença.
Censurar obras de arte em nome da moral — como ocorreu com as da Queermuseu, em Porto Alegre, e com a performance no Museu de Arte Moderna de São Paulo — é expressão de intolerância?
Sim. Desde que haja definição de faixa etária e avisos bem claros do
que vai ser visto, tudo bem, a obra pode ser exibida livremente. Agora, é
preciso distinguir o espaço público do privado. Se algum símbolo
judaico fosse dessacralizado em lugar público, um outdoor ou um muro, eu
reclamaria. Se um monumento macula a figura de Jesus Cristo e ofende os
cristãos, não pode estar em uma praça. Já dentro de um museu, aonde vai
quem quer, deve ser permitida toda forma de manifestação artística.
Há grupos exagerando no moralismo? É
leviano achar tudo um exagero, mas não se pode dar poder de censura às
pessoas que se sentem agredidas. Deve haver um limite aí. Até acho que
algumas vezes levar um bom processo na cabeça não faz mal ao artista,
para que ele aprenda que ser ousado requer qualidade. É importante
existir ao mesmo tempo um Estado liberal em relação às artes e um
Judiciário sensível o suficiente para analisar caso a caso e coibir
discursos de intolerância e ódio.
O senhor já foi alvo de preconceito religioso?
Há poucos anos, voltava da sinagoga usando um solidéu quando um rapaz
passou por mim de bicicleta e gritou “sai daí, seu judeuzinho”. Nunca
tinha experimentado nada parecido, mas não é a regra no Brasil.
Como vê a ascensão de grupos neonazistas nos tempos atuais?
Dá medo. O Holocausto é muito recente. Há ainda gente viva que
presenciou aquele horror. Outro dia ouvi o depoimento de um judeu
americano que dizia, aos prantos: “Nunca imaginei ver essa semente
nascendo no mundo outra vez”. Em nome desse pavor ainda evidente,
consequência de uma marca que não se apaga, uma parcela da comunidade
judaica no mundo acaba se apegando a líderes apenas pelo fato de
inspirarem proteção.
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Publicado em VEJA de 11 de outubro de 2017, edição nº 2551
http://veja.abril.com.br/brasil/proselitismo-nao/
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