Ficção e memória - Milton Hatoum:
“Todo romance é um pouco autobiográfico. Mas 'A Noite da Espera' é mais”
(Bruno Santos/VEJA.com)
Milton Hatoum fala de seu novo romance, no qual retrata a geração de jovens que viveram sob a ditadura
20 out 2017
Doze anos depois de Cinzas do Norte, o amazonense Milton Hatoum, 65 anos, volta ao romance com A Noite da Espera, o primeiro da trilogia O Lugar Mais Sombrio — os dois outros volumes devem sair em 2018 e 2019. O escritor afasta-se da Amazônia, seu cenário habitual, para
narrar a trajetória de um estudante em Brasília, durante a ditadura.
Nesta entrevista, Hatoum fala das relações entre vida e ficção.
Nos agradecimentos de A Noite da Espera, o senhor diz que o livro resultou de uma “ideia talvez involuntária” do seu editor, Luiz Schwarcz. Como foi isso? Devo
os dois primeiros volumes ao Luiz. Eu comecei pelo terceiro. Entre 2007
e 2011, escrevi a história de uma mulher franco-brasileira — história
que remonta a 1980, época em que eu morava na Espanha. Quando ele leu,
fez observações e perguntas sobre a vida de outro personagem, Martim. Então, percebi que deveria narrar a vida do Martim e do grupo dele.
Como Martim, o senhor também morou em Brasília e fez
arquitetura em São Paulo. Quanto da sua experiência pessoal entrou na
história? Todo livro é um pouco autobiográfico. Este é mais que os outros, porque é sobre um tempo que vivi, uma escola que frequentei, uma
cidade onde morei. Saí de casa aos 15 anos e me mudei para Brasília e
depois para São Paulo, porque queria estudar arquitetura — Manaus ainda não
tinha o curso naquela época. Eu queria sair da província, queria me
libertar. E fui detido pela polícia, como o Martim. Passei um dia e uma
noite preso, por participar de uma passeata. Não apanhei, mas fui
ameaçado e, na prisão, ouvi gritos de tortura. A experiência é
fundamental na literatura, embora a imaginação deva prevalecer sobre a
sua vida. O sentimento mais profundo daquilo que você viveu importa mais
do que o fato em si.
Houve alguma revisão do texto para aproximar o passado da narrativa do momento político atual? Não.
Eu não queria escrever um romance estritamente político. O livro traz a
vida do Martim, que está meio perdido. A namorada é envolvida com a
política estudantil, ele não. Havia um movimento de liberdade sexual, de
contracultura. Os jovens desejavam romper convenções sociais e
familiares. Era a ideia de Maio de 1968. Foi um sonho interrompido,
cruel e brutalmente. É um romance de formação e de desilusão.
Em certa passagem, um professor acusa um aluno de
afrontar as famílias cristãs ao ler Nietzsche. É um eco de episódios de
repressão religiosa atuais? Eu não tinha essa percepção.
Escrevi o livro há anos. Foi uma coincidência, talvez infeliz. Não
queria que o Brasil passasse por isso, nem queria ver algumas coisas
voltando — e como farsa, como diria Marx.
Já pensou em um livro de memórias? Não. Minha vida não foi interessante ou picante o suficiente. O que não consegui viver, eu imaginei.
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Fonte: http://veja.abril.com.br/revista-veja/o-que-nao-vivi-imaginei/
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