terça-feira, 24 de outubro de 2017

O VIGIA DA SAÚDE

 (Jefferson Coppola/VEJA)

O diretor da Anvisa, Jarbas Barbosa, diz que a liberação pelo Congresso dos inibidores de apetite pode desmoralizar o país e prejudicar a exportação


A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) é um dos órgãos mais polêmicos do Estado brasileiro. Recebe críticas em qualquer circunstância: quando toma ou não uma decisão e, principalmente, quando demora a fazê-lo. Nos últimos seis anos, a Anvisa proibiu os aditivos de sabor nos cigarros, liberou o uso medicinal de duas substâncias derivadas da Cannabis sativa e mediu forças com o Congresso, que, em junho passado, aprovou a produção e a venda de inibidores de apetite, apesar do veto da agência. Diretor da Anvisa desde julho de 2015, o epidemiologista Jarbas Barbosa, 60, um funcionário de perfil técnico, sem ligação com partidos, diz não querer enfrentamento com os parlamentares. Ao contrário, precisa do apoio deles para modernizar uma legislação incompatível com nosso tempo.

Em que a lei brasileira de registro de remédios está antiquada? Para um medicamento ser registrado aqui, a lei exige que ele antes tenha sido autorizado no país de origem. Isso significa que o Brasil nunca será o primeiro porto para um medicamento inovador desenvolvido no exterior. Se um laboratório americano criar um medicamento para a leishmaniose, que não conta hoje com um bom remédio, ele terá, em primeiro lugar, de gastar centenas de milhares de dólares com a FDA (a agência regulatória americana) para só depois entrar com um pedido no Brasil. Detalhe: não existe leishmaniose nos Estados Unidos. Sem essa exigência, teríamos mais flexibilidade. Outra medida necessária é incluir na legislação a possibilidade do registro temporário. Em situações muito especiais, a Anvisa poderia dar o sinal verde por um período de tempo, enquanto é feita a análise completa do dossiê sobre o remédio. Esse procedimento seria útil para doenças que não têm muitas alternativas de tratamento. Em qualquer agência do mundo, a análise de um medicamento novo leva em torno de um ano. Mas, se a droga já tem registro em outra agência, a Anvisa poderia dar uma autorização por um ano. Ao longo desse período, faria a análise e monitoraria os pacientes. Essa é uma discussão global porque, com o desenvolvimento tecnológico, é preciso que haja mecanismos que agilizem o acesso.

O registro temporário poderia ser aplicado a terapias personalizadas como a CAR-T, em que células de defesa do doente são modificadas em laboratório para atacar os seus próprios tumores? Sim. Antes que um medicamento ou terapia possam ser comercializados, eles passam por um estudo clínico de três fases com humanos. No fim da fase dois, já se tem certeza relativa de que se trata de algo seguro para o uso. Começa então a fase três do ensaio clínico, cujo principal objetivo é confirmar a eficácia do medicamento. Um estudo de fase três pode levar cinco anos para ser concluído. Para algumas situações inovadoras, como a CAR-T, será que não poderíamos dar autorização para uso já no começo da fase três? Ainda estamos discutindo mecanismos inovadores como esse. Seria necessário monitorar tudo, mas a vantagem é que as pessoas já poderiam aproveitar a nova tecnologia cinco anos antes.

A Anvisa está sempre brigando contra o tempo? Estamos trabalhando duro para nos livrar do passado de longas filas para o registro de medicamentos genéricos e similares. Todo órgão regulador sofre com a imagem do atraso, até a FDA nos Estados Unidos. A sociedade, corretamente, demanda mais velocidade, mas tem tolerância zero com qualquer risco sanitário. As pessoas querem que aquilo que é feito em um ano seja resolvido em um mês, sem perder qualidade. Não é um desafio simples.

Em junho, o Congresso liberou a volta ao mercado dos inibidores de apetite, contrariando posição da Anvisa. Esses medicamentos serão vendidos no Brasil? Dos quatro anorexígenos a que a lei se refere, a sibutramina é o único que tem registro no Brasil, e é comercializado há muito tempo. Os outros três (anfepramona, femproporex e mazindol) não têm registro e, por isso, dificilmente serão encontrados em farmácias. Embora a lei aprovada diga que esses medicamentos não precisam do aval da Anvisa, nenhum laboratório de renome vai se arriscar a fabricar um desses três inibidores e colocá-lo no mercado sem o nosso registro. Há riscos envolvidos para as empresas, inclusive o de manchar sua reputação.

Por quê? Esses medicamentos são dos anos 1970. Depois de três décadas de uso, estudos científicos mostraram que eles podem desencadear efeitos adversos, que vão de dependência a distúrbios cardiológicos e neurológicos. Além disso, não havia nenhuma comprovação de que eles ajudavam a reduzir o peso a médio e longo prazo. Como consequência, foram retirados do mercado no mundo inteiro ou tiveram a circulação restrita. Os laboratórios não comprovaram que eles eram seguros e eficazes. Mas vamos imaginar que agências reguladoras de vários países tenham errado. Para sair do impasse, bastaria que um laboratório qualquer fizesse um estudo clínico atestando a segurança e a eficácia e pedisse o registro. Isso, porém, não aconteceu.

Desde que a lei foi sancionada, quantas empresas solicitaram autorização da Anvisa para fabricar inibidores de apetite? Nenhuma.

E as farmácias de manipulação? Elas podem produzir esses medicamentos? A lei diz que estão autorizados a produção, a comercialização e o consumo. Sendo assim, algumas farmácias de manipulação podem produzir os inibidores. Da nossa parte, não tentaremos impedi-las. Mas, se elas quiserem trazer esses medicamentos do exterior, nós negaremos a importação.

Qual foi o impacto dessa decisão do Congresso para a Anvisa? O problema dos anorexígenos é parecido com o da fosfoetanolamina (refere-se à  chamada “pílula do câncer”). Nesse caso já folclórico, acreditou-se que um pesquisador brasileiro tinha inventado uma pílula que curava todos os tipos de câncer do mundo (o Senado aprovou a fosfoetanolamina em março do ano passado). Nos dois casos, dos anorexígenos e da fosfoetanolamina, o Congresso agiu contra a Constituição, que dá ao Executivo a prerrogativa exclusiva de autorizar remédios. Desta vez, a própria indústria farmacêutica reagiu contra a liberação dos inibidores de apetite pelo Congresso. O medo da indústria é que, no exterior, fique a impressão de que há dois tipos de medicamento no Brasil: os que passam pelo crivo da Anvisa e os que são liberados pelo Congresso. Isso desmoraliza a produção nacional e prejudica quem quer exportar. A indústria farmacêutica brasileira movimentou 62 bilhões de reais no ano passado. Foi um dos dois únicos setores industriais que cresceram.

Em breve, o STF pode questionar o veto da Anvisa aos cigarros aromatizados. Isso seria um retrocesso? A Anvisa não proibiu nenhum aditivo essencial para a fabricação de cigarros, apenas os que dão sabor. Do contrário, teríamos extrapolado nossas funções. Apesar de estimarmos que haja 200 000 mortes anuais no país por doenças diretamente relacionadas ao cigarro, esse é um produto legalmente permitido. O que a Anvisa fez, em 2012, foi proibir os aditivos que têm como função induzir crianças e adolescentes à iniciação precoce. Sendo o fumo um vício danoso à saúde pública, a agência que trabalha com a promoção e proteção à saúde deve proibir esses aditivos. Se o STF decidir o contrário, será mais um golpe, sim, contra a Anvisa e contra outras agências regulatórias do Brasil.

Por quê? Essa é uma questão mais ampla. Outras agências também se encontrarão em uma situação de incerteza. Seus diretores ficarão em dúvida a respeito do grau de liberdade que têm mesmo em assuntos sobre os quais a lei explicitamente diz que devem ser estudados por suas agências. A Anvisa não começou a regular cigarros do nada. A lei é que define isso. Se a legislação nos deu esse mandato específico e criou uma agência para isso, então é nossa obrigação dar o parecer técnico-­científico sobre essas questões.

A Anvisa está em guerra com o Congresso? Não, ao contrário. Estamos tentando mostrar que os deputados e senadores podem ser nossos aliados. O grande papel deles é modernizar as leis. Nós já apresentamos a eles dez propostas com nossas ideias, que foram muito bem acolhidas. Em vez de criar leis muito específicas, que podem envelhecer rapidamente, seria melhor o Congresso atualizar o ambiente regulatório e limitar-se a cobrar eficiência da Anvisa. Às vezes uma lei bem-intencionada termina criando um problema. Uma delas diz que certos alimentos precisam trazer no rótulo a frase “não contém glúten”. Mas ninguém sabe ao certo o que significa isso. Seria ter zero absoluto de glúten? Ou o máximo tolerável às pessoas que têm problemas com glúten, os celíacos? A indústria pode ficar insegura e escolher a primeira opção, estampando a frase apenas nos produtos que não têm nada de glúten. Isso acaba diminuindo o acesso dos ce­lía­cos a vários alimentos.

Os brasileiros estão deixando de tomar vacinas? Embora não seja um movimento tão forte como o que acontece nos Estados Unidos, já vemos grupos organizados em redes sociais reproduzindo os mesmos argumentos sem base científica dos americanos, como o de que vacina provoca autismo. No Brasil, há duas classes sociais em que as taxas de vacinação costumam ficar abaixo do esperado: a A e a E. Para o pessoal da classe E, embora a vacina seja de graça, levar um filho ao posto significa perder um dia de trabalho. Se os postos não abrem aos sábados ou à noite, a mãe da periferia não consegue levar o filho. Só no primeiro ano de vida dele, ela precisaria fazer isso dez vezes. Já a classe A evita a vacina por modismo. Existem até alguns médicos que, sem nenhuma base em evidência, espalham rumores entre as famílias, como o de que uma criança bem nutrida e em boas condições não tem o risco de pegar uma doença transmissível.

Em que pé está a liberação do cultivo de maconha para a produção de medicamentos? A Anvisa já mudou a regulamentação, tirando o canabidiol e o THC da lista de substâncias proibidas e estabelecendo os limites máximos permitidos. Essa alteração possibilitou o primeiro registro de um medicamento à base de THC e canabidiol no país. Tornamos mais fácil a importação do canabidiol, mas o preço do importado é alto. Se regulamentarmos a plantação e empresas brasileiras se dedicarem ao cultivo e à produção, o acesso ficará mais fácil. Até 2018, haverá audiências públicas e debates com a sociedade sobre a regulamentação da plantação.
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Publicado em VEJA de 25 de outubro de 2017, edição nº 2553 - Folhas Amarelas p.17a21
Fonte:  http://veja.abril.com.br/revista-veja/o-vigia-da-saude/

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