terça-feira, 17 de outubro de 2017

Arte da tolerância

Frei Betto*

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To­le­rância não sig­ni­fica aceitar pas­si­va­mente vi­o­lência, ho­mo­fobia e ra­cismo. Frente a tais ati­tudes temos o dever ético de ser in­to­le­rantes. A to­le­rância se situa na es­fera das ideias e opi­niões.
     
Na de­mo­cracia, cada um tem o di­reito de ter as suas pró­prias con­vic­ções, ainda que se con­tra­po­nham às mi­nhas. Não devo por isso ofendê-lo, des­me­recê-lo, hu­milhá-lo. Mas devo tentar im­pedi-lo de ir além de suas con­vic­ções pre­da­tó­rias à vi­o­lação da dig­ni­dade por ati­tudes como o ra­cismo.
     
A to­le­rância é filha da de­mo­cracia. Na so­ci­e­dade au­to­crá­tica pre­do­mina a versão do poder e é crime se con­trapor ou dis­cordar dela.
     
A mo­der­ni­dade se funda na di­ver­si­dade. Con­tudo, o co­ração hu­mano não tem idade. Em todos os lu­gares e épocas ele com­porta o so­li­dário, o al­truísta, o ge­ne­roso, e também o di­tador, o fun­da­men­ta­lista, o fa­ná­tico que se julga dono da ver­dade.
     
Na me­di­cina, in­to­le­rância é de quem sofre de alergia a ca­marão ou ger­gelim e con­si­dera in­su­por­tá­veis tais ali­mentos. O que não se pode é trans­ferir esse tipo de re­ação às ideias con­trá­rias às mi­nhas. Ainda que me es­can­da­lizem, não devo com­batê-las com as armas de ódio e vi­o­lência. Devo re­correr à razão, ao bom senso, me em­pe­nhando para que o marco legal da so­ci­e­dade im­peça que os in­to­le­rantes passem das ideias aos fatos, como con­si­derar a ho­mos­se­xu­a­li­dade uma do­ença e pres­crever a “cura gay”.
     
Dizia Gandhi que “to­lerar não sig­ni­fica aceitar o que se to­lera”. To­lerar vem do latim “tol­lere”, e sig­ni­fica car­regar, su­portar. “To­le­rantia”, na cul­tura ro­mana, equi­valia à re­sis­tência, qua­li­dade de quem su­porta dig­na­mente di­fi­cul­dades e pres­sões.
     
To­lerar não im­plica con­ceder a outro um di­reito. Di­reito não se to­lera; pra­tica-se com plena li­ber­dade. Em 1789, quando os de­pu­tados fran­ceses de­ba­tiam na As­sem­bleia Cons­ti­tuinte o ar­tigo 10 da De­cla­ração dos Di­reitos do Homem e do Ci­dadão, que se re­fere à li­ber­dade re­li­giosa, a mai­oria ca­tó­lica propôs que aos pro­tes­tantes fosse to­le­rado terem seus pró­prios tem­plos e pra­ti­carem o seu culto.
     
Saint-Éti­enne, de­pu­tado pro­tes­tante, dis­cordou. Disse que to­le­rância era “uma pa­lavra in­justa, que nos re­pre­senta apenas como ci­da­dãos dignos de pi­e­dade, como cul­pados que são per­do­ados”. E exigiu li­ber­dade de culto.
     
Uma li­ber­dade não tem o di­reito de pre­tender coibir a outra. Na Ale­manha, os na­zistas têm o di­reito de se or­ga­nizar em par­tido po­lí­tico e ocupar ca­deiras no Con­gresso. Mas não de querer res­tringir os di­reitos de ju­deus e imi­grantes.
     
O exer­cício dos di­reitos não de­pende apenas da letra da lei. Todos temos li­ber­dade de ex­pressão, mas em uma so­ci­e­dade eco­no­mi­ca­mente de­si­gual aqueles que pos­suem mais re­cursos têm mais con­di­ções de se ex­pressar do que a po­pu­lação ca­rente. Por­tanto, só há plena li­ber­dade quando há também equi­dade.
     
Não existem re­li­giões fa­ná­ticas ou in­to­le­rantes. Há, sim, in­di­ví­duos e grupos que en­carnam tais ati­tudes.
     
O so­fri­mento pode nos tornar to­le­rantes ou in­to­le­rantes. No sé­culo III a.C., o im­pe­rador Ashoka go­ver­nava o que é hoje Índia, Pa­quistão e grande parte do Afe­ga­nistão. Cruel, as­sas­si­nava seus ri­vais. Conta-se que, após uma ba­talha, viu o rio en­char­cado de sangue e de­cidiu não mais pro­vocar tanto so­fri­mento e morte.

Ashoka de­dicou-se, então, a pro­mover a paz entre re­li­giões e pes­soas com di­fe­rentes opi­niões. Em co­lunas de pedra deixou gra­vados seus con­se­lhos, como “aquele que de­fende a sua pró­pria re­li­gião e, de­vido a um zelo ex­ces­sivo, con­dena as ou­tras pen­sando ‘tenho o di­reito de glo­ri­ficar a minha pró­pria re­li­gião’, apenas pre­ju­dica a sua, pois deve es­cutar e res­peitar as dou­trinas pro­fes­sadas pelos ou­tros.”
     
Exemplo de to­le­rância é Jesus. Aco­lheu o cen­tu­rião ro­mano, adepto da re­li­gião pagã (Ma­teus 8, 5-13), e a mu­lher fe­nícia, que cul­tuava deuses re­pu­di­ados pelos ju­deus (Ma­teus 15, 22-25). Não disse uma pa­lavra mo­ra­lista à sa­ma­ri­tana que ti­vera cinco ma­ridos e vivia com o sexto (João 4, 7-26). Im­pediu que os fa­ri­seus ape­dre­jassem a mu­lher adúl­tera (João 8, 1-11). Per­mitiu que a mu­lher pe­ca­dora lhe per­fu­masse os pés e os en­xu­gasse com os ca­belos (Lucas 7, 36-50). Di­ante do teó­logo judeu, acen­tuou o gesto so­li­dário do sa­ma­ri­tano como exemplo do que Deus es­pera de nós (Lucas 10, 25-36).
     
O sábio to­lera; o ar­ro­gante julga; o in­justo con­dena.
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* Frade dominicano. Escritor. Jornalista.
Fonte:  http://www.correiocidadania.com.br/2-uncategorised/12891-arte-da-tolerancia

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