Luiz Felipe Ponde*
"Muitos russos olham para o Ocidente como
uma legião de fracos, sem valores, sem identidade, sem coragem.
Os EUA e
a Europa ocidental
representam essa legião."
A Rússia é uma potência. E somos muito ignorantes em relação à sua
história e identidade. Ainda a vemos com os olhos da "derrotada na
Guerra Fria", derrota esta devido à inapetência da economia socialista
em dar conta da vida das pessoas reais. Se o comunismo tardou a quebrar a
União Soviética, se deveu, justamente, à riqueza gigantesca da Rússia.
Veja que nos demais lugares onde o socialismo se instalou, ele quebrou o
país em pouco mais de duas semanas.
Mas a ideia de que os russos se vejam como uns derrotados na Guerra Fria
é uma percepção distorcida, ainda fruto da "propaganda americana" das
últimas décadas. Não. Muitos russos veem o Ocidente como uma legião de
fracos. Voltaremos a esse "olhar russo".
Suspeito de que logo a história enxergará a Revolução Russa como
"apenas" um capítulo na história do "messianismo russo da terceira Roma"
(Roma, Constantinopla, Moscou).
Recentemente, dois lançamentos editorais nos ajudam a entender essa
revolução russa para além dos debates ideológicos, que quase sempre
dominaram as tentativas de entender o fenômeno bolchevique.
O primeiro é "História da Guerra Civil Russa 1917-1922", de Jean-Jacques
Marie, da editora Contexto. A obra descreve de forma empírica (partindo
de uma multiplicidade de fontes) a guerra civil que se instalou na
Rússia após a revolução bolchevique. Milhões de mortos. Um dos maiores
méritos do trabalho de Marie é nos dar indicações do que "deu errado" no
projeto bolchevique entre as mãos de Lênin e Stálin.
A paranoia que destruiu a revolução foi, em muito, fruto dessa guerra
civil fratricida. Ela, de certa forma, "nunca acabou", e o regime de
terror de Lênin e Stálin (muitos querem salvar a pele do Lênin e pôr a
conta toda na mão do Stálin, mas isso é manobra ideológica) foi
continuação dessa guerra civil, contra objetivos já não mais
propriamente "militares".
O segundo é "Do Czarismo ao Comunismo, as Revoluções Russas do início do
século XX", de Marcel Novaes, da editora Três Estrelas. Entre os
diversos méritos dessa obra, como a escrita simples e direta sem
"afetações acadêmicas", está em nos apresentar o processo que nos levou
da Rússia dos Romanov (uma potência das maiores na Europa de então) às
revoluções russas do início do século 20. É exatamente nesse caráter
"plural" do processo revolucionário russo do período que reside um fato
essencial que, de certa forma, dialoga com a obra de Marie.
O próprio período dos Romanov, identificado com a criação de São
Petersburgo (a grande capital europeia da Rússia dos Romanov) em 1703
pelo czar Pedro, o Grande, é, em si, uma revolução, e, penso eu, mais
definitiva para a identidade "moderna" da Rússia do que a revolução
bolchevique enquanto tal.
A famosa divisão da alma russa, marcante no século 19, representada na
literatura do período entre ocidentalizantes e eslavófilos tem raiz
segura na revolução europeizante dos Romanov.
Muitos debates políticos e intelectuais do século 19 russo têm essa
oposição como chave importante de leitura. Para uns, a Rússia deveria se
tornar uma nação europeia (portanto, ocidental); para outros, reativos
ao que representava São Petersburgo, a Rússia deveria oferecer uma
resistência à "degeneração" ocidental niilista (classicamente
identificados com a quase milenar Moscou).
Essa tensão permanece até hoje. Muitos russos olham para o Ocidente como
uma legião de fracos, sem valores, sem identidade, sem coragem. Os EUA e
a Europa ocidental representam essa legião.
A posição eslavófila, marcadamente religiosa, influencia em muito o
chamado euroasianismo de Putin, sem o caráter essencialmente teológico
dos eslavófilos.
No euroasianismo, a Rússia é vista como uma "parede" contra as modas
ocidentais, sejam elas a crença "excessiva" na democracia, o
sócio-construtivismo das ciências humanas, a pós-modernidade e suas
obsessões identitárias ou a "revolução gay". Há um quase desprezo pela
crença do Ocidente em si mesmo. Neste olhar reside, também, uma quase
piedade dos russos para com as fraquezas ocidentais.
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* Filósofo, escritor e ensaísta, pós-doutorado em epistemologia pela
Universidade de Tel Aviv, discute temas como comportamento, religião,
ciência. Escreve às segundas.
Fonte: http://www1.folha.uol.com.br/colunas/luizfelipeponde/09/10/2017
Foto: Ricardo Cammarota/Folhapres
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