domingo, 8 de outubro de 2017

RADICALIZAR A DEMOCRACIA


Silvia Costanti/Valor
 De posse de novos dados sobre o Brasil, ausentes de seu best-seller, 
Piketty é categórico sobre o futuro: 
"Os países mais ricos do mundo enriqueceram 
porque aceitaram distribuir"

O presidente Emmanuel Macron tinha acabado de fazer seu primeiro discurso sobre o futuro da União Europeia, 24 horas depois de conhecidos os resultados da eleição alemã, quando o economista Thomas Piketty pegou um avião para São Paulo. Participaria, pela primeira vez, do fórum de palestras Fronteiras do Pensamento.

Ao receber o Valor, na tarde de seu desembarque, em hotel na zona Oeste de São Paulo, Piketty já tinha sua crítica na ponta da língua. O discurso não incorporara as sugestões do economista, no segundo turno da eleição francesa, como passaporte para seu apoio ao candidato do Em Marcha. A proposta, transformada em livro ("Por uma Europa Democrática", 2017), é a de que a única saída para a União Europeia é radicalizar a democracia.

A aposta de Piketty, cujo candidato (Benoît Hamon, do Partido Socialista), ficou em quinto lugar, é de que a UE não encontrará seu rumo enquanto suas decisões derivarem do embate de seus ministros de Finanças e não dos eleitos pelos parlamentos nacionais.

Foi sua segunda passagem pelo Brasil. Na primeira, em 2014, cumpria o circuito de lançamento de "O Capital no Século XXI". O livro fez do economista de 46 anos, nascido de um casal de militantes de esquerda da geração de 1968, um best-seller mundial, com mais de 2 milhões de cópias vendidas em todo o mundo e 150 mil no Brasil.

O compêndio ficou desfalcado de informações mais precisas sobre o Brasil, que só seriam liberadas pela Receita no ano passado. Os dados sobre imposto de renda foram pioneiramente processados pelos economistas Marcelo Medeiros e Pedro Ferreira de Souza, mas são os estudos de seu orientado, o irlandês Marc Morgan, que levaram Piketty a ser mais assertivo: "Os países mais ricos do mundo adotam, há mais de um século, uma política de progressividade fiscal cujo desconhecimento no Brasil bloqueia seu desenvolvimento", disse, ao Valor, antes de rechaçar a resiliente percepção da elite nacional de que é preciso crescer para distribuir: "Os países mais ricos se desenvolveram porque distribuíram"

O economista fala como escreve. Explora a mesma ideia por vários caminhos até que esteja seguro de que foi bem assimilada. Restringiu o número de entrevistas desde que seu best-seller lhe impôs uma agenda de arauto da desigualdade, mas preservou o tom da ofensiva. Agora investe em estudos sobre os obstáculos políticos à redução da desigualdade e em ampliar seus contatos com pesquisadores do tema mundo afora. Traz no seu tablet a fotografia da capa do livro "Tributação e Desigualdade", organizado pelo economista José Roberto Afonso, que está para ser lançado com um artigo de sua autoria.

Aos 23 anos, o matemático, doutor em economia, cruzou o Atlântico para dar aulas no MIT, o Instituto de Tecnologia de Massachusetts. Hoje permanece na EHESS, Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais, em Paris, e se limita a cruzar a Mancha para dar quatro dias de aula por ano na LSE (Escola de Economia de Londres).
 
Espera voltar ao Brasil para conhecer as praias do Ceará com a mulher, a economista Julia Cagé, e as filhas Juliette, Deborah e Hélène, agora que o pai casou-se novamente com uma cearense residente na França. A seguir, a entrevista:

Valor: O presidente Emmanuel Macron acaba de fazer um discurso ambicioso sobre União Europeia. Foi no rumo certo?
Thomas Piketty: O mais importante para a Europa hoje é que um conjunto de países que têm a mesma moeda constituam também uma verdadeiro bloco político e parlamentar para que passem a gerir um orçamento comum e uma mesma política fiscal. Não podemos ficar só na moeda. É a grande lição da crise de 2008. Não podemos continuar com 19 taxas de juros e 19 diferentes estruturas fiscais na abordagem de multinacionais, pequenas e médias empresas. É preciso mudar a organização política da Europa. Atualmente, para todas as questões fiscais, prevalece a regra da unanimidade. Se um país se coloca contra uma determinado ponto, bloqueia qualquer mudança. A única maneira de mudar isso é dar poder a um Parlamento verdadeiramente representativo.

Valor: A questão levantada pelo senhor durante a campanha, de radicalização da democracia no bloco, parece ter sido ignorada...
Piketty: Completamente. Há dois problemas nas colocações de Macron. Ele não é muito claro sobre como desbloquear os entraves colocados por aqueles países que não querem avançar contra aqueles que o querem. E, em segundo lugar, é preciso rever a composição do Parlamento europeu de maneira que aqueles países que queiram avançar na direção de um imposto comum, como a França, a Alemanha, a Bélgica, a Itália e a Espanha, possam seguir adiante para dar conta de suas urgências fiscais e sociais. Até agora temos construído um Parlamento europeu que contorna os parlamentos nacionais e, de fato, não funciona porque o verdadeiro poder na Europa está nos conselhos dos chefes de Estado e dos ministros de Finanças. Para sair dessa lógica intergovernamental é preciso ter um Parlamento que se reúna para votar mudanças reais com um certo número de deputados da Assembleia francesa, do Bundestag alemão e dos demais parlamentos.

As decisões não podem ser tomadas por ministros de Finanças, mas por representantes eleitos reunidos em Assembleia

Valor: O senhor viu algum avanço no discurso em relação à mutualização da dívida pública na zona do euro?
Piketty:
Não. As propostas de Macron são muito frouxas e correm o risco de nada avançar. O que está em questão não é a resistência alemã, mas a falta de precisão das propostas. É importante que os países sejam precisos e diretos sobre o que pretendem e parem de colocar sobre a Alemanha uma responsabilidade que é sua. Há de fato atitudes políticas da Alemanha em relação à Europa que são cansativas, mas a França tem grande responsabilidade na proposição de uma nova organização democrática da zona do euro.

Valor: Mas não há algum avanço no que se refere à taxação sobre a emissão de carbono e à taxação sobre transações financeiras?
Piketty
: São propostas insuficientes. Uma declaração de boas intenções sobre transações financeiras ou sobre a taxa de carbono não basta, nem diz porque funcionaria agora se não funcionou no passado. Então, se ele não disser claramente como uma assembleia democrática poderia se compor com poderes para tomar decisões em benefício da sociedade, não vai avançar.

Valor: Os governos nacionais são o maior entrave a essa mudança na representação política da Europa que o senhor propôs?
Piketty: Sim, no sistema atual você tem o embate entre os ministros das Finanças, cada um protegendo o interesse de seu país, sem chegar a lugar algum. Por isso digo que é preciso substituir essa lógica por uma assembleia democrática em que os países enviem uma cota de representantes de seus parlamentos nacionais para compor uma assembleia em proporção de sua população e em proporção dos diferentes grupos políticos, que teria o poder de votar um imposto comum, um orçamento comum que fugiria da lógica de país contra país. Que se formem maiorias políticas e não maiorias de países contra países. Não importa que seja uma maioria política de direita, de esquerda ou de centro. O que importa é sair do bloqueio.

Valor: De que maneira o avanço da extrema direita na Alemanha e a necessidade de Angela Merkel fazer concessões aos eurocéticos dificultaria o avanço da União Europeia nessa direção?
Piketty: Fico inquieto que Angela Merkel, que já não é muito aberta nem dinâmica em relação a esse tipo de proposição, use a aliança com os liberais como desculpa para nada fazer. O importante agora é colocar propostas reais sobre a mesa. Se a França colocar uma proposta real de democratização, é possível que o SPD (social-democracia alemã) e os verdes, que são mais europeus e mais abertos a essa questão, se decidam a enfrentar essa responsabilidade. É possível que o SPD aceite mudar de opinião. Será muito complicada uma aliança CDU (democracia cristã alemã), liberais e verdes. Ninguém sabe exatamente como vai ficar e se essa aliança será durável. A direita é um pouco mais conservadora em relação a essas questões financeiras, mas a democratização da Europa é algo que passa ao largo das clivagens politicas. O ponto é dotar uma assembleia europeia do poder de tomar decisões. Quem tiver a maioria comanda.

Valor: E se o resultado for uma assembleia dominada por uma direita eurocética? Piketty: Não acredito que uma assembleia como essa estaria ainda mais à direita do que o que temos hoje. A direita alemã hoje não é majoritária na Europa. Mas, em todo caso, se a direita de todos os países da zona do euro formarem maioria, que se aceite. É essa a regra da democracia. É esta também a responsabilidade da Europa hoje. O bloco apenas continuará servindo de inspiração para o resto do mundo se for capaz de se democratizar para ir além dos tratados monetários e comerciais e possa adotar políticas comuns de desenvolvimento, de administração orçamentária e fiscal e de justiça social
e climática. É muito importante que a Europa avance para evitar que o espirito do Brexit se espalhe mundo afora.

Valor: A França acabou de adotar uma reforma trabalhista que, em muitos pontos, se assemelha àquela aprovada neste ano no Brasil. O que mudará nas relações do trabalho com essas novas regras?
Piketty: Lamento que Macron tenha optado por uma reforma que dribla a necessidade de melhorar a representação dos sindicatos e dos assalariados na gestão das empresas. Macron fala bastante da flexibilidade do modelo alemão e sueco, mas esquece que, nesses modelos, há forte presença dos sindicatos e dos assalariados desde os anos 1950 nos conselhos de administração das empresas. São representantes que não se limitam a uma presença consultiva. Eles têm poder deliberativo. Na Suécia, um terço dos assentos dos conselhos de administração das empresas é composto por representantes dos empregados. Na Alemanha, eles ocupam metade dos assentos e participam das decisões estratégicas das empresas. A França, como também o Reino Unido e os EUA, sempre se recusaram a isso com o argumento de que todo o poder é dos acionistas. Em 2014, aprovou-se uma lei que introduziu uma única cadeira no conselho de administração, mas isso não é suficiente para influenciar os rumos das empresas. Na Alemanha e na Suécia os trabalhadores têm um poder infinitamente maior de reagir aos rumos da economia e também de influenciá-la. De toda forma, a flexibilidade foi excessiva. A principal medida foi a de reduzir a indenização para demissões, mesmo aquelas sem justa causa. Se você demite alguém que trabalhou por dez anos numa empresa, a indenização será equivalente a, no máximo, dez salários. Se o trabalhador tem 20 anos de serviço, receberá 15 salários. O problema é que muitas vezes são trabalhadores que investiram muito numa determinada especialização específica para aquela empresa e não terão, necessariamente, esse investimento aproveitado por outra empresa. É verdade que a Justiça na França é muito lenta e que a reforma pode ajudar a acelerar os processos, tanto para os trabalhadores quanto para as empresas. Há mudanças que eram necessárias, mas a reforma seria mais equilibrada com uma reforma na governança das empresas como existe na Alemanha, que poderia se tornar realmente um modelo para a Europa. Mas Macron cedeu ao patronato francês, que não quer essa representação, ainda que sua administração não seja modelo de eficácia.

 Yorgos Karahalis/Bloomberg
 As propostas do presidente francês, Emmanuel Macron, sobre a mutualização 
da dívida pública na zona do euro, diz Piketty, 
são "muito frouxas e correm o risco de nada avançar"

Valor: Passados quatro anos do lançamento de "O Capital no Século XXI", é possível dizer que o impacto do livro diminuiu a resistência internacional à taxação dos mais ricos?
Piketty:
É difícil de responder, mas acho que não. O sucesso desse livro mostra que há uma quantidade cada vez maior de pessoas em todo o mundo, no Brasil, na China, na África do Sul e em todos os lugares, que têm necessidade de participar do debate sobre os resultados do desenvolvimento e rejeitam a ideia de que a economia deve ficar restrita a especialistas. Esse livro acabou atendendo a uma necessidade de democratização do conhecimento e das pesquisas econômicas. Mas não sou ingênuo. É preciso muito mais que um livro para mudar a relação de forças na sociedade. É preciso que os partidos políticos e os cidadãos se engajem. De lá para cá vimos alguns desdobramentos, sobretudo nos Estados Unidos e na Grã-Bretanha, com Trump e Brexit dando vitória ao populismo de direita, uma reação nacionalista e xenófoba. E é esse o perigo do crescimento das desigualdades. Se a democracia não combate a desigualdade, sempre aparecerá uma força para explorar as frustrações e a cólera por ela provocadas.

Valor: No livro o senhor fala que a redução das desigualdades derivou mais das duas grandes guerras mundiais do que da democracia. A escalada de tensões sociais hoje, com a eleição de Donald Trump e o crescimento do nacionalismo europeu, mostra que é esse o rumo que estamos tomando ou ainda é possível acreditar que na democracia como caminho para a redução das desigualdades?
Piketty: É claro que a democracia é um caminho. O que digo no livro é que a democracia, historicamente, não tem bastado. Só os choques violentos é que transformaram o status quo das elites que rejeitavam a redução das desigualdades. Foi o conservadorismo ideológico das elites que provocou as grandes guerras. Hoje não estamos na mesma situação. Há instituições democráticas muito fortes que dão sustentação aos ideais de uma sociedade mais igualitária. Mas não se pode descuidar dos sinais que eventos como o Brexit podem representar para o desmantelamento de um modelo que, se não é perfeito, ainda permite buscar uma coordenação, uma saída estável para uma sociedade menos desigual. Descobrimos que tudo isso pode ser frágil. O que aconteceu nos Estados Unidos é absolutamente intrigante. Foi impressionante de ver a capacidade de Trump de construir uma identidade comum com classes populares e médias que faz com que as políticas sociais tenham um viés racial e xenófobo. Se a gente pega a crise da dívida pública na Europa, por exemplo, é possível imaginar uma saída mais negociada. No pós-guerra, as dívidas públicas foram anuladas em 1953 porque decidiu-se fazer um investimento no futuro, nas futuras gerações e zerar os erros do passado. É isso que a Europa precisa hoje, investir no futuro. A alternativa é o caos, a inflação e a explosão da união monetária. É isso que pode acontecer se determinadas forças políticas na Alemanha, na Catalunha, na França, em Portugal prevalecerem. Essas tensões podem evoluir rapidamente.

Valor: O nacionalismo de direita que fomentou os regimes fascistas do século passado tem poder hoje para repetir a ameaça à democracia, na Europa, nos Estados Unidos ou no Brasil?
Piketty: Confio na capacidade de nossas instituições reagirem, na Europa, no Brasil, na China, de encontrarem seus caminhos para se desenvolverem com democracia. No caso do Brasil, por exemplo, há de fato um nível de concentração muito excessivo para o país se desenvolver. Pode-se dizer que o país não passou por choques políticos violentos como aqueles que, na Europa, reduziram as desigualdades, mas a opção democrática também pressupõe que as elites do pais aceitem pagar mais impostos e que o Estado faça mais investimentos sociais.

Valor: No seu livro "Às Urnas, Cidadãos", o senhor disse sobre o Brasil: "O sistema tributário é pesadamente regressivo e, frequentemente, financia despesas públicas com as mesmas características. As classes populares pagam impostos muito pesados que chegam a 30% sobre a eletricidade, ao passo que sobre a herança é de apenas 4%. As universidades públicas só beneficiam uma elite de privilegiados". O senhor mantém o diagnóstico?
Piketty
: Sim, mantenho, e subscrevo os achados mais recentes de Marc Morgan que demonstram que o Brasil é, de fato, um dos países mais desiguais do mundo. E uma desigualdade que só concorre com a da África do Sul, país que saiu do apartheid em 1994. Morgan concluiu que os níveis de desigualdade no Brasil não foram reduzidos de maneira significativa. Os mais pobres viram sua participação na renda nacional crescer muito ligeiramente, os 50% mais pobres aumentaram sua fatia na riqueza do país de 11% para 13%. Enquanto isso, os 10% mais ricos detêm uma parcela que passou de 55% para 53%. Então os governos democráticos do Brasil, sejam de direita ou de esquerda, não têm sido capazes de reduzir a desigualdade. Uma das razões é que, a despeito das políticas sociais que beneficiaram os mais pobres, a estrutura de impostos no Brasil se mantém intacta. Não há reformas significativas na progressividade fiscal e não haverá nenhuma mudança nisso se o país não decidir enfrentar questões como a taxação sobre herança e sobre fortunas.

Valor: Ao se valer do imposto de renda, o trabalho de Morgan, assim como o de outros estudiosos brasileiros, não minimiza o fato de 83% dos brasileiros não pagarem imposto de renda?
Piketty: Os estudos de Morgan, na verdade, são pioneiros no cruzamento dos dados do imposto de renda e das pesquisas em domicílio. É um trabalho de fôlego para colher de diferentes fontes os dados mais fidedignos sobre a renda do país. E é um estudo que teve muito cuidado em colher os dados mais adaptados para cada faixa de renda. Então, de fato, o imposto de renda incide apenas sobre 17% da população, mas há impostos indiretos extremamente pesados que comprometem sua renda de maneira muito mais significativa do que o imposto de renda o faz sobre a fatia minoritária e mais rica da população, ainda mais se levarmos em conta que uma parte desses contribuintes se evadem com isenções sobre lucros e dividendos. Esta é uma tentativa de mensurar a progressividade do sistema fiscal no Brasil [neste momento mostra, no tablet, o livro a ser lançado na próxima terça-feira no Brasil com um capítulo de sua autoria]. Conclui por mostrar que falta, de fato, a noção de progressividade é inexistente no país.

Valor: Esse foco na taxação de propriedade e renda não corre o risco de penalizar a classe média em vez dos mais ricos, que têm mais meios de escapar do cerco?
Piketty: Não se trata de tributar as pequenas propriedades, mas as grandes fortunas que cairão em mãos de pessoas que não trabalharam para merecê-la. É uma questão de justiça social. Os países que se desenvolveram adotam, há mais de um século, uma política de progressividade fiscal que permanece desconhecida no Brasil e que bloqueia seu desenvolvimento.

Os países adotam, há mais de um século, progressividade
fiscal cujo desconhecimento no Brasil bloqueia
seu desenvolvimento

Valor: O discurso predominante no Brasil é o de que é preciso crescer para depois distribuir porque não há como repartir renda numa economia em recessão. Não tem fundamento?
Piketty: Os países mais ricos do mundo enriqueceram porque aceitaram melhor repartir. Todos os países desenvolvidos, Estados Unidos, Alemanha, Japão, França, Grã Bretanha têm impostos sobre herança que atingem as grandes fortunas e que chegam a 40%. O Japão aprovou, no ano passado, uma taxação sobre a renda dos mais ricos de 50%. Não são números mágicos, eles têm razão de ser. O que surpreende é que o Brasil mantenha seu imposto sobre herança em 4%. Isso é parte de uma cultura egoísta que precisa ser combatida.

Valor: Há muito se debate no Brasil sobre os limites do investimento em educação como meio para se reduzir a desigualdade. Quais são esses limites em sua opinião?
Piketty: A difusão da educação é a politica mais importante para a redução das desigualdades. Não tenho nenhuma dúvida em relação a isso. É nesta difusão que se observa uma redução de desigualdades permanente. Isso aparece tanto nas análises dos países quanto nas análises comparativas. Exige um grande esforço fiscal por parte do Estado, mas é preciso que esse investimento em educação seja usufruído por todos. Esse investimento não pode resultar em mais concentração de renda, em um sistema em que os mais pobres paguem mais que os ricos pelo acesso à educação.

Valor: As desigualdades cresceram na Europa e nos Estados Unidos à medida em que esses continentes perderam participação no comércio mundial, sobretudo em relação à Ásia. É possível reequilibrar a renda na Europa e nos Estados Unidos sem que uma repartição do comércio mundial ainda mais ampla, com a inclusão da América Latina e da África, esteja ameaçada?
Piketty
: É possível, mas sob a condição de que a gente mude o foco dessa globalização. É preciso ter uma mundialização que não se preocupe apenas com a liberalização do comércio. É preciso introduzir nesses tratados internacionais medidas de justiça fiscal, social e diplomática. Não se pode, de um lado, ter conferências internacionais proclamando harmonia global e, por outro, a assinatura de tratados comerciais como aqueles recentemente assinados entre Estados Unidos, Europa e Canadá, que passam completamente ao largo de questões de justiça fiscal e social. Não chegaremos a lugar algum enquanto os propósitos redentores ficarem limitados às declarações e, quando fazemos tratados para valer, estes venham embutidos com sanções. É um jogo de faz de conta. É preciso liberalizar o comércio, mas, no primeiro capítulo desses tratados, é preciso taxar a emissão carbono e fazer justiça fiscal. Concretamente, isso significa estabelecer objetivos verificáveis a serem atingidos pelas multinacionais em todo o mundo, nos EUA, na Europa e no Brasil.
Há uma grande resistência em relação a isso, alega-se muita complexidade para se colocar em curso o estabelecimento de metas verificáveis, mas não é nada complicado. Os tratados de liberalização de comercio também são complexos e nem por isso deixam de ser feitos. Só assim a globalização deixará de ser a simples liberalização de mercadorias que tem provocado o recrudescimento de nacionalismos e do protecionismo.

Valor: O senhor tem sustentado que a crise de 2008 é, em grande parte, resultado da ausência de uma boa regulação. Quase dez anos depois, constata-se que, além de uma boa regulação, a crise não puniu os responsáveis pela crise. Que papel o senhor acha que o judiciário deve ter nessa regulação?
Piketty: O balanço desses dez anos mostra que o mundo falhou em fazer uma boa regulação financeira e econômica mundial. O paradoxo dessa crise é que a instabilidade monetária atinge economias importantes no mundo inteiro. Os verdadeiros responsáveis, de fato, não pagaram o que deveriam. Perdeu-se a oportunidade de mudança. Mas acredito que, ao fim e ao cabo, no resto do mundo cresceu a consciência de que não dá mais para esperar pelos Estados Unidos para encontrar soluções para a ordem mundial. A Europa, a China e o Brasil têm que se pôr em acordo sem esperar pelos EUA.
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Reportagem Por Maria Cristina Fernandes | De São PauloFonte: http://www.valor.com.br/cultura/5146958/radicalizar-democracia

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