José de Souza Martins*
A
população em transição social, que vem perdendo
a segurança de suas referências
comunitárias
e de classe, tem dificuldade para entender o mundo
da sociedade de
consumo, na sua versão de
sociedade do espetáculo, pelo abismo que
abre entre
as gerações.
Nas
pesquisas eleitorais, margem de erro indica que as tendências numéricas
dominantes podem estar erradas e que há uma pequena proporção dos dados que
sugere que o improvável é possível. Nas pesquisas quantitativas, é condicionada
por aquilo que a própria população revela ao pesquisador, que é o que lhe
perguntam. Por isso, de fato, essa população enquanto todo também esconde
muito.
Na
eleição de 7 de outubro, mais de um terço dos eleitores não expressou seu voto.
A maioria porque se absteve. Significativamente, mais de 3 milhões de eleitores
votaram em branco e mais de 7 milhões anularam o voto. Juntos, eles representam
um quarto candidato invisível na classificação geral da votação.
É nessa
perspectiva que se pode compreender o sentido político do resultado dessa
eleição. O candidato que alcançou o primeiro lugar, Jair Bolsonaro,
apresentou-se ao eleitorado com um programa político que é uma lista de
propósitos que são apenas negação "do sistema partidário",
especialmente, daquilo que o PT viabilizou ou realizou durante seus 13 anos de
governo.
Ele
apenas listou os antagonismos que formaram sua plataforma eleitoral. Não é,
portanto, um candidato propositivo, mas apenas um candidato da negação. Ou
seja, a função cumprida por sua candidatura é, na prática, a de uma extensão do
voto nulo e do voto em branco. É um voto antipolítico. Ele inaugura, na lista
das omissões, o voto negativo e inaugura a reivindicação de personificar a
negatividade e transformá-la em presidente da República.
É,
portanto, candidato de um outro Brasil político, que foi se constituindo
lentamente, em silêncio, à margem do Brasil político que emergira com o fim do
regime militar. O Brasil que foi silenciado e excluído, ao vir à luz do dia, também
inventou silêncios e escuridões. Corporativo e excludente, limitou a
democracia. Com razão ou sem, disso se queixam os agora eleitos, que chegarão
ao poder no dia 1º de janeiro. Com a promessa clara de gerar novas
invisibilidades e um novo silêncio, os de seus adversários das duas últimas
décadas, o que inclui o PSDB.
O PT e o
PSDB abatidos no pleito do dia 7, não o foram apenas porque a direita convenceu
o eleitorado da legitimidade de seu clamor em favor de uma nova ordenação
política. O Brasil desta eleição é muito diferente do Brasil da primeira
eleição de Lula, em 2002. Muita coisa aconteceu. A economia sofreu profundas
transformações.
Na região
simbólica do petismo, a do ABC paulista, muitas indústrias foram fechadas.
Outras passaram pela reestruturação produtiva, profissões desapareceram,
empregos sumiram. Se o ferramenteiro Lula decidisse voltar à fábrica, não
encontraria emprego. Sua profissão desapareceu. Os operários do antigo ABC são
hoje gente de classe média, muitos deles pais e avós de pessoas que tiveram acesso
à universidade.
No Brasil
inteiro, houve mudanças de mentalidade, mudanças de aspirações, mudança de
classe social. Não é, pois, estranho que em São Bernardo do Campo, pátria do
PT, onde Lula tem sua casa, Bolsonaro tenha tido 46% dos votos locais e Haddad
tenha tido apenas 23%, metade. Nas eleições municipais de 2016, o PT já fora derrotado
em toda a região do ABC. Não elegeu um único prefeito nos sete municípios.
Muitos
supõem que o país deu uma guinada para a direita. Na verdade, não houve
guinada. Houve lenta transformação social e desgaste dos partidos, das
ideologias partidárias e dos próprios políticos, que já não correspondem à nova
realidade nem compreendem o Brasil de agora. A população adquiriu novas
identidades e a nova identidade política, especialmente das novas gerações, é
de direita até mesmo quando se dizem de esquerda. Foram consumidas pela
sociedade de consumo.
A
população em transição social, que vem perdendo a segurança de suas referências
comunitárias e de classe, tem dificuldade para entender o mundo da sociedade de
consumo, na sua versão de sociedade do espetáculo, pelo abismo que abre entre
as gerações. É o da exibição pública de comportamentos e de identidades que em
sua cultura de origem ficavam devidamente ocultados e protegidos no escurinho
da vida íntima e privada. Para ela e para um número crescente de pessoas, a
sociedade sem é inconcebível pois é um sinal de morte social.
Quando
fala em violência, está falando em falta de ordem representada pelas violações
de conduta que caracterizam a vida moderna. Sobretudo numa sociedade que chega
a 13 milhões de desempregados, confinados em agrupamentos familiares e
comunitários que se regem, ainda, pelos padrões da sociedade tradicional. O
negativo do programa de Bolsonaro lhes parece a rude e necessária defesa da ordem,
a segurança de que o mundo não deve mudar.
José de Souza Martins é sociólogo. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, autor de A Sociologia como Aventura (Contexto).
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José de Souza Martins é sociólogo. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, autor de A Sociologia como Aventura (Contexto).
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Fonte: https://www.valor.com.br/cultura/5916257/margem-de-erro
12/10/2018
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