Gilles Lapouge*
Com a perda de Aznavour, todas as outras notícias perderam a sua importância
Um cantor morre, Charles Aznavour. Ele estava idoso (94 anos). Até
segunda-feira, ainda estava em forma. Ele passou a noite divertindo-se
com os amigos, e de manhã estava morto. E, na hora seguinte à notícia, a
França chora, geme, relembra lembranças, sussurra entre os dentes as
canções que ele cantou e que fizeram dele uma estrela mundial. Todas as
outras notícias (política, econômica, tsunami, jihad, migrantes Donald
Trump, Emmanuel Macron) subitamente perdem sua importância. Caem no
abismo aberto por esta morte.
Todas
as emissoras de rádio passam a transmitir uma torrente de memórias
intermináveis. Centenas de homens e mulheres são convocados para cantar
diante dos microfones os trechos das canções de Aznavour das quais se
lembram. Outras emissões convocam senhoras de idade, jovens, homens
idosos e novos que relembram do dia de seus casamentos, ou da noite na
qual seu avô morreu, ou quando a menina foi aprovada no exame de
contador; para tudo há uma canção de Aznavour marcada em sua memória. Os
maiores jornalistas desfilam nas TVs para nos dizer que um dia
almoçaram com Aznavour ou cruzaram com Aznavour em um trem...
Pode
ser que a França seja um país estranho, ou, em outros países, no
Brasil, por exemplo, o desaparecimento de um cantor famoso também pode
paralisar um país e deixar em suspenso todos os processos pendentes,
enquanto as estações de rádio e TV dedicam dois, três, quatro ou cinco
dias para reunir testemunhas notificadas para contar pela décima vez a
menos importante das histórias. “A primeira vez que eu dormi com um
rapaz, ele estava em um ritmo de Aznavour” ou “quando eu perdi metade
das minhas poupanças no mercado de ações, fui para casa. Estava chorando
e então escutei Aznavour”, etc. etc. Nós vimos o mesmo entusiasmo
popular algumas semanas atrás, quando Johnny Halliday, um outro cantor,
morreu.
É verdade que Aznavour
era um homem notável. Sua vida é magnífica. Era uma criança de origem
armênia, mas nascido na França, em uma família pobre e em toda a sua
vida, ele foi tão fiel à Armênia como à França. Foi realmente um
franco-armênio, um bom exemplo de integração bem-sucedida, num momento
em que a xenofobia, o ódio aos estrangeiros em França e em toda a
Europa, está em fúria. Um belo exemplo de integração.
Aznavour foi um bravo. Na década de 1970, parece-me, esse homem
que sempre amou as mulheres com paixão, teve a audácia de escrever uma
canção denunciando ao seu modo a ignóbil “homofobia” que então
prevalecia na França.
Coragem também para se tornar o que ele era: não se destacava
pela aparência. Pequeno e frágil, um nariz pouco torto (ele vai corrigir
quando ele tem condições), sem um físico marcante e uma voz singular.
Todos esses fatores combinados explicam que suas primeiras aparições
foram ridicularizadas: como se atreve ele a cantar em público com esse
aspecto? Os críticos gritaram copiosamente contra ele.
Mas o milagre se realiza – ignorando as críticas, o público o
adotou e não mais o deixou ir. Jornalistas se manifestam para dizer que,
afinal de contas, ele não era tão ruim assim, aquele pequeno armênio
desajeitado. Sua fama está crescendo. Tornou-se global e Frank Sinatra
gosta dele. E o príncipe dos cantores poetas, Bob Dylan, o reconhece
como um dos melhores intérpretes do mundo.
Ele foi chamado pelo cinema e descobrimos um grande ator, cerca
de cinquenta filmes nos quais ele atua de igual para igual com os
maiores. Esse é o romance muito comovente de um pequeno armênio, filho
de emigrantes caçados pelos responsáveis pelo genocídio de 1915, criado
na França e elevado ao mais alto dos estágios da glória. Sim. Podemos
preferir outros cantores, outros compositores, outras músicas.
Por exemplo, na França, Charles Trenet, Léo Ferré, Georges
Brassens e Serge Gainsbourg, ou outros, mas era ele que tinha tudo para
se tornar um ícone popular de alta qualidade. Seu destino é exemplar. É
por isso que hoje todo um povo não sabe se deve chorar ou cantarolar uma
das músicas que o pequeno franco-armênio tornou famosas em Moscou,
Londres e Hollywood.
/ TRADUÇÃO DE CLAUDIA BOZZO
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* Escritor e Jornalista francês.
Fonte: https://cultura.estadao.com.br/noticias/geral,a-morte-de-um-cantor,70002529933 03/10/2018
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