Juremir Machado da Silva*
Outros tempos
Cada época com a sua linguagem. No século XIX,
alguns jornais buscavam uma maneira mais ágil e moderna de se
comunicar. Talvez o mais inovador desses periódicos tenha sido o pequeno
“A Redempção”, dirigido por Antônio Bento, de São Paulo, que traduzia
no cabeçalho a seguinte autodefinição: “Folha abolicionista, comercial e
noticiosa”. Era odiado pelos proprietários de terras, homens, leis e
bichos.
Em 2 de janeiro de 1887, o texto de abertura abria o jogo sem
enrolação: “O título do nosso jornal já indica a nossa missão na
imprensa. Divergimos completamente tanto dos liberais resistentes como
dos escravocratas, não concordamos com as ideias conservadoras e
detestamos aqueles que, trazendo o capacete frígio na cabeça, trazem na
mão o bacalhau com que quotidianamente surram os seus miseráveis
escravos”. Os escravistas consideravam que o jornal estimulava crimes,
promovia a desordem, atrapalhava a produção e mentia. Apenas isso.
Esse editorial citado criticava os hipócritas que se fingiam de
libertadores ao mesmo tempo em que faziam de tudo para conservar a ordem
vigente. Antônio Bento era atacado por seu radicalismo. Como podia um
advogado branco não compreender as necessidades do capital? Não tinha
senso de responsabilidade? O artigo em questão apavorava as classes
produtoras quando dizia coisas assim: “Nós queremos a libertação
imediata, sem prazo; para conseguirmos, aceitamos a própria revolução
porque não podemos admitir que continuem debaixo do azorrague e da
escravidão tantos brasileiros que, livres, poderiam concorrer
vantajosamente para a felicidade da nossa pátria”.
A “Redempção” sofria ataques violentos de quem considerava que esses
“tantos brasileiros” eram mais úteis para a “felicidade da nação” como
escravos. Uma pergunta cruel não deixava de ser feita:
– Se ficarem livres eles vão ter direito a voto, vão?
Outro abolicionista famoso, Rui Barbosa, foi chamado de “vermelho”
pelos seus detratores: “Onde estribar, pois, essas imputações de
socialismo, de proselitismo comunista, com que nos tentam desarmar?” O
conservador José de Alencar, que votou contra a lei do Ventre Livre,
defendia que um abolicionista não podia tomar café ou fumar charuto: “O
filantropo europeu, entre a fumaça do bom tabaco de Havana e da taça do
excelente café do Brasil, se enleva em suas utopias humanitárias e
arroja contra estes países um aluvião de injúrias pelo ato de manterem o
trabalho servil. Mas por que não repele o moralista com asco estes
frutos do braço africano?”
José de Alencar parecia fazer ficção até quando pretendia ser
realista: “Se algum dia, como é de esperar, a civilização projetar-se
pelo continente africano adentro, penetrando os povos da raça negra, a
glória desse imenso acontecimento, amargue embora aos filantropos,
caberá exclusivamente à escravidão. Foi ela que preparou os precursores
negros da liberdade africana”. As posições de Antônio Bento e Rui
Barbosa eram acusadas de parcialidade. José de Alencar era elogiado por
sua isenção. Eram outros tempos, felizmente revolutos.
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* Jornalista. Escitor. Sociólogo. Prof. Universitário
Fonte: http://www.correiodopovo.com.br/blogs/juremirmachado/2018/10/11253/quando-a-isencao-e-fake/
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