Eva Alterman Blay é Professora Emérita da Universidade de São Paulo
O feminismo no Brasil vem pelo menos
desde o século XIX. Direitos mínimos como educação e cidadania não
foram dados às brasileiras, foram conquistados pela ação de mulheres
cujos nomes ficaram apagados na nossa história. Essas mulheres ainda não
encontraram o devido destaque. Foram elas que construíram degraus no
espaço que ainda estamos conquistando.
Essa trajetória foi marcada por escritoras e educadoras como Nísia
Floresta. Pioneira em seu tempo, ela viajou pelo mundo, publicou na
Europa, conviveu com pensadores como Augusto Comte e construiu escolas
para crianças, especialmente para meninas brasileiras, onde substituiu
as prendas domésticas pelo ensino de português, francês e italiano, além
das ciências naturais, sociais e matemática. É de sua autoria o livro Direitos das mulheres e injustiça dos homens,
primeira publicação a tratar dos direitos das mulheres à instrução e ao
trabalho, e no qual Nísia reivindica que as mulheres sejam consideradas
inteligentes e merecedoras de respeito pela sociedade[i]. O livro possivelmente foi uma tradução livre da obra Vindications of the Rights of Woman de 1792, escrito pela feminista inglesa Mary Wollstonecraft.
Desde o início do século XX, é fundamental apontar a atuação da
bióloga Bertha Lutz, cujo ativismo político pavimentou o caminho para o
direito ao voto feminino. Foi a segunda brasileira a fazer parte do
serviço público no Brasil ao começar seus trabalhos no Museu Nacional,
em 1919. Estava entre as fundadoras da Federação Brasileira pelo
Progresso Feminino (FBPF), em 1922, e teve participação no Congresso
Nacional, quando em 1936 assumiu o mandato como suplente de Cândido
Pessoa. Nessa posição, defendeu mudanças na legislação trabalhista em
favor do direito feminino ao trabalho, contra o trabalho infantil,
direito à licença-maternidade e à equiparação de salários entre homens e
mulheres[ii]. Lutas que, 82 anos depois, ainda enfrentamos.
Apesar dos caminhos traçados por mulheres extraordinárias como Nísia e
Bertha, o feminismo nas décadas de 60/70 enfrentou uma das mais
difíceis armas: o ridículo. Éramos todas ridicularizadas. Ir a público
explicar o que era o feminismo significava estar preparada para piadas,
gozações, desconsideração! O termo feminismo se tornou pejorativo. Até
hoje algumas feministas evitam esta denominação temendo a pecha de
mulher “mal amada”, feia, adjetivos usados como forma de nos agredir e
menosprezar.
Para entender a obscuridade em que vivíamos nas décadas de 1960 e
1970 é preciso trazer à luz algumas profundas crises. Naquela época, na
televisão, um apresentador achincalhava uma mulher, a atriz Leila Diniz.
Ela ousara ir à praia no Rio de Janeiro usando um biquíni. O problema
estava além do biquíni. O que causava enorme revolta no apresentador era
a exposição da barriga de Leila grávida! Criou-se um verdadeiro
escândalo que repercutiu na televisão, no rádio, nas revistas, clamando
contra a atitude “desavergonhada” de Leila. Entenda-se: a mulher
grávida, se fosse à praia, tinha de vestir uma espécie de bata que
cobrisse a barriga. Essa tinha de ficar escondida. Por que era
importante esconder a gravidez? Seria a barriga a revelação de que a
mulher tivera relações sexuais? A maternidade, tão endeusada depois que a
criança nasce, tinha de apagar a sexualidade feminina? Era como se
todas as mulheres gerassem filhos mantendo-se virgens. Leila subvertia
os padrões morais patriarcais.
A construção da imagem da mulher como dona de casa perfeita, mãe e esposa foi o tema discutido no livro A Mística Feminina,
de Betty Friedan. Em 1965, recebi a versão francesa do livro (nossa
influência acadêmica era a francesa, daí ter recebido a versão do livro
em francês La Femme Mystifiée). Betty, uma jornalista de
formação universitária, sensível a um mal-estar que afligia as mulheres
americanas, fizera uma pesquisa extensa, entrevistando-as. No livro,
publicou os resultados, revelando a insatisfação das mulheres americanas
brancas, de classe média, que após frequentarem o ensino superior se
casavam e tornavam-se donas de casa. Em geral, mudavam-se para a
periferia das grandes cidades, cuidavam da casa e dos filhos enquanto o
marido saía para trabalhar fora. Depois de algum tempo, essas jovens
mulheres estavam tristes, deprimidas, entediadas pela rotina. De nada
valia a formação que tiveram. Ao mesmo tempo, elas sentiam enorme culpa,
pois não conseguiam explicar por que ainda se sentiam infelizes mesmo
depois de casadas e com filhos, destino traçado para elas e “sonho” de
quase todas as mulheres de sua época.
Apesar dos caminhos traçados por mulheres extraordinárias como Nísia e Bertha, o feminismo nas décadas de 60/70 enfrentou uma das mais difíceis armas: o ridículo. Éramos todas ridicularizadas. Ir a público explicar o que era o feminismo significava estar preparada para piadas, gozações, desconsideração!
Betty mostra como essa geração recorria aos psicólogos, aos remédios,
sem resolver o problema. A difusão desse diagnóstico provocou grande
impacto e disparou uma reação que culminou com um largo movimento
feminista. Mulheres brancas e de classe média, de modo geral, se uniram
em torno de quatro pontos: pleitear “oportunidades iguais de acesso ao
trabalho e à instrução, paridade de salários para tarefas iguais,
legalização do aborto, abertura de creches em regime de tempo integral
em todo o país”. Esse conjunto de reivindicações passou a ser conhecido
como Equal Rights Amendement [iii].
A Mística Feminina foi para mim um dos mais influentes
livros pela visão sociológica que trazia e pela desconstrução dos
padrões tradicionais pelos quais a sociedade procurava conformar as
mulheres. Rose Marie Muraro, editora da Vozes, convidou Betty Friedan
para vir lançar a versão brasileira de A Mística Feminina.
A escritora foi recebida como uma personagem ridícula, horrorosa, que
vinha trazer ideias americanas para o Brasil para influenciar as
brasileiras. Imaginava-se que o feminismo fosse um modismo
norte-americano que as brasileiras iriam copiar. Qualificada com menções
que a descreviam como uma mal-amada, horrorosa, o Pasquim a
recebeu com todos os epítetos já descritos. Mas ela, como uma escritora
culta, se revelou muito segura de suas ideias sobre a realidade
norte-americana e logo mostrou que nada poderia falar sobre as
brasileiras cuja realidade confessou desconhecer. Assim, desarmou os
entrevistadores, que reconheceram estar diante de uma intelectual e
militante pelos direitos da igualdade entre homens e mulheres. Ao final,
a reportagem apresentou outra visão da escritora e do feminismo.
Cada uma à sua maneira, Leila Diniz e Betty Friedan abalaram pontos
nevrálgicos da condição feminina, desestruturando um falso moralismo.
Libertar o corpo, dar à mulher o exercício de sua sexualidade, foi um
passo para revelar o que ocorria e ocorre dentro do lar. A dupla moral,
uma aplicada ao homem e outra à mulher, durante séculos foi a garantia
da desigualdade entre os gêneros.
O movimento feminista veio mostrar a vertente política da moral e
afirmar pela primeira vez que o pessoal é político. Hoje, quando nos
deparamos com figuras políticas que em seus discursos querem voltar ao
século XIX e reger a sexualidade por padrões patriarcais e de uma
determinada vertente religiosa, constatamos quanto ainda falta para
alcançarmos a plenitude da cidadania das mulheres e dos homens.
28 de outubro de 2018
[i] DUARTE, Constância Lima. Nísia Floresta. Recife: Fundação Joaquim Nabuco, Editora Massangana, 2010 (Coleção Educadores).
[ii] ARQUIVO NACIONAL. Mirian Lopes Cardia.
Publicado em 19 de Fevereiro de 2018. Disponível em:
[iii] IN MEMORIAM. “Betty Friedan: morre a feminista que estremeceu a América”. Ana Rita Fonteles Duarte. Rev. Estud. Fem., vol. 14, no. 1. Florianópolis Jan./Apr. 2006.
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