Luis Felipe Pondé*
A mentira motivacional indiscriminada como paradigma é patogênica
O tema de que o mundo está mudando encanta o
setor corporativo da sociedade, assim como outros setores, como a
educação. A ideia de que essas mudanças são um desafio e todos devem se
preparar para elas é um clichê para quem conhece um pouco o mundo
corporativo no seu viés de comunicação e marketing. O tema é pungente e
merece atenção.
Mas suspeito que o que significa aqui "mudança" mereça uma atenção
mais detalhada. Normalmente, "mudança" é usada para impressoras 3D,
entrada de algoritmos no mercado de trabalho e, portanto, mais tempo
livre para lazer, família e afins. E tudo isso adquire um tom meio
cor-de-rosa, lindo e otimista.
Como nos ensinou o grande filósofo Hegel (1770-1831),
o pensamento mais atento deve sempre cuidar para não se esquecer do
negativo no mundo. Em síntese, a tarefa do filósofo é olhar ali onde o
mundo está dando errado. Claro que esse "negativo" se refere ao momento
negativo da dialética, mas deixemos isso para outro dia.
Proponho cinco tópicos sobre mudança seguindo a diretriz hegeliana negativa.
O primeiro seria a necessidade de abandonarmos o paradigma
motivacional na comunicação corporativa (na educação também, mas
deixemos isso para outro momento).
A necessidade de motivar as pessoas o tempo todo nasce da própria
estrutura produtiva burguesa: acreditar na mudança significaria melhor
produtividade, mais otimismo, menos tristeza, mais riqueza.
O capitalismo precisa de pessoas felizes e que creem nos avanços. O
problema é que apenas os doentes conseguem ser felizes "o tempo todo".
O problema é que o paradigma motivacional implica debilidade
cognitiva, intelectual e afetiva, quando usado em demasia, como é o caso
em questão.
Seres humanos podem não saber o tempo todo o que é fake news ou
verdade, mas, quando mentimos demais para eles, eles chegam a um
momento em que são obrigados ou a entrar em crise (justamente o que o
paradigma motivacional teme e reprime com todas as forças) ou a
aceitarem que optaram pelo retardo mental (o que em si, nalgum momento
posterior, poderá gerar alguma forma de crise).
Os seguintes tópicos devem ser vistos à luz deste primeiro como fundamento.
Um segundo tópico é a imposição da felicidade o tempo todo, o que,
por sua vez, implica um aumento de medicamentação. A mentira
indiscriminada como paradigma é, seguramente, patogênica. A solução é se
dopar em alguma medida.
O contrário aqui não é a "felicidade da verdade", mas o vínculo
delicado entre verdade e saúde mental, de alguma forma. Seja nos jovens e
no seu aumento de uso de ansiolíticos, seja nos mais velhos e na sua
depressão. A destruição da libido parece ser uma escolha política para
garantir um mundo mais seguro e correto.
Aliás, um terceiro tópico de mudança que nos desafia é a crescente
diminuição da atividade sexual entre os mais jovens. A escolha pelo
combate à ansiedade implica uma diminuição da própria libido, uma vez
que ansiedade e libido são irmãs. Trocando em miúdos: se você não quiser
ser brocha, terá que ser um pouco infeliz.
Um quarto tópico, decorrente dos anteriores, é o caráter redentor do
uso de um pouco de verdade na comunicação com as pessoas. Dizem a elas,
por exemplo, que os algoritmos as conhecem melhor do que elas mesmas e
que, como gosta de falar o historiador israelense Yuval Harari, de forma
um pouco dramática, logo seremos hackeados por esses mesmos algoritmos,
que nos dirão o que queremos e o que pensamos, por meio das mídias
sociais crescentes.
Esse discurso pode ser mais importante do que ficar repetindo
milhares de vezes que as mídias sociais têm um caráter democrático e
revolucionário e que o avanço da inteligência artificial criará um mundo
de renda mínima para as pessoas ou que elas criarão obras como as de
Shakespeare a cada manhã.
Sem trabalho não há dignidade, e adultos que se acostumam a viver "de
graça" sempre têm problema de caráter. O hackeamento a que se refere
Harari nasceria do uso de algoritmos mapeando nossos perfis de consumo e
de postagens.
Um quinto tópico é o crescimento inexorável da solidão no mundo. O tédio será um dos afetos essenciais num "mundo Netflix
+ iFood" como paradigma cotidiano. As pessoas viverão mais e terão
menos família a sua volta. As pessoas estarão ocupadas sendo felizes e
não cuidando de idosos. Empresas oferecerão serviços nos lugar dos
"afetos antigos". E a solidão será um problema de saúde pública, fruto
da ampliação da saúde em larga escala.
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