Iran Gonçalves Jr.
David
Foster Wallace, escritor e professor universitário de inglês e redação, surgiu
para a crítica e o publico em meados da década de 80. Recebeu uma bolsa
MacArthur, (a chamada bolsa dos gênios) em 1997 e foi finalista do Prêmio
Pulitzer em 2012. Na cerimônia de formatura da turma de 2005 do Kenyon College,
prestigiada instituição de ensino superior com ênfase em ciências humanas,
contou a seguinte historieta aos formandos: "Dois jovens peixes se encontram
com um peixe mais velho que nada na direção oposta; o peixe mais velho
cumprimenta os jovens e pergunta: 'Como está a água hoje, rapazes?'. Os peixes
jovens continuam nadando. Após um tempo, um deles pergunta ao outro: 'Que diabo
de coisa é água?'". (bit.ly/2xKZf6C)
Wallace explica a parábola: os peixes jovens desconhecem que as coisas mais importantes da vida são as mais difíceis de se reconhecer e valorizar. Centrados no nosso dia a dia, somos incapazes de reconhecer a presença e as necessidades dos outros e vivemos mergulhados nas convenções e restrições sociais que nos são impostas e, inconscientes disso, vivemos muitas vezes amedrontados e infelizes.
Wallace explica a parábola: os peixes jovens desconhecem que as coisas mais importantes da vida são as mais difíceis de se reconhecer e valorizar. Centrados no nosso dia a dia, somos incapazes de reconhecer a presença e as necessidades dos outros e vivemos mergulhados nas convenções e restrições sociais que nos são impostas e, inconscientes disso, vivemos muitas vezes amedrontados e infelizes.
Wallace
termina seu discurso de maneira eloquente. Diz que alcançar a consciência de
seu valor, escapar da tirania das convenções que nos restringem e valorizar o
outro é o caminho para que não desejemos atirar na própria cabeça.
David
Foster Wallace suicidou-se em 12 de setembro de 2008, aos 46 anos.
Suicídio
é a segunda causa de óbito no mundo entre jovens dos 15 aos 29 anos, perdendo
apenas para acidentes de tráfego. Na Europa, para a mesma faixa etária, é a
primeira causa. Nas Américas é a terceira, suplantada por violência
interpessoal e acidentes de tráfego. Suicídio permanece na lista das dez
maiores causas de óbito até a quinta década de vida. Em números absolutos, a
Organização Mundial de Saúde (OMS) estima mais de 800 mil casos por ano e
projeta que ocorrem 20 tentativas para cada óbito, o que eleva o potencial de
casos para 16 milhões de pessoas ao ano.
No
Brasil, dados do Ministério da Saúde indicam 55,6 mil casos de suicídio entre
2011 e 2016, uma média de 25 ao dia ou o equivalente à queda de quatro aviões
da ponte aérea Rio-São Paulo ao mês. Onde estão essas vítimas? Que doença é
essa?
As
vítimas estão escondidas pela convenção social, amplamente aceita, de que é
melhor não falar nesse assunto: os familiares não falam, os amigos e conhecidos
não comentam. Talvez sejam duas mortes o que obtemos com esse silêncio. A
vítima se mata fisicamente e nós matamos qualquer tentativa de compreensão do
que aconteceu, o que equivale a matar a memória da vítima. Às famílias,
desamparadas, restam a tristeza, a solidão e a incompreensão que perpassam
gerações.
O
suicídio envolve um amplo arco de situações sociais, comportamentais,
religiosas e filosóficas, que dificulta sua classificação como uma doença.
Sócrates não quis fugir de Atenas, como propunham seus admiradores. Considerou
que, se fugisse, tornaria letra morta o que defendeu em toda a sua vida. Foi
com as próprias mãos que bebeu a cicuta.
Samurais
não se furtavam a tirar a própria vida quando demandados a isso por seus senhores
ou por senso de honra. Monges budistas se imolam com fogo em protestos contra a
guerra. Mártires dão a vida como testemunho de fé. Políticos e ativistas usam o
suicídio como argumento na contenda política. Portadores de doenças incuráveis
procuram a eutanásia, ou suicídio assistido. Mesmo que não estimulados, essas
situações costumam ser aceitas, a despeito da sua radicalidade, como
manifestações de nobreza ou do caráter forte e indomável de seus perpetradores.
Talvez a diferença seja que esses suicídios são antecipados, anunciados e,
portanto, fazem-nos crer que são fruto de decisões pessoais racionalizadas,
ainda que extremadas.
O pavor vem
com o suicídio não anunciado, não previsível, não ligado a nenhuma causa
definida. O suicídio que se manifesta como uma desistência da vida, sem aviso
prévio, súbito, silencioso nas suas razões. Esse suicídio inesperado pode,
sempre, ser considerado fruto de uma "doença orgânica"? De uma
"depressão" não diagnosticada? Se assim for, pode-se prevenir essa
"doença"? Pode-se tratá-la?
Ou será
que é fruto das pressões sociais que o indivíduo não reconhece, mas que acabam
por esgotar, silenciosamente, suas reservas emocionais? Ou será que é uma
combinação das duas coisas? Em qual proporção? Aqui chegamos ao limite do
conhecimento atual. Não há consenso dos especialistas nem dados empíricos que
sustentem uma ou outra tese mais fortemente.
O que nos
resta fazer, como indivíduos e sociedade, para identificar e tentar ajudar as
pessoas que sentem não haver um outro caminho? A primeira atitude é falar
abertamente sobre o assunto com todos. Como não temos como localizar quem
cogita o suicídio, deve-se conversar na família, nas escolas, no trabalho, nos
círculos sociais de cada um sobre os medos, as carências e os afetos.
Ouvir o
outro e deixar que o outro me ouça. Não há necessidade de treinamento ou
especialização. Falamos aqui de restabelecer o velho e bom contato humano, que
parece perdido hoje. Não se pergunta, inicialmente, "Você vai se suicidar
hoje"? Pergunta-se:
"Como está sua vida? O que o assusta? O que o amedronta?". Afirma-se: "Eu estou aqui, eu o ouço e me importo".
"Como está sua vida? O que o assusta? O que o amedronta?". Afirma-se: "Eu estou aqui, eu o ouço e me importo".
A partir
daí, poderemos ganhar a confiança de quem sofre e sugerir a procura de um
profissional de saúde mental. Por que é tão difícil fazer isso? Voltemos ao
início do nosso texto. Como Wallace, acredito que mergulhados numa sociedade complexa,
competitiva, consumista, egoísta e egóica. Nós respondemos com a forma mais
básica de defesa, nos fechamos em nós mesmos, não olhamos para o lado,
esquecemos de nós mesmos e do outro.
Esse
comportamento nos torna vulneráveis à ansiedade e à depressão. Não reconhecemos
nosso lugar no mundo. Não reconhecemos, como os peixes jovens, o próprio mundo.
Talvez o discurso de Wallace tenha sido, também, um pedido de socorro. É rara a
oportunidade de escutar uma pessoa que se suicidou falar sobre o que o aflige
tão abertamente e em público.
Mais rara
ainda é a clara exposição, quase metodológica, do que Wallace considera os
problemas que a afetam a sociedade. Convém escutar.
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* Iran
Gonçalves Jr, médico , escreve neste espaço mensalmente
Fonte: https://www.valor.com.br/cultura/5916253/como-esta-agua
12/10/2018
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