“Ir em direção ao homem é ir em direção a Deus. O contrário não é necessariamente verdadeiro”
A participação de
uma significativa parcela da comunidade judaica em apoio a Jair
Bolsonaro, é um aspecto das eleições que ainda merece uma análise mais
detida.
Houve a palestra na Hebraica do Rio de Janeiro, que de certa
forma catapultou a candidatura do ex-capitão entre as elites. Houve a
internação no Hospital Israelita Albert Einstein, após a facada. E
agora, o flerte de nosso presidente com o premiê israelense Bibi
Netanyahu, e a perspectiva da mudança da embaixada para Jerusalém,
seguindo o exemplo de Trump.
Não se pode dizer que toda a comunidade judaica aderiu a sua
candidatura. Mas houve quem dissesse que se tratava de 90%. Em
contrapartida, criou-se no facebook o grupo judeus contra Bolsonaro, que
conta com mais de 10 mil curtidas. Calcula-se em 120 mil, a população
judaica brasileira, da qual faço parte.
O rabino Michel Shlesinger, bacharel de direito pela USP, é uma
liderança humanista e moderada que expressa com considerável
conhecimento os saberes da ética judaica. Oficia na Congregação
Israelita Paulista, historicamente associada ao movimento de luta pelos
direitos humanos. Henry Sobel era seu líder quando protagonizou
importante papel de denúncia no assassinato de Vladimir Herzog, nos
porões da ditadura, em 1975.
Rabino Michel escreveu um artigo para a Folha de S. Paulo, há três
semanas, no qual evocou conceitos como o voto útil, o Estado laico e o
direito das minorias.
“A maneira como o Estado trata povos indígenas e descendentes de
quilombolas, quanta liberdade dá ou não a religiões afrodescendentes e o
quanto se engaja na luta para que negros e mulheres possuam as mesmas
chances que homens brancos é um tema central para o voto imbuído de
valores judaicos”, escreveu na ocasião.
*
Diante de tudo que aconteceu, qual seria sua orientação para as pessoas?
Tivemos um processo eleitoral bastante polarizado, e isso fez com que
pessoas que se querem bem discutissem de maneira pouco gentil e
delicada. Acho que agora, passadas as eleições, temos pela frente o
desafio da reconciliação. Assim é o processo democrático, uns vencem,
outros perdem. Agora é hora das pessoas voltarem a se abraçar, darem as
mãos e resgatarem o carinho e a confiança que tinham antes de todo esse
processo.
Gostaria de discutir o apoio que parte de comunidade judaica deu ao Bolsonaro. Como isso soou para você?
Eu vi com naturalidade. Temos uma comunidade plural, e tenho orgulho
que ela seja assim. Nós tivemos pessoas que apoiaram o candidato
vencedor e pessoas que apoiaram o candidato perdedor. Havia campanhas na
mídia digital e rodas de conversa em uma direção e na outra. É uma
comunidade que tem pessoas que pensam diferente, que defendem diferentes
pontos de vista.
Há duas semanas fiz uma entrevista com a Monja Coen com o
seguinte título: “Budistas de verdade não votam em Bolsonaro”. Judeus de
verdade apoiam Bolsonaro?
Alguns sim, é possível.
Apoiar uma proposta como a dele não contraria a ética judaica?
Eu acredito que a ética judaica passa pela possibilidade de você
admitir diversos pontos de vista. E foi o que aconteceu durante as
eleições. Essa é a beleza da democracia, essa é a beleza do judaísmo, no
sentido de que a gente não tem uma estrutura hierarquizada. As pessoas
têm direito e liberdade de defender o que acreditam, e de apoiar as
campanhas e as pessoas que elas querem apoiar. Isso, em especial, é
motivo de orgulho, é bonito.
O que há de negativo, na minha opinião, foi uma agressividade que
aconteceu durante todo esse processo. Isso é o que me preocupa, famílias
que pararam de se falar, grupos de WhatsApp desmembrados porque pessoas
não conseguiam mais se relacionar. Temos um caminho de cicatrização
pela frente, de reaproximar essas pessoas, que são pessoas que se
gostam, que se amam, mas que no fervor da defesa de um ou outro
candidato acabaram de desentendendo.
Tem alguma passagem bíblica que te inspira nesse momento de reconciliação?
Existem muitas. Mas, em especial eu me lembro de uma passagem do
Talmud (tratado sobre lei, ética e costumes judaicos), que diz que
devemos ser discípulos de Aaron – o irmão de Moisés, que segundo a
literatura rabínica era um conciliador.
Quando havia duas pessoas que brigavam, ele chegava pra uma delas e
falava: “Olha, o outro está com saudades de você, não aguenta mais essa
separação, não sabe viver sem você”, e falava isso para o outro também. E
aí as duas pessoas acabavam se aproximando e reconciliando.
Então eu acho que a gente tem um pouco agora essa função de ser
discípulos de Aaron, no sentido de ajudar as pessoas a superarem as
mágoas. E acho que foram muitas mesmo, eu tenho visto isso.
Quem estava em uma trincheira se sentiu muito distante da outra, com
dificuldade de ouvir, de dar qualquer passo na direção contrária. Essa
distância criada entre os dois candidatos se refletiu em seus
apoiadores.
Eu entendo que a ética judaica aprecie a diversidade. Mas,
quando a gente tem um discurso que é preconceituoso, que ataca as
minorias, que propõe de armar a população. Esse tipo de proposta dialoga
com a religião?
A religião é muito ampla. As fontes judaicas – assim como as fontes
de qualquer tradição religiosa – têm um pouco de tudo, e depende de onde
você coloca a lente de aumento.
As religiões têm passagens lindas, das quais a gente se orgulha
muito, e têm passagens não tão bonitas também, nas fontes do judaísmo e
de todas as outras tradições religiosas. Portanto, falar “religião” é
algo extremamente amplo.
É verdade que o judaísmo, de forma bastante sistemática, defendeu o
direito das minorias, os direitos humanos. Defendeu a ética e o combate à
corrupção. Tudo isso é algo coerente com a defesa dos valores que a
tradição judaica privilegiou em detrimento de diversos outros.
A amplitude das fontes religiosas pode servir como legitimação de
posturas fanáticas – como acontece em todas as religiões; existem
minorias fanáticas que acabam legitimando suas posições nas fontes de
suas tradições religiosas. Isso é também parte da religião. As fontes
têm um pouco de tudo. A pergunta é: o que você resolve sublinhar?
Pessoalmente, enfatizo os valores que eu enxergo como os mais
importantes da tradição judaica. E entre eles está, sem dúvida nenhuma, a
questão dos direitos humanos, da defesa das minorias.
Na cultura judaica existe a sombra do que foi o holocausto e o nazismo. Como ela dialoga com essas escolhas?
Eu acho que a gente vive de sombras.
Essa é uma passagem recente da História da humanidade que atingiu a
comunidade judaica de forma particular, assim como o regime militar é
uma passagem recente da História brasileira e tem efeitos importantes
sobre o que somos hoje.
Infelizmente a humanidade coleciona passagens sombrias, de alguma
forma a gente carrega elas com a gente, e acaba tomando decisões que são
muitas vezes motivadas por essas passagens, ou por aproximação, ou por
distanciamento.
Justamente venceu o discurso da negação da ditadura.
Eu te entendo e tenho conversado com pessoas que têm essa dificuldade que você está expressando.
Tem uma coisa do processo democrático que é dura mesmo. Às vezes o
seu posicionamento, aquilo que você defende como o ideal, o certo – e
talvez seja mesmo –, é derrotado. E é parte do jogo da democracia. Não é
fácil, é duro, é difícil, porque às vezes você tem muita convicção de
estar do lado correto, do lado do bem, da luz. E, eventualmente sua
posição é derrotada.
O que cada um de nós pode fazer para vivenciar essa reconciliação?
Aqueles que não apoiaram o candidato que venceu devem participar de
maneira muito próxima do que vai acontecer daqui em diante. A democracia
é assim. Alguém governa e quem perde faz oposição. A oposição é uma
posição tão importante na democracia quanto a situação. Na História
recente do Brasil, a oposição foi responsável por tirar governantes que
escorregaram, que não fizeram o que deveria ser feito. A gente tem uma
História curta de democracia com vários governantes que não terminaram
seus mandatos por conta de uma oposição que acompanhou de perto o que
estava acontecendo e teve força suficiente de interromper o mandato. Com
a Dilma foi assim, com o Collor foi assim. O papel da oposição é
importantíssimo. As pessoas que não foram eleitas, foram eleitas como
oposição.
Escutei de várias pessoas que esses sentimentos de ódio e
intolerância estavam guardados e saíram do armário, vieram à tona. Você
concorda com isso?
Concordo. A polarização da campanha fez com que muitas pessoas que
tinham posicionamentos, sentimentos, ideias que não tinham coragem de
assumi-las de maneira pública, clara, se posicionassem, fazendo com que
alguns esqueletos saíssem do armário.
Tivemos duas passagens marcantes: a palestra do Bolsonaro na
Hebraica do Rio e a internação dele após a facada no Hospital Albert
Einstein. Foram dois momentos onde houve articulação de algumas
lideranças judaicas. Você acha que para a comunidade isso é bom? Isso
poderia alimentar o preconceito, por parte de quem não é partidário
dele.
Se a comunidade estivesse toda fechada em torno de qualquer uma das
duas campanhas não seria positivo, não seria bom. Mas, haver pessoas da
comunidade judaica próximas de um ou de outro candidato e se sentindo na
obrigação de estabelecer pontes com a comunidade, aproximar esse
candidato da comunidade e etc, eu acho positivo. É positivo dentro dessa
noção de pluralismo, de uma comunidade que tem pessoas que pensam de
uma forma ou de outra, que se sentem próximas de um partido ou de outro.
Essa palestra na Hebraica foi para um só candidato…
Houve uma reação acertada da liderança da comunidade judaica quando
isso aconteceu, dizendo justamente que a comunidade é plural. Existem
pessoas que estão mais próximas de um candidato ou de outro, mas isso
não significa que a comunidade está apoiando alguém.
Tem um outro aspecto que é curioso, que é o apreço que os
evangélicos têm pela cultura judaica. No dia da vitória, o candidato
Bolsonaro fez um discurso, e no cenário da casa dele parece que sempre
há uma chanukiá (candelabro de nove braços), ou algum símbolo, objeto
que remete a nossa religião. Como isso soa pra você?
Existe uma conexão muito forte com Israel por parte dos evangélicos,
sem dúvida. E isso nos aproxima, porque a comunidade judaica sente uma
relação afetiva, espiritual muito grande com Israel. Nesse sentido a
comunidade evangélica e judaica ficam próximas.
Mas do ponto de vista religioso, teológico existem diferenças. De
fato, existem alguns símbolos judaicos que foram incorporados ao ritual
de parte das igrejas evangélicas, isso cria alguma identificação. Mas,
obviamente, são religiões diferentes, com posicionamentos diferentes em
questões da mais variadas.
Bolsonaro disse que a primeira viagem internacional que ele
faria seria para Israel. E ainda acenou com a possibilidade da embaixada
ser transferida para Jerusalém, seguindo o que os Estados Unidos
fizeram.
Eu escutei tudo isso, e tudo isso passa por essa proximidade muito
grande que os evangélicos e judeus têm com Israel. Israel é uma
referência espiritual para os dois povos.
Mas acaba extrapolando um pouco a questão da fé, quando uma
proposta como trocar a embaixada de lugar entra na mesa. Envolve uma
outra complexidade que é mais geopolítica e acaba empoderando os homens
fortes.
Para muita gente da comunidade, se você não é favor de qualquer que seja a política de Israel, é como se fosse contra Israel.
O que não é necessariamente correto.
Como brasileiros, nós eventualmente criticamos o governo do Brasil, e
isso não significa traição a nossa cidadania, pelo contrário. É pelo
fato de gostarmos do Brasil que a gente assume uma posição crítica que
às vezes elogia e às vezes vai ser negativa a algum tipo de
posicionamento. O mesmo tem que acontecer em relação a Israel.
Israel é motivo de muito orgulho para a comunidade judaica, mas é um
país liderado por pessoas. Pessoas falíveis como você e eu. Eu acho que
amar Israel significa ter a possibilidade de elogiar os caminhos que
Israel segue, e também ter a possibilidade de criticar eventuais erros.
Você escreveu no seu artigo sobre o conceito de Estado laico.
O slogan de Bolsonaro foi “O Brasil acima de tudo, Deus acima de tudo”.
Acho que a resposta mais honesta é: a conferir. Vamos ficar
vigilantes para ver de que maneira isso vai caminhar. Eu acredito que
Estado laico é uma conquista enorme da democracia brasileira. Devemos
nos manter vigilantes para que essa conquista permaneça. A separação
entre Estado e religião ainda está se aperfeiçoando, acho que ainda não é
uma separação completa e absoluta. O exemplo disso são os símbolos
cristãos em repartições públicas como tribunais, etc, que ainda são
resquícios de um Brasil oficialmente católico. Acho que essa separação
ainda está amadurecendo e que qualquer retrocesso não seria saudável
para nossa democracia.
O que você acha da ideia de escola sem partido?
Embora eu não conheça a proposta em profundidade, o que eu posso
dizer é que me oponho a qualquer cerceamento de liberdade. Acho que os
excessos precisam ser investigados e punidos à posteriori. Qualquer tipo
de censura prévia é ruim, é um retrocesso. A escola, a universidade, é
lugar do pensamento livre.
E a ideia do retorno aos valores mais tradicionais da
família? Existe um discurso corrente por um retorno a um modelo mais
convencional, um saudosismo, uma proposta de retornar aos valores
cristãos de família.
Os valores de família não necessariamente são cristãos, porque tem
família na comunidade muçulmana, na comunidade judaica, na comunidade
budista. Os valores de família são mais universais, não somente
cristãos. E ninguém se opõe à família, obviamente. Temos que ver na
prática o que isso vai significar.
Se o resgate de valores de família significa a exclusão do outro, de
quem não se encaixa no modelo tradicional de família, então estamos
falando de discriminação. E discriminação não só é ruim, como é crime.
Então precisamos ver de que maneira isso vai acontecer.
No judaísmo, o conceito de família é absolutamente essencial,
importantíssimo. Mas, não podemos discriminar aquele que não se encaixa
no modelo tradicional de família.
Na vida convivi também com um perfil de praticante da
religião, que é praticante na sinagoga, mas que no campo profissional às
vezes é um predador.
Eu fico às vezes com a impressão de que quem fala exageradamente em nome de Deus, deveria antes de mais nada olhar para si.
Talvez essa seja uma generalização. Mas, o que existe são pessoas que
investem muito no ritual, e comprometem de maneira leviana as relações
pessoais. Na minha avaliação, essa não é uma pessoa religiosa. Uma
pessoa religiosa busca um equilíbrio entre o ritual e as relações
sociais, e mais do que isso, quando encontra conflito entre um e outro,
privilegia as relações sociais.
Ir em direção ao homem é ir em direção a Deus. O contrário não é necessariamente verdadeiro.
Quando você está indo somente em direção a Deus, somente praticando
rituais – de qualquer que seja a tradição – você não necessariamente
está contribuindo para uma sociedade mais justa, para uma sociedade
melhor. Quando isso entra em conflito, você precisa privilegiar o social
em detrimento do ritual.
Existe uma passagem que lemos no último shabbat (dia do descanso
semanal), que conta que Abraão estava na porta de sua tenda conversando
com Deus, recebendo a presença divina. Aparecem três visitantes, e ele
abandona Deus falando sozinho e corre em direção aos visitantes. A
tradição judaica clássica aproveitou essa passagem para questionar:
“Como é possível? Ele está conversando com Deus. Ele abandona Deus, ele
deixa Deus falando sozinho para receber visitantes?”. E a resposta é
maravilhosa: “ao correr na direção dos visitantes, ele estava correndo
na direção de Deus”.
Quando você se compromete com a sociedade, quando você paga os seus
impostos, quando você paga os salários dos seus funcionários, quando
você se preocupa com aqueles que têm menos e que vivem na margem da
sociedade, como os refugiados, você está indo na direção de Deus, está
cumprindo um papel religioso tão ou mais importante que um ritual.
A sinagoga não tem regras arquitetônicas, cada uma tem um cara. Mas a
sinagoga tem que ter janelas, porque a sinagoga tem que manter contato
com o que acontece do lado de fora, na rua. Na hora que a sinagoga se
isola do que está acontecendo na sociedade, ela deixa de ter razão para
existir. Na minha leitura de judaísmo, um ritual como um fim em si mesmo
não faz nenhum sentido. Um ritual é um meio de aprimoramento da pessoa
para que ela tenha ferramentas para aprimorar a sociedade.
Talvez esse seja um recado interessante para os nossos
governantes: pensar mais nos humanos e menos em Deus. Porque através dos
humanos você chega em Deus.
Isso. E o contrário não necessariamente é verdadeiro.
Você acha que resta uma autocrítica para ser feita de tudo isso?
Sim, mas de ponta a ponta. Eu acho que a sociedade brasileira precisa
deitar no divã depois de tudo isso que aconteceu. E não seria justo
dizer que esse divã é de um candidato ou partido específico.
Eu acho que a gente precisa de uma autoanálise corajosa. Olhar para
tudo que está acontecendo e se comprometer com o presente e o futuro do
Brasil.
Eu acho que esse é o momento da gente se unir em torno do desejo que o
novo governo seja bem sucedido. E fazer uma oposição responsável. Acho
que o caminho é esse. Desejo o melhor para o Brasil, e o que for melhor
para o Brasil será o melhor para os judeus daqui.
--------Reportagem por: Morris Kachani - 31 Outubro 2018
Fonte: https://brasil.estadao.com.br/blogs/inconsciente-coletivo/bolsonaro-e-a-etica-judaica/?utm_source=estadao:allin&utm_medium=newsletter&utm_campaign=estadaonoite::e&utm_content=link:::&utm_term=::::
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