Michael Reid*
Segundo
Michael Reid, Jair Bolsonaro tem grande apoio principalmente porque
conseguiu personificar a indignação popular com o PT e seus erros
catastróficos
"As
coisas vão abaixo; o centro cede", escreveu William Butler Yeats, o grande
poeta irlandês, em "A Segunda Vinda". Yeats capturou a sensação de
desarticulação sociopolítica na Europa após a Primeira Guerra, que levaria,
depois da crise financeira de 1929 e a depressão que se seguiu, à ascensão de
Hitler. Mas suas linhas se aplicam às políticas de muitas democracias
ocidentais no momento e especialmente ao Brasil, onde o colapso do amplo centro
político foi assustadoramente repentino.
Há dois
anos, as eleições municipais realizadas pouco depois do impeachment de Dilma
Rousseff pareciam passar uma mensagem clara. De um lado, os eleitores bateram
no PT: o partido elegeu apenas 254 prefeitos de um total de mais de 5,5 mil. De
outro, o PSDB conquistou 803 prefeituras, em comparação às anteriores 701,
enquanto seu provável aliado, o MDB, conseguiu 1.038. No modelo que a política
brasileira vem seguindo desde 1994, esse resultado apontava para uma vitória
fácil do PSDB nas eleições presidenciais deste ano e o declínio do PT.
Mas o modelo foi destruído. Os brasileiros enfrentam uma escolha não invejável entre dois extremos. A moderação que caracterizou a política brasileira na maior parte do atual período democrático se foi. De um lado, Jair Bolsonaro, com sua nostalgia da ditadura de 1964-1985 e seu entusiasmo por Augusto Pinochet, personifica o surgimento de uma direita radical e retoricamente não democrática, com um grau sem precedentes de apoio público.
Mas o modelo foi destruído. Os brasileiros enfrentam uma escolha não invejável entre dois extremos. A moderação que caracterizou a política brasileira na maior parte do atual período democrático se foi. De um lado, Jair Bolsonaro, com sua nostalgia da ditadura de 1964-1985 e seu entusiasmo por Augusto Pinochet, personifica o surgimento de uma direita radical e retoricamente não democrática, com um grau sem precedentes de apoio público.
Do outro
lado encontra-se um PT que persiste no erro representado pelo adversário de
Bolsonaro no segundo turno, Fernando Haddad. O partido não fez uma autocrítica,
nem pediu desculpas pela administração desastrosa da economia sob o governo de
Dilma Rousseff ou pela corrupção sistêmica sobre a qual ele presidiu. No
primeiro turno, o partido fez uma campanha baseada numa plataforma que prometia
repetição dos erros econômicos do passado e se recusou a criticar a ditadura de
Nicolás Maduro na Venezuela.
É claro
que o colapso do centro no Brasil faz parte de um fenômeno global. Nos Estados
Unidos, Donald Trump abraça um nacionalismo racista e vem espezinhando várias
convenções não escritas da democracia americana, com seu desprezo a regras
contra conflitos de interesses, críticas rotineiras à imprensa livre e um
sectarismo grosseiro com instituições independentes, como a Suprema Corte e o
FBI. No Reino Unido, Theresa May, uma conservadora moderada, luta contra uma
direita reacionária liderada por Boris Johnson, para amenizar os danos
autoinfligidos ao país pelo Brexit, enquanto o Partido Trabalhista foi
capturado por Jeremy Corbyn, um "filo-trotskista".
Pela
Europa, partidos extremistas estão em marcha. Pelo mundo, o mesmo ocorre com
autocratas eleitos, de Recep Tayyip Erdogan, na Turquia, a Rodrigo Duterte, nas
Filipinas. O que o escritor Fareed Zakaria chamou de "democracias
iliberais", nas quais as eleições continuam, mas não a prática de governos
democráticos, com seus pesos, contrapesos e regras de justiça, tornou-se o
fenômeno político característico do nosso tempo.
Em seu
mais recente relatório, intitulado "Democracia em Crise", a
organização não governamental Freedom House concluiu: "Os direitos
políticos e as liberdades civis caíram em 2017, ao redor do mundo, ao seu ponto
mais baixo em mais de uma década, estendendo um período caracterizado por
autocratas entusiasmados e democracias sitiadas, com a abdicação dos Estados
Unidos de seu papel de liderança na uta global pela liberdade humana".
Nas
eleições recentes na América Latina, o centro esteve sob pressão. No México,
Andrés Manuel López Obrador chegou ao poder com uma cruzada contra "a
máfia do poder", uma plataforma nova no México, e um projeto para
recentralizar o poder (o tempo dirá se democraticamente ou não). Na Colômbia,
apesar de uma tradição de moderação política, os centristas definharam. O
conservador Iván Duque venceu o segundo turno contra Gustavo Petro, da esquerda
populista. Na Costa Rica, nenhum dos partidos do centro, que dominaram o
governo desde 1948, passou para o segundo turno das eleições. Na Nicarágua,
Daniel Ortega seguiu a trilha de Maduro no caminho da ditadura.
Os fatores por trás do colapso do centro variam de país para país. O fator comum é que as elites políticas são amplamente vistas como atuantes em benefício próprio, não se preocupando mais em proteger e promover os interesses das pessoas comuns. Isso levou à busca de salvadores, nos extremos. Tanto Bolsonaro como López Obrador, de maneiras contrastantes, são supostos salvadores da pátria. Nos EUA e na Europa, a credibilidade dessas elites foi duramente atingida pela crise financeira de 2008-2009 e suas consequências.
A globalização transferiu muitos empregos do setor industrial do mundo desenvolvido para China, outros países asiáticos e, sim, para partes da América Latina (embora não muito para o protecionista Brasil). A globalização também alimentou o maior movimento migratório da história. A ampla maioria dos imigrantes trabalha, em vez de viver à custa de benefícios sociais, e eles amenizam o problema demográfico da Europa. Mas sua presença visível contribui para a sensação nas classes trabalhadoras que vêm sofrendo com perda de empregos e estagnação dos salários de que elas "perderam o controle" de suas vidas e ambientes, um sentimento que é explorado pelos demagogos.
No caso do Brasil, substitua a crise financeira de 2008-2009 pela recessão de 2015-2016, provocada pela gestão grosseira da economia por Dilma. Em um país onde o desemprego dobrou e a renda per capita caiu 10%, a indignação popular é inevitável. Substitua o problema de imigração pelo aumento dos crimes violentos e o medo com a falta de segurança, produto do policiamento ineficaz e o colapso dos serviços públicos em razão das receitas mais baixas do governo e prioridades de gastos equivocadas.
A
combinação da austeridade econômica e corrupção generalizada levou a indignação
popular a ser direcionada para a classe política. Amigos brasileiros
pessimistas vêm me lembrando com frequência que na Itália a Operação Mãos
Limpas gerou Silvio Berlusconi; agora, ao que parece, a Lava-Jato quase que
certamente entregou o Brasil para Jair Bolsonaro, que, após 27 anos no
Congresso, conseguiu o feito improvável de se apresentar como um outsider não
contaminado pela política tradicional.
A ascensão de Bolsonaro à beira da vitória reescreveu as regras da política no Brasil. De certa forma isso é positivo. A chave automática para o sucesso não são mais as máquinas de clientelismo, gastos de campanha obscenos e tempo de televisão acumulado via coalizões sem nenhuma ideologia a não ser o interesse em assaltar o dinheiro público. Para o bem ou para o mal, eles sucumbiram às redes sociais, com sua câmara de eco de "fake news", mentiras e insultos a adversários.
A ascensão de Bolsonaro à beira da vitória reescreveu as regras da política no Brasil. De certa forma isso é positivo. A chave automática para o sucesso não são mais as máquinas de clientelismo, gastos de campanha obscenos e tempo de televisão acumulado via coalizões sem nenhuma ideologia a não ser o interesse em assaltar o dinheiro público. Para o bem ou para o mal, eles sucumbiram às redes sociais, com sua câmara de eco de "fake news", mentiras e insultos a adversários.
Bolsonaro
também reescreveu a história brasileira. Há poucos antecedentes de apoio
massivo à direita radical. A Ação Integralista Brasileira, movimento fascista
de Plínio Salgado, por um breve momento arregimentou 100 mil membros na metade
da década de 30. De certa forma, Bolsonaro parece uma fusão de Carlos Lacerda
("uma figura nervosa e verbalmente violenta que sempre estava no
ataque", conforme definiu um biógrafo) e o general Emílio Garrastazu
Médici (cujo governo torturou e matou nos anos de chumbo, ao mesmo tempo em que
lançou um ataque desenvolvimentista sobre a Amazônia). Mas, no atual período
democrático, poucos políticos vinham querendo se identificar como de direita.
Em
retrospecto, os sinais de que o centro estava entrando em colapso eram
evidentes, e como alguém que gosta de se ver como um observador experiente do
Brasil, me declaro culpado por não ter detectado a magnitude desse colapso. Em
março, estive em Eldorado, na periferia de Diadema (SP), como convidado da
Acer, projeto comunitário que trabalha duro para fornecer oportunidades aos
moradores locais. As pessoas estavam fartas com o aumento da criminalidade e o
desemprego e com uma sensação de abandono pelas autoridades.
"Quando
saímos de casa não sabemos se voltaremos vivos", lamentou Cleber Souza, o
líder da Vila Joaninha, uma ex-favela. Várias pessoas disseram que estavam
pensando em votar em Bolsonaro. Um empresário disse que preferia o regime
militar. Imaginei que à medida que a campanha engatasse, a tradicional máquina
política prevaleceria. Eu estava enganado.
Portanto,
quem perdeu o Brasil, ou pelo menos sua moderação política? A culpa precisa ser
amplamente distribuída. A começar com Lula e Dilma. Se Bolsonaro tem tanto
apoio, isso ocorre principalmente porque ele conseguiu personificar a
indignação popular com o PT e seus erros catastróficos. A estratégia de Lula de
conseguir uma hegemonia duradoura para o PT envolveu a polarização. Ele
demonizou o PSDB, a outra força moderna da política brasileira, classificando-o
de "neoliberal", preferindo se aliar às forças mercenárias do MDB e
do Centrão.
É claro
que essas forças contribuíram bastante para desacreditar as políticas
democráticas. Elas incluem Michel Temer, cujas conversas com Joesley Batista
desacreditaram suas reformas fiscais, que eram necessárias, ou Gilmar Mendes,
cuja recusa em anular a eleição de 2014, apesar de evidências contundentes de financiamentos
ilegais, deu a Bolsonaro tempo para ele se organizar. A limpeza da política
brasileira é saudável e muito necessária, mas é legítimo perguntar se os
promotores da Lava-Jato não se envolveram em alguns momentos num
"jacobinismo" destrutivo.
O caixa
dois era uma maneira opaca e não democrática de organizar a política. Mas o
sistema ra assim. Alguns capturados no expurgo eram políticos profissionais
honoráveis que jogavam de acordo com as regras do jogo. Por outro lado, os
políticos passaram duas décadas falando de reforma política, sem realizá-la.
O próprio
PSDB tem grande parte da culpa. Diante das manifestações em massa contra Dilma
e o PT em 2013-2015, não respondeu como deveria. Foi condescendente com a
corrupção. O projeto de gerações que agora estão na casa dos 60 aos 80 anos não
se adaptou às mudanças pelas quais o Brasil passou. Numa era em que a política
é determinada pela paixão, em vez da tecnocracia, o partido escolheu um
político que não desperta emoção. Ele se dedicou a fazer campanha de uma forma negativa,
em vez de propor uma visão alternativa para enfrentar os problemas muito reais
aos quais Bolsonaro dá voz. "Os melhores sem suas convicções, os piores
com as mais fortes paixões", diz Yeats em "A Segunda Vinda". Ele
poderia muito bem estar escrevendo sobre estas eleições.
O que
ocorrerá agora com o Brasil? Seja quem for o vencedor do segundo turno, o país
aparentemente enfrentará anos de conflitos políticos. Um governo do PT não
transformaria o Brasil numa Venezuela, mas poderia muito bem ser vingativo e
intolerante. Um presidente Bolsonaro, se ele for escolhido, claramente seria
conservador e polarizador. Mas ele seria antidemocrático? Diferentemente de
Plínio Salgado, ele não lidera um movimento fascista organizado. Em vez disso,
comanda uma corrente autoritária de opinião e vem surfando numa onda justa de
indignação popular.
A tarefa
dos centristas será transformar a defesa da democracia liberal numa causa
popular, mostrando que ela pode resolver os problemas mais prementes do país
com muito mais eficiência que o autoritarismo mascarado de liberalismo
econômico. Trinta anos após a promulgação da Constituição de 1988, a descida do
Brasil à democracia iliberal não é inevitável. Mas é assustadoramente possível.
(Tradução de Mario Zammarian)
* Michael Reid é editor sênior da "The Economist" e escreve a coluna Bello, sobre América Latina. Seu livro "O Continente Esquecido - A Batalha pela Alma Latino-Americana" foi publicado em 2017.
Fonte: https://www.valor.com.br/cultura/5934901/o-risco-de-uma-democracia-iliberal-no-brasil 20/10/2018
* Michael Reid é editor sênior da "The Economist" e escreve a coluna Bello, sobre América Latina. Seu livro "O Continente Esquecido - A Batalha pela Alma Latino-Americana" foi publicado em 2017.
Fonte: https://www.valor.com.br/cultura/5934901/o-risco-de-uma-democracia-iliberal-no-brasil 20/10/2018
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