sexta-feira, 12 de outubro de 2018

O TEMPO E O SEXO

Leandro Karnal*

Sou fruto de um azar geracional, cercado de tabus, inundado pelo moralismo religioso

Quando eu era jovem, ser apresentado aos pais da namorada era um momento decisivo e desafiador. A data era marcada, chegávamos ansiosos à soleira da casa e o contato era de extrema formalidade. Namoros tinham horários e dias marcados. Os dias eram outros e a sociabilidade mudou muito. Havia barreiras, constrangimentos, beijos roubados, etapas e desejos contidos. Namorar implicava técnica de sítio a uma cidade medieval: era preciso cercar e ter paciência.  

“Mudam-se os tempos e mudam-se as vontades.” Todos os meus sobrinhos chamam de sogra e sogro os pais da namorada que conheceram há dias. É prática corrente dos jovens enamorados de agora a coabitação marital consentida e pública desde o primeiro instante. Completam-se três semanas de namoro e o jovem já anuncia à família de origem que terá de passar o Natal na outra casa. 

Essa era, há 30 anos, uma negociação após o casamento na igreja. Uma amiga confessou-me o constrangimento de encontrar uma menina desconhecida em trajes menores na sua cozinha em plena e íntima manhã de domingo. A apresentação da candidata a nora é feita ali na cozinha. “Fazer o quê? Melhor que se encontrem aqui em casa do que na rua que é mais perigoso”, justificam os resignados candidatos a sogros. 

Do ponto de vista da psique humana, nossa raiva com esses atos nasce, em parte, da irritação que tivemos em ter tantos prazeres negados em nossa época e que agora são tão fáceis para a nova geração. Travestimos de moralidades e discursos elaborados o que seria apenas nossa inveja de não poder ter esses abundantes “test-drives” antes do casamento. Vivendo as responsabilidades de famílias atuais com todo seu corolário de obrigações, olhamos jovens vivendo apenas a parte boa da vida a dois. Não pude ter a alegria que eles possuem hoje e eles não vivem o peso que experimento agora... Eu sei, temos raiva, e uma maneira boa de disfarçar é apelar ao jargão que os “jovens não querem mais nada com nada”. Talvez sejamos nós os adultos de meia-idade que estejamos exaustos de viver o “tudo com tudo”. Nosso peso se ressente com a leveza alheia. 

As crianças não sofrem mais castigos físicos e podem emitir livres e desabridas opiniões. Fedelhos recém-saídos dos cueiros determinam o cardápio de casa e eu tinha de deglutir fígado toda semana? Alunos vão para a escola e imaginam que o professor deva tornar a aula lúdica e atraente, ou seja, nada do terror pedagógico que vivemos com autoridades que localizavam sempre o erro em nós. Os livros têm mais ilustrações, os professores sorriem, a sala é mais leve e as provas, menos terríveis hoje. Mesmo assim, eles, sem perspectiva histórica, reclamam da dureza da escola!  

Adolescentes e jovens derrubaram as bastilhas sexuais que nos aprisionavam e foram morar na Versalhes erótica do sexo sem contas a pagar e com corpos perfeitos? Ingressaram no campo da Revolução Sexual sem um Antigo Regime opressivo e moralista? Que raiva! Que injustiça! Que inveja... 

A vida não é justa. Por que sou uma pessoa madura no momento da liberdade de jovens que demandam tudo e fui adolescente em um mundo dominado pelo poder de pais e professores? Jovem durante o domínio da gerontocracia e maduro na efebocracia? Que triste. 

Tenho uma dúvida que nunca será sanada. Talvez seja uma última boia antes de reconhecer que sou fruto de um azar geracional apenas. Cercado de tabus e autoridades, inundado pelo moralismo religioso, arfando de culpa e de desejo, cada passo da descoberta sexual era um estupor enorme. O que seria um simples “amasso” no mundo atual era uma quase orgia de entrega a bacantes pagãs enfurecidas de desejo. O mundo repressor cria ansiedade e culpa e a culpa aumenta enormemente o prazer. Eu lembro do frêmito, da verdadeira convulsão que cada passo no namoro causava e das memórias que seriam revisitadas a posteriori. Eu arfava e tremia, buscava e extasiava, lograva e bramia. Quem lê imagina um fauno selvagem pelo bosque em meio a festim de infração do sexto mandamento. Menos, caro leitor e querida leitora, muito menos: eu pensava agora no primeiro beijo. Será que um jovem do mundo líquido tem essa ansiedade acompanhada da conquista vitoriosa? Em mundo de corpos fáceis e vida marital precoce há desejos não saciados e prazeres profundos? O jovem Salomão pós-moderno seria o entediado habitante de um palácio com mil esposas/concubinas à disposição e, exatamente assim, afundado em erotismo blasé? Se tivesse sido jovem hoje teria Salomão escrito primeiro o Eclesiastes pessimista do que o Cântico dos Cânticos erotizado? 

A pornografia escassa da minha geração foi multiplicada ao toque de um botão. A abundância infinita aumenta ou diminui o prazer? Ter passado fome torna as oportunidades de refeição mais intensas? O excesso esvazia o prazer? Complicado saber onde estamos reavaliando nossa vida e em qual momento estou me projetando no outro.  

Ao final, a minha geração que escalou a montanha do prazer com sacrifício, sem guias e com pouquíssimo material, encontra no topo todos os jovens que chegaram lá no helicóptero da modernidade. Depois de um tempo, o tédio é o legado de todos. Será que eu os invejo porque eles descobrem sem sacrifício o que nós necessitamos de décadas: que no fim dá tudo no mesmo? É preciso ter esperança.
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* É professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), na área de História da América. Escritor.
Fonte: https://cultura.estadao.com.br/noticias/geral,o-tempo-e-o-sexo,70002541167
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