Leandro Karnal*
Sou fruto de um azar geracional, cercado de tabus, inundado pelo moralismo religioso
Quando eu era jovem, ser apresentado aos pais da namorada era um
momento decisivo e desafiador. A data era marcada, chegávamos ansiosos à
soleira da casa e o contato era de extrema formalidade. Namoros tinham
horários e dias marcados. Os dias eram outros e a sociabilidade mudou
muito. Havia barreiras, constrangimentos, beijos roubados, etapas e
desejos contidos. Namorar implicava técnica de sítio a uma cidade
medieval: era preciso cercar e ter paciência.
“Mudam-se
os tempos e mudam-se as vontades.” Todos os meus sobrinhos chamam de
sogra e sogro os pais da namorada que conheceram há dias. É prática
corrente dos jovens enamorados de agora a coabitação marital consentida e
pública desde o primeiro instante. Completam-se três semanas de namoro e
o jovem já anuncia à família de origem que terá de passar o Natal na
outra casa.
Essa era, há 30 anos, uma negociação após o casamento na igreja.
Uma amiga confessou-me o constrangimento de encontrar uma menina
desconhecida em trajes menores na sua cozinha em plena e íntima manhã de
domingo. A apresentação da candidata a nora é feita ali na cozinha.
“Fazer o quê? Melhor que se encontrem aqui em casa do que na rua que é
mais perigoso”, justificam os resignados candidatos a sogros.
Do ponto de vista da
psique humana, nossa raiva com esses atos nasce, em parte, da irritação
que tivemos em ter tantos prazeres negados em nossa época e que agora
são tão fáceis para a nova geração. Travestimos de moralidades e
discursos elaborados o que seria apenas nossa inveja de não poder ter
esses abundantes “test-drives” antes do casamento. Vivendo as
responsabilidades de famílias atuais com todo seu corolário de
obrigações, olhamos jovens vivendo apenas a parte boa da vida a dois.
Não pude ter a alegria que eles possuem hoje e eles não vivem o peso que
experimento agora... Eu sei, temos raiva, e uma maneira boa de
disfarçar é apelar ao jargão que os “jovens não querem mais nada com
nada”. Talvez sejamos nós os adultos de meia-idade que estejamos
exaustos de viver o “tudo com tudo”. Nosso peso se ressente com a leveza
alheia.
As crianças não sofrem mais castigos físicos e podem emitir
livres e desabridas opiniões. Fedelhos recém-saídos dos cueiros
determinam o cardápio de casa e eu tinha de deglutir fígado toda semana?
Alunos vão para a escola e imaginam que o professor deva tornar a aula
lúdica e atraente, ou seja, nada do terror pedagógico que vivemos com
autoridades que localizavam sempre o erro em nós. Os livros têm mais
ilustrações, os professores sorriem, a sala é mais leve e as provas,
menos terríveis hoje. Mesmo assim, eles, sem perspectiva histórica,
reclamam da dureza da escola!
Adolescentes e jovens derrubaram as bastilhas sexuais que nos
aprisionavam e foram morar na Versalhes erótica do sexo sem contas a
pagar e com corpos perfeitos? Ingressaram no campo da Revolução Sexual
sem um Antigo Regime opressivo e moralista? Que raiva! Que injustiça!
Que inveja...
A vida não é justa. Por que sou uma pessoa madura no momento da
liberdade de jovens que demandam tudo e fui adolescente em um mundo
dominado pelo poder de pais e professores? Jovem durante o domínio da
gerontocracia e maduro na efebocracia? Que triste.
Tenho uma dúvida que nunca será sanada. Talvez seja uma última
boia antes de reconhecer que sou fruto de um azar geracional apenas.
Cercado de tabus e autoridades, inundado pelo moralismo religioso,
arfando de culpa e de desejo, cada passo da descoberta sexual era um
estupor enorme. O que seria um simples “amasso” no mundo atual era uma
quase orgia de entrega a bacantes pagãs enfurecidas de desejo. O mundo
repressor cria ansiedade e culpa e a culpa aumenta enormemente o prazer.
Eu lembro do frêmito, da verdadeira convulsão que cada passo no namoro
causava e das memórias que seriam revisitadas a posteriori. Eu arfava e
tremia, buscava e extasiava, lograva e bramia. Quem lê imagina um fauno
selvagem pelo bosque em meio a festim de infração do sexto mandamento.
Menos, caro leitor e querida leitora, muito menos: eu pensava agora no
primeiro beijo. Será que um jovem do mundo líquido tem essa ansiedade
acompanhada da conquista vitoriosa? Em mundo de corpos fáceis e vida
marital precoce há desejos não saciados e prazeres profundos? O jovem
Salomão pós-moderno seria o entediado habitante de um palácio com mil
esposas/concubinas à disposição e, exatamente assim, afundado em
erotismo blasé? Se tivesse sido jovem hoje teria Salomão escrito
primeiro o Eclesiastes pessimista do que o Cântico dos Cânticos
erotizado?
A pornografia escassa da minha geração foi multiplicada ao toque
de um botão. A abundância infinita aumenta ou diminui o prazer? Ter
passado fome torna as oportunidades de refeição mais intensas? O excesso
esvazia o prazer? Complicado saber onde estamos reavaliando nossa vida e
em qual momento estou me projetando no outro.
Ao final, a minha geração que escalou a montanha do prazer com
sacrifício, sem guias e com pouquíssimo material, encontra no topo todos
os jovens que chegaram lá no helicóptero da modernidade. Depois de um
tempo, o tédio é o legado de todos. Será que eu os invejo porque eles
descobrem sem sacrifício o que nós necessitamos de décadas: que no fim
dá tudo no mesmo? É preciso ter esperança.
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* É professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), na área de História da América. Escritor.
Fonte: https://cultura.estadao.com.br/noticias/geral,o-tempo-e-o-sexo,70002541167
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