segunda-feira, 29 de outubro de 2018

Cultura inútil: Pessoas de bem


Mouzar Benedito*
  
 Capa de 1926 do periódico mensal The Good Citizen, forte apoiador da Ku Klux Klan nos EUA.

Assim disse o Barão de Itararé: “As pessoas de bem costumam falar mal dos vagabundos. Mas não é por mal. É por inveja”

Pessoas boas existem, e são muitas. Mas tem um tipo que bate no peito se autoproclamando “pessoa de bem”, só aceitando como “pessoa de bem” quem se comporta igual a ela.
 
Conheci e conheço muitas pessoas assim. São muito interessantes. Vou me lembrar de algumas dessas pessoas que se julgam detentoras exclusivas do rótulo “de bem”.

Um casal composto por pessoas de bem, de classe média alta, tinha um filho de 17 anos e uma filha de 16, quando a mulher engravidou de novo. Nasceu, então, um filho temporão, que não teria um irmãozinho para brincar e compartilhar um monte de coisas. Vizinho não é a mesma coisa. Precisava de uma criança dentro de casa.

Esse casal resolveu, então fazer uma boa ação, típica de pessoas de bem. Adotou um irmãozinho para o filhote. Negrinho, o filho adotivo. Ele seria tratado, dizia o casal, como um filho legítimo, sem diferenciar do branquinho.

Umas amigas minhas, que eram também amigas da filha desse casal, quando ela já tinha vinte e tantos anos, ficaram hospedadas na casa dela. Foram muito bem tratadas. Mas começaram a se sentir incomodadas com uma coisa e, um dia, sutilmente, conversaram com a amiga sobre os irmãozinhos dela. O branquinho e o pretinho.

“Por que o branquinho estuda num dos melhores colégios privados e o pretinho numa escola pública?”, perguntaram. “O pretinho não leva jeito para estudar”, foi a resposta. Minhas amigas ficaram em dúvida: o pretinho gostava de livros, lia os livros que elas deram às crianças, sabia fazer contas, e o branquinho não estava nem aí livros e para contas. E nas conversas o pretinho se revelava muito mais inteligente.

Outra pergunta: “Se os dois são tratados de forma igual, por que a sua mãe, quando precisa mandar um filho fazer alguma coisa, como levar algo a algum lugar, carregar compras do supermercado, só manda o pretinho?”. “Ele gosta”, foi o que minhas amigas ficaram sabendo.

E nas brincadeiras, repararam, o pretinho tinha que fazer tudo o que o branquinho mandava. Essas minhas amigas pensaram coisas que não são aceitáveis por essas pessoas de bem: o pretinho foi adotado para ser um brinquedo do branquinho.

Em alguns lugares da Amazônia, havia casais de bem como esse (não sei se ainda há). Não adotavam um pretinho, mas uma indiazinha, que seria criada como filha legítima. Mas nem mandavam para a escola. Era uma escravinha, que fazia todos os serviços domésticos sem ganhar nada, a não ser umas roupas baratas ou de segunda mão. Um amigo da região, muito crítico, me disse que isso era comum lá, e que essas meninas, adotadas como se os casais de bem estivessem fazendo um favor a elas e a suas famílias, eram chamadas de bugrinhas.

Esse tipo de gente de bem faz essas coisas. Lembro-me da história de Gregório Bezerra, levado de sua casa na roça para Recife, por um casal que dizia que ele seria tratado como um filho, colocado na escola (o que era um sonho dele e da mãe), mas não fizeram nada disso. Usavam o menino como escravo. Ele fazia uns trabalhinhos por fora, ganhava algum dinheiro e ia guardando numa caixa que um dia foi descoberta pela família “generosa”. Tomaram o dinheiro dele. Foi quando achou que era melhor se tornar menino de rua.

Comecei com essas historinhas porque acho que elas são muito simbólicas. Mas pessoas de bem fazem muitas outras coisas “de bem”. Exemplos?
  • Quando lancei um livro sobre a ditadura, numa palestra no interior paulista, dois jovens me criticaram por eu ser contra a tortura. Disseram que eram filhos de militares que praticavam a tortura, “mas só contra pessoas suspeitas”. Suspeitas! Contei a eles que bastava um desafeto de qualquer um resolver se vingar desse qualquer um por qualquer motivo, e o denunciasse ao Dops como “comunista”, que ele passava a ser suspeito e, portanto, “merecedor” de tortura.
Mas eles pareceram não terem se convencido disso. Continuaram achando que pessoas de bem não eram torturadas. Seus pais, pessoas de bem, só torturaram suspeitos de não serem pessoas de bem. Alguma semelhança com muitas pessoas de bem dos tempos atuais?
  • Outro exemplo: pessoas de bem têm fé, acreditam em Deus. E odeiam quem não tem a mesma fé. Pessoas de bem, às vezes, atacam templos e outros locais onde pessoas de religião diferente delas praticam suas cerimônias religiosas. Destroem tudo, espancam os infiéis…
  • Umas pessoas de bem são a favor de armar todas as pessoas de bem para, se preciso, matar pessoas que não são de bem. Embora tementes a Deus e crentes na existência de céu e inferno, e de respeitar os Dez Mandamentos que mandam não matar, acham que podem dar uma escorregadinha matando assim mesmo, que Deus vai entender.
  • Tem pessoas de bem que gastam alguns milhares de reais num jantar e acham um absurdo pagar um salário mínimo por mês para uma empregada doméstica que trabalha dia e noite para elas. E algumas ainda querem registro profissional!
  • Tem pessoas de bem que acham justo sonegar impostos, mas só elas: outros sonegadores são ladrões.
  • Tem pessoas de bem que acham que o Estado não pode ficar gastando dinheiro para curar pobres que são “perdedores”, não economizaram para se tratar de doenças. Aliás, neste item acho curiosas as pessoas de bem dos Estados Unidos. Lá, ficam horrorizadas com a ideia de um serviço de saúde gratuito para a população. Bons cristãos, como se dizem, acham que quem não tem dinheiro para pagar um plano de saúde tem mesmo que não ter atendimento médico. Que morram! Como sou ignorante: sempre achei que cristão tinha uma visão bem diferente disso.
  • Há pessoas de bem que acham um absurdo o governo gastar alguns bilhões de reais por ano (“com dinheiro nosso, nós que pagamos impostos…”) com bolsas para alimentar muitos milhões de famílias, mas acham normal e correto gastar o mesmo tanto para supostamente socorrer um usineiro ou banqueiro que “precisa” dessa grana para dar umas centenas de empregos.
  • Há pessoas de bem que herdaram fazendas. Não fizeram nada de mal. Seus pais sim, grilaram terras, expulsaram e até mataram índios e posseiros que viviam nessas terras e se apropriaram delas. E os herdeiros, pessoas de bem, acham um absurdo sem-terra ocuparem parte dessas fazendas que não são usadas para nada, a não ser para especulação imobiliária. É injusto – acham – pobres ocuparem terras que seus pais conquistaram com “muito trabalho honesto”.
  • Há pessoas de bem que são filhas ou netas de imigrantes que vieram para o Brasil fugindo da fome ou de guerras, e odeiam imigrantes que chegam aqui fugindo da fome ou de guerras. Dizem que esses imigrantes têm que ser expulsos daqui.
  • Pessoas de bem como as citadas não acreditam em mudanças climáticas causadas por ações humanas, como o desmatamento, a poluição das águas e do ar… Se forem acreditar nisso, terão que parar de desmatar, de poluir as águas e o ar derramando neles esgotos e gases tóxicos, não é? É preciso fazer essas coisas para lucrar mais, e impedir que façam seria um atraso, um desrespeito à livre iniciativa, não é?
  • Pessoas de bem, já vi por aí, acham que quem está preso é porque merece e por isso deve ser muito maltratado. Os presídios têm que ser ruins mesmo. Afinal, quem está lá são traficantes, assassinos ou ladrões. Mas de vez em quando um filho de uma pessoa de bem é traficante de drogas e aí os pais, essas pessoas de bem, fazem de tudo para eles não serem presos. Outros matam, e aí tentam provar (e muitas vezes conseguem) que a vítima é que teve culpa. Para casos de roubos, mesma coisa.
  • Um sujeito que frequentou festas em casas de parentes meus, por ser sogro de alguém, já chegava essas festas propagandeando sua honradez e, sem ninguém perguntar, discursava defendendo a repressão a todos os movimentos sociais e sindicais, intercalando tudo com frases de cunho nazista. Era empresário. Eu estava parando de ir a essas reuniões por causa dele, até que quase ninguém mais o suportava e ele parou de ser convidado. Fora umas coisas que não vou me dar ao trabalho de contar aqui, ele revelou – contrariado – que nasceu no Nordeste, mas complementou: “Se for pra eu nascer nordestino de novo, na próxima encarnação, prefiro nascer cachorro”.
Bom… As lembranças podiam ir longe.
  • Nem vou perguntar o que acontece quando uma pessoa de bem, ou um filho dela, dirige bêbado em alta velocidade em área urbana, provoca acidente e mata…
  • Nem o que essas pessoas fazem quando um fiscal ou guarda tenta multá-las por infligirem leis.
  • Nem o que fazem para ganhar uma concorrência pública contra alguém mais qualificado.
  • Nem o que gastam para colocar numa faculdade um filho que não passa no vestibular.
Vou parar. Termino lembrando que há décadas era uma “vergonha para a família” ter um filho homossexual. Famílias “de bem”, e bem relacionadas às vezes arrumavam um jeito de se livrar do mal-estar causado pela presença de um filho homossexual: arrumavam emprego para ele numa embaixada brasileira qualquer, longe do Brasil.

Por isso, houve um tempo em que as embaixadas brasileiras tinham fama de ser um “antro” de homossexuais. E afora eles, de corruptos. Para qualquer coisa que se precisasse numa embaixada brasileira, era preciso dar propina.

Em 1964, depois do golpe, o marechal Castello Branco assumiu o poder e, entre outras coisas, anunciou uma medida para “moralizar” as embaixadas. Para mostrar que faria mesmo isso, determinou a demissão de um homossexual e um corrupto que trabalhavam na embaixada brasileira em Paris. E eles teriam que ser repatriados para o Brasil.

A imprensa devia registrar o fato histórico e foi avisada. Quando o avião que trazia os dois repatriados aterrissou no Rio de Janeiro, tinha um monte de jornalistas e repórteres fotográficos no aeroporto. Ficou todo mundo na expectativa do desembarque.

Quando os dois funcionários da embaixada apareceram no portão e viram que seriam fotografados e teriam sua repatriação amplamente noticiada pela imprensa, com os devidos motivos, um deles saiu pulando e gritando: “Eu sou o corrupto! Eu sou o corrupto!”.

***
Mouzar Benedito, jornalista, nasceu em Nova Resende (MG) em 1946, o quinto entre dez filhos de um barbeiro. Trabalhou em vários jornais alternativos (Versus, Pasquim, Em Tempo, Movimento, Jornal dos Bairros – MG, Brasil Mulher). Estudou Geografia na USP e Jornalismo na Cásper Líbero, em São Paulo. É autor de muitos livros, dentre os quais, publicados pela Boitempo, Ousar Lutar (2000), em co-autoria com José Roberto Rezende, Pequena enciclopédia sanitária (1996), Meneghetti – O gato dos telhados (2010, Coleção Pauliceia) e Chegou a tua vez, moleque! (2017, e-book). Colabora com o Blog da Boitempo quinzenalmente, às terças. 
Fonte:  https://blogdaboitempo.com.br/2018/10/29/cultura-inutil-pessoas-de-bem/

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