quinta-feira, 25 de outubro de 2018

Papo com Jean Baudrillard

Juremir Machado da Silva* 

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Cito muito o filósofo francês Jean Baudrillard. Sou até criticado por isso. Para mim, ele foi um gênio. Famoso, adulado, irônico, irreverente, cultuado nos Estados Unidos, escrevia maravilhosamente bem e espalhava ideias originais. Tive a honra de ser amigo dele. Nem acreditava. Ele foi assistir à minha defesa de tese de doutorado na Sorbonne. Tomei um susto. Bebi bons vinhos brancos com ele. Um dia, Jean teve uma conversa séria comigo. Quase paternal:

– Nunca seja frontal, Jérémie. Seja sempre transversal.

Já contei isso. Ele me alertava para não bater de frente. Salvo em caso de extrema necessidade. Os conselhos que me deu foram simples:

– Negociar, negociar, negociar. Ser flexível sempre que puder.

– Como saber quando não flexibilizar?

– Simples. Quando a consciência mandar.

No dia a dia, não me gabo, sou o que se costuma chamar de conciliador. Tenho fama de radical e até de comunista. Sou anarquista de coração, socialdemocrata por pragmatismo e liberal por admiração a John Stuart Mill. Sou capaz de escrever textos duros. E quase incapaz de dizer indelicadezas face a face. Uma amiga muito suave me disse:

– Tu és uma lady.

De vez em quando, claro, brigo e bato boca. Custa para passar. Fico de ressaca. Vivo as minhas dúvidas e contradições como um homem do meu tempo pisando em grossas nuvens em busca de potes de doce de leite num arco-íris que se afasta quando me aproximo. Dizem que sou ideológico. Mas alguns dos meus melhores amigos são de direita, entre eles o escritor francês Michel Houellebecq ou o filósofo Gilles Lipovetsky, um liberal de carteirinha. Meu mestre Michel Maffesoli é anarquista. Jean Baudrillard era um niilista. Nunca esquecerei da nossa última conversa num bistrô em Montparnasse. Ele ironizou:

– Para viver é preciso morrer muitas vezes.

– Morrer dói – comentei.

– Viver artificialmente dói mais ainda.

Eu me encolhi. Ele riu com seu ar de coruja. Usava óculos grandes. Bebeu um gole sem pressa. Contemplou a rua. Recitou um verso de Hölderlin que adorava repetir: “Aonde mora o perigo, cresce também o que salva”. Jean era um cara firme, consciente do seu poder intelectual, que raramente precisava fazer concessões. Mesmo assim, contrariando expectativas e preconceitos, tinha uma suavidade na negociação. Parecia não querer se impor salvo pela beleza do argumento. Era tão sofisticado que muitas vezes não era entendido.

Uma das teses originais era de que as coisas não desaparecem por falta, mas por saturação. Exemplo: quando todos se tornam autores, não há mais autor. A distinção não faria mais sentido. A ironia era a sua principal arma. Quando todos se tornam autoritários, não há mais autoritarismo. Essa poderia ser a utopia de um tempo sem utopias. Penso em Jean Baudrillard quando o sol se põe. Penso nele e na sua lúcida obstinação. Poucos revelaram tão bem quanto ele a estrutura da sociedade de consumo, último bastião da escolha individual no sistema dos objetos. Jean Baudrillard foi muito amado e odiado. Era livre. Eu penso nele quando tempo se fecha.
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*  Escritor. Graduou-se em História (bacharelado e licenciatura) e em Jornalismo pela PUCRS, onde também fez Especialização em Estilos Jornalísticos. Passou pela Faculdade de Direito da UFRGS, onde também chegou a cursar os créditos do mestrado em Antropologia. Obteve o Diploma de Estudos Aprofundados e o Doutorado em Sociologia na Universidade Paris V, Sorbonne, onde também fez pós-doutorado. Como jornalista, foi correspondente internacional de Zero Hora em Paris, trabalhou na IstoÉ e colaborou com a Folha de S. Paulo. Atua como colunista do Correio do Povo desde o ano 2000. Tem 27 livros individuais publicados.
Fonte: http://www.correiodopovo.com.br/blogs/juremirmachado/2018/10/11281/papo-com-jean-baudrillard/ 
Imagem da Internet: Jean Baudrillard

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