Juremir Machado da Silva*
Errar é humano. Essa frase pode levar a erro. Tomar a palavra
errar somente como equivocar-se. Podemos pensar em errante, aquele que
anda por aí. O ser humano é errante. Nômade. Agostinho nasceu em
Tagaste, no território da atual Argélia, em 354 d.C. Na juventude, foi
errante. Teve amores, aventuras sexuais, mulher, em concubinato, e
filho. Foi professor de retórica na cidade natal, em Cartago e em Roma,
onde criou sua escola. Separou-se, noivou com uma menina de onze anos,
juntou-se com outra mulher, não se casou com a noivinha e, depois de
passar por uma súbita conversão, decidiu afastar-se dos prazeres da
carne. Perdeu a mãe e o filho. Arrasado, vendeu o muito que possuía,
distribuiu o dinheiro aos pobres e mudou.
Parou de errar? Passou a pensar sobre os erros da humanidade. O
historiador irlandês Peter Brown publicou em 1967 uma monumental
biografia de Agostinho, sobre quem não faltam textos. O melhor mesmo é
ler as suas “Confissões”. Ele passou muitos anos em Hipona, hoje a
cidade argelina de Annaba, onde morreu em 430 d.C., aos 76 anos de
idade. Eram tempos duros sob a égide do Império Romano. Os chamados
bárbaros arrombavam as portas. Deixemos de errar. O que Agostinho
pensava sobre a felicidade? Muitas coisas. A principal: a felicidade
está em Deus. E Deus está no fim de toda errância. O problema, pois
problema há, é que corpo e alma duelam. A alma quer se elevar. O corpo
quer se abaixar. Agostinho escreveu muito.
Parece haver acordo que não se pode passar ao largo do seu “Diálogo
sobra a felicidade” (“De beata vita”). Trata-se de uma conversa tida,
entre os dias 13 e 15 de novembro de 386, num sítio ao norte Itália, em
Cassiago, ou precisamente Cassago di Brianzo, a 33 km de Milão, onde
Agostinho descansava e refletia graças a um amigo. No dia do seu
aniversário de 32 anos, animado, ele se propôs a sacudir os presentes
com duas ótimas perguntas: o que é a felicidade? Como o homem pode ser
feliz? Pode haver melhor maneira de acabar com o tédio e eletrizar um
ambiente festivo?
O diálogo é dedicado a Teodoro, mestre de Agostinho. Quem anda a esmo
pode errar ou perder-se como um marinheiro extraviado. A filosofia,
segundo Agostinho, pode acolher três espécies de marinheiros. Ele
gostava dessa imagem. Os primeiros são aqueles que “quando a idade da
razão se assenhoreia deles, com um pequeno esforço e a pulso dos remos,
se afastam da proximidade e se recolhem à tranquilidade donde levantam
um sinal muito luminoso de alguma sua obra para os outros cidadãos serem
advertidos e a ela se acolherem”. Há também os “desiludidos pelo
aspecto muito enganador do mar”, expatriados que só “uma tempestade
muito feroz e um vento que sopre em direção contrária” pode trazer de
volta. Por fim, os que “no limiar da sua adolescência, ou vagueando pelo
mar há já mesmo muito tempo, contemplam, apesar de tudo, alguns sinais
que os levam a recordar, ainda no meio das ondas, a sua dulcíssima
pátria”. O perigo é o rochedo da vaidade.
Diálogo sobre a felicidade – A conversa desse
aniversário singular teve os seguintes convivas como em qualquer boa
festa de família: “Em primeiro lugar, a nossa mãe, a quem, em virtude do
seu mérito, devo tudo o que sou; em seguida, o meu irmão Navígio;
Trigécio e Licêncio, meus alunos e concidadãos. Não quis que faltassem
os meus primos direitos Lartidiano e Rústico porque, apesar de não terem
passado por nenhuma escola de gramática, considerei que o seu bom senso
seria necessário para o tema que ia levantar. Também estava conosco o
meu filho Adeodato”. Time completo.
Depois de uma introdução, o aniversariante pergunta: “Todos queremos
ser felizes? Produz-se um alarido. Ele provoca mais: “Parece-vos ser
feliz quem não tem o que quer?” Diante da negativa unânime, nova
provocação: “Será então feliz quem tem o que quer?” A mãe surpreende:
“Se quer bens e os tem, é feliz; se, por outro lado, quer coisas más,
ainda que as tenha é infeliz”. Agostinho aproveita para citar Cícero:
«Eis que aqueles que precisamente não são filósofos, mas que, no
entanto, se inclinam para as discussões, afirmam que quem vive conforme
quer é feliz. Mas isto é seguramente falso; querer o que não convém,
isso mesmo é que é a maior infelicidade. Quem não alcança o que quer não
é tão infeliz como quem quer alcançar o que não convém”. A mãe aplaude.
O filho exulta: “Ela aprovou estas palavras com tais exclamações que,
esquecidos inteiramente do seu sexo, pensamos que algum grande homem se
encontrava sentado conosco”.
A conversa avança. Sai a primeira conclusão: “Ninguém pode ser feliz
se não tiver o que quer, mas também não pode ser feliz quem tem tudo o
que quer”. Não é uma boa lição para estes tempos consumistas e de
pessoas caprichosas? Se quem não é feliz vive infeliz, “o que o homem
deve adquirir para ser feliz?” Os convidados poderiam ter gritado: “Boa
pergunta”. Se ter tudo o que se quer não é garantia de felicidade e não
ter o que se quer é certeza de infelicidade, o que fazer? Fugir do que é
enganador por ser transitório. Quem nunca ouviu isso: O fugaz não traz
felicidade? O que traz? O permanente. O mestre questiona: “E Deus?
Parece-vos que Ele é eterno e sempre permanente?” Todos concordam.
Conclusão: “Quem possui Deus é feliz”. Já se poderia passar aos
docinhos? Só depois de responder: quem possuiu Deus? Os convivas
arriscam: quem vive bem; quem faz o que Deus quer; quem não tem o
espírito impuro. Não era fácil cair na festa assim.
Um “acadêmico” é feliz? O que ele faz? Procura a verdade. Pode ser
feliz quem ainda não encontrou o que procura? Se ainda não encontrou a
verdade, é sábio? Todo acadêmico é infeliz? No segundo dia, a conversa
ficou mais densa. O mediador cutucou: “’Todo aquele que vive bem faz o
que Deus quer’ e ‘quem faz o que Deus quer vive bem’, viver bem e fazer o
que agrada a Deus não são coisas diferentes”. Alguém pensava diferente?
Não. A questão passou a ser outra: “ninguém pode chegar a Deus sem o
procurar”. Quem ainda está procurando pode ser feliz? Conclusão do
relator: “Quem já encontrou Deus e tem-no favorável, é feliz; quem
procura Deus, tem-no favorável, mas ainda não é feliz”. Logo, “quem se
afasta de Deus, por vícios e pecados, não só não é feliz como não vive
com o favor de Deus”.
Todo indigente é infeliz? Todo infeliz é indigente? A resposta
ficaria para o terceiro dia, quando se discutiu se um rico pode ser
infeliz pelo medo de perder tudo e se concluiu que a maior indigência é a
falta de sabedoria. Ficou assentado que a infelicidade está na
ignorância, na estultícia. De quê? De muita coisa, inclusive das
virtudes da moderação e da temperança. Se a ignorância é uma indigência,
a sabedoria é a plenitude. Quando se está pleno, nada falta e nada
excede. Fica provado, segundo Agostinho, que “ser feliz consiste em não
ser indigente, ou seja, em ser sábio”. Simples assim. A sabedoria é a
“moderação da alma”, dos apetites, dos desejos, “a fim de que nada se
derrame, nem de mais, nem de menos”.
Todo dia o navegante da vida enfrenta os seus rochedos dissimulados e
limosos: “A alma derrama-se na luxúria, nas ambições e no orgulho e
outros excessos deste gênero, com que as almas dos desregrados e
infelizes julgam obter prazeres e poderios. E, por outro lado, ela
reduz-se com a mesquinhez, os medos, a tristeza, a cobiça e outras,
sejam elas quais forem, com as quais os homens infelizes admitem viver
na infelicidade”.
Se a felicidade está na sabedoria, o que é a sabedoria senão a
verdade? Ora, a verdade plena é Deus. Portanto, “a vida feliz consiste
em conhecer com perfeita piedade quem nos guia para a verdade”. Mesmo
quem não leu Agostinho por não ser acadêmico nem cronista da felicidade
fica com a sensação de que já o conhecia. As ideias dos sábios antigos
passaram de geração em geração até nós. Ou eles pensaram em grego e em
latim o que os nossos tataravôs pensavam com suas palavras comuns e seus
ditados:
– Quem tudo quer, nada tem. Quem tudo tem, não sabe o que deve querer.
Os convidados de Agostinho voltaram para casa felizes.
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* Jornalista. Escritor. Colunista do Correio do Povo. Prof. Universitário. Sociólogo.
Fonte: http://www.correiodopovo.com.br/blogs/juremirmachado/2018/11/11349/agostinho-cre-e-seras-feliz/
Imagem da Internet 17/11/2018
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