Pedro Dias de Almeida*
A Scene in Shantytown, New York. a prikmeira fotografia a ser publicada num jornal, o Daily Graphic, em 1880
Às vezes, a tecnologia promete-nos tudo: verdade, justiça, democracia. Que pena haver seres humanos a intrometerem-se sempre na História… Reflexões em tempos de fake news
No
dia 4 de março de 1880 publicava-se, pela primeira vez, uma fotografia
num jornal. Antes, os leitores da imprensa já tinham acesso a gravuras e
ilustrações obtidas a partir de fotografias, mas naquele dia, nas
páginas do Daily Graphic, de Nova Iorque, era todo um mundo novo que se anunciava. A Scene in Shantytown, New York
transportava os leitores para um lugar de Nova Iorque com grande
realismo. O jornalismo não seria o mesmo depois desse dia. Porquê? Os
leitores teriam acesso à realidade, a olhar para o mundo tal como ele é,
escapando muito mais facilmente ao ardiloso e movediço mundo dos textos
e das palavras. Durante muitas décadas acreditou-se mesmo que essa era a
conquista prática das técnicas do fotojornalismo: a sonhada
objetividade, o acesso a imagens do mundo que não nos podiam enganar.
Como poderiam? A realidade estaria ali, à frente dos nossos olhos. A
fotografia – que nasceu num diálogo e combate permanente com o
‘realismo’ da pintura, fosse de paisagens ou retratos – era uma garantia
de verdade. De justiça, até. Mas – usando uma expressão muito dos
nossos dias –, só que não. Precisamente por essa promessa de
objetividade, a manipulação até podia ser muito mais insidiosa. E, na
verdade, fácil: começa com o que se quer fotografar/mostrar ou não, os
enquadramentos, as truncagens, os contextos (uma legenda pode mudar
radicalmente o sentido de uma fotografia). Exemplos não faltam ao longo
de uma história com mais de um século. E, agora, na era da fotografia
digital nem os mais ingénuos põem as mãos no fogo pela realidade
indesmentível de uma fotografia.
A
26 de Setembro de 2006 o Facebook abria-se a todos os que tivessem mais
de 13 anos e uma conta de email. Em julho de 2010 já tinha 500 milhões
de utilizadores em todo o mundo. Nesse mesmo mês o filósofo alemão
Jürgen Habermas tinha 81 anos de vida. Uma boa parte deles a reflectir
sobre (e a sonhar com) um “espaço público” e uma “esfera pública” capaz
de, através da racionalidade, da retórica e da argumentação criar um
mundo mais justo, mais livre, mais democrático. (Lembro-me bem de, no
início dos anos 90, ter feito um trabalho universitário com o sugestivo
título Utopia e Comunicação em Jürgen Habermas). As redes
sociais, e sobretudo a própria internet, pareciam um passo de gigante,
um instrumento perfeito – e, lá está, quase utópico – para dar corpo a
essa “esfera pública” tantas vezes, antes, presa em contextos históricos
que excluíam da discussão uma boa parte da população. Agora, todos
seríamos capazes de discutir e esgrimir argumentos, resultando numa
sociedade mais madura e mais justa. Consensos e compromissos. Se as
fotografias na imprensa prometiam verdade, a internet e as redes sociais
prometiam uma democracia aberta, madura, diálogo, inclusão. Mas – mais
uma vez… –, só que não. A sociedade, quando está online, divide-se em
bolhas de acordo com os que pensam mais ou menos da mesma maneira, e
quando há comunicação entre bolhas resvala-se quase sempre para o
insulto, a agressividade, a humilhação, um extremar de posições, uma
luta retórica sem regras nem grande racionalidade. Mais grave: a aldeia
global da internet permitiu que o que antes eram rumores de aldeia, de
boca em boca nas ruas e nos cafés, passassem a ser rumores e mentiras de
alcance global, rápido, poderoso (e houve forças que não demoraram
muito a perceber isso, criando uma verdadeira teia e indústria de nada
inocentes fake news, falsidades que nem merecem ser chamadas de "notícias").
Hoje,
já não associamos imediatamente uma fotografia a uma realidade
indesmentível. Mas há muito quem associe tudo o que lê “na internet”,
por mais disparatado que seja, à revelação de uma verdade escondida. Há
um caminho a fazer.
O
que está errado, afinal? A resposta mais certeira que me ocorre é:
talvez seja mesmo o ser humano, sempre capaz do melhor do pior. E se há
algo que o século XX nos ensinou é que devemos desconfiar sempre de quem
nos promete um “homem novo” (vade retro!). O ser humano... é o que é.
Voltando à fotografia, nas páginas de El Beso de Judas, Fotografía y Verdad, do catalão Joan Fontcuberta (capítulo A Tribo que Nunca Existiu):
“Burlar significa decidir pelos outros, esconder a diversidade de
opções de que se dispõe. ‘Governar significa fazer acreditar’, escreveu
Régis Debray. Fazer acreditar consiste, pois, em controlar os mecanismos
de manipulação (de criação). A consciência adulta, madura e democrática
deveria ser capaz de corresponder com o mesmo grau de dialética”. Mas
onde está essa consciência?
---------
* Jornalista.
Fonte: http://visao.sapo.pt/opiniao/higiafone-pedro-dias-almeida/2018-11-11-Pobre-Habermas
Nenhum comentário:
Postar um comentário