O desespero é um pecado. Deus disse que sua
criação era boa. A ideia que a falta de esperança seja um pecado está no
coração do hebraísmo antigo.
Tanto o judaísmo quanto o cristianismo e o islamismo carregam essa
intuição antiga de um povo de pastores como um diamante em chamas em seu
coração.
A falta de esperança como pecado é um fato bem conhecido por nós. De
certa forma, como acontece com todo pecador consciente de sua cela, o
desespero pode tornar você mais forte: a esperança pode ser uma
fraqueza, como nos ensina Pandora (ela é o pior dos males escondido por
Zeus na caixa de Pandora, para castigar a húbris humana de querer ter o
segredo do fogo).
Quando você não tem mais nenhuma esperança, você se encontra na
condição de Antígona, assim descrita pela fortuna crítica quando pensa a
“psicologia” dos heróis trágicos: a calma que nossa heroína encontra ao
final da peça homônima de Sófocles (morto em 408 a.C.), ao aceitar que
deve morrer porque descende de um útero incestuoso. Antígona era filha
de Édipo com sua mãe Jocasta.
A calma trágica pode ser uma força diante da inexorabilidade do mal no mundo.
No polo oposto, o rei Davi, nos seus belíssimos salmos, nos
ensina que, mesmo ao atravessarmos o vale das sombras, Deus estará
conosco, como nosso guia. Essa é a marca da esperança como uma das
virtudes máximas no hebraísmo antigo (outra é a humildade). O desespero
aqui peca contra a confiança no mundo.
Todo pecado descreve uma encruzilhada. Nesse caso específico, a falta
de esperança interrompe a circulação sanguínea do espírito,
coagulando-o na escuridão. Não há como viver no mundo sem esperança,
ensinam-nos nossos ancestrais hebreus.
Acaba de ser publicada no Brasil, pela editora É Realizações (que
inunda o mercado de livros no país com a beleza das letras distantes da
boçalidade contemporânea), a peça “Esse Paraíso da Tristeza”, do
brasilianista Sébastien Lapaque.
Ela é escrita a partir de trabalhos de Stefan Zweig (1881-1942) e
Georges Bernanos (1888-1948). A obra e a vida de cada um serve de
inspiração para o autor imaginar como teria sido a conversa entre os
dois gigantes em Barbacena (MG), na casa de Bernanos, em 1942. A visita a
Bernanos de fato se deu naquele ano, pouco antes de Stefan Zweig se
matar aqui no Brasil, país onde ambos viviam.
Além de elementos históricos do momento (a guerra, o nazismo, o
fascismo latente do governo Vargas), no centro do drama está a questão
da esperança. O sofrimento de ambos com o nazismo e o fascismo (Bernanos
fugira da França por se opor ao fascismo, Stefan Zweig era judeu —nada
mais é preciso ser dito sobre seu desespero naquele momento) é conhecido
pela fortuna crítica.
Bernanos é um autor a quem tenho dedicado atenção há algum tempo. O
vínculo, em sua obra, entre um olhar agudo para o mal no mundo e a
presença sobrenatural da graça como sutil detalhe em meio a esse mundo, é
encantador. Como diz o personagem Bernanos num dado momento da peça, a
fé é “como uma gota de esperança no oceano de dúvida”. Sua obra avança
entre o nada e a graça. E, por isso mesmo, segue adentro do coração do
hebraísmo antigo.
Como toda virtude, a esperança só brota na sua inteireza num terreno
que lhe é hostil. Como estamos distantes aqui do farisaísmo moral que
assola o mundo contemporâneo dos bonzinhos de coração e suas causas!
Bernanos diz na peça que escreveu seis romances para tentar mostrar aos
homens e às mulheres a presença do mal no mundo e em nós mesmos. Mas,
como em toda boa teologia, o percurso pelo mal serve, antes de tudo, ao
esclarecimento da visão da beleza e do bem que se esconde entre as
trevas da realidade.
O Dostoiévski francês, como é chamado em seu país, era um homem que
buscava a esperança como quem busca uma gota de oxigênio em meio ao
vazio de ar. E aqui reencontramos a intuição do hebraísmo antigo: a
esperança, assim como a coragem, são virtudes que se arrancam das
pedras.
O hebraísmo antigo sabia que somente os pecadores verão a Deus.
Nelson Rodrigues, que entendia profundamente da psicologia do pecador,
traduziu essa máxima para “só os neuróticos verão a Deus”.
Se a humildade é a melhor resistência à estupidez e a coragem o melhor antídoto à mentira (temas também de Bernanos), a esperança é um trunfo contra o medo que nos assola todo dia, mesmo aqueles que se dizem felizes, belos e bons.
Se a humildade é a melhor resistência à estupidez e a coragem o melhor antídoto à mentira (temas também de Bernanos), a esperança é um trunfo contra o medo que nos assola todo dia, mesmo aqueles que se dizem felizes, belos e bons.
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