segunda-feira, 19 de novembro de 2018

O pecado do desespero

Luiz Felipe Pondé*
Ilustração

Não há como viver sem esperança, ensinam os nossos ancestrais hebreus

O desespero é um pecado. Deus disse que sua criação era boa. A ideia que a falta de esperança seja um pecado está no coração do hebraísmo antigo. 

Tanto o judaísmo quanto o cristianismo e o islamismo carregam essa intuição antiga de um povo de pastores como um diamante em chamas em seu coração.

A falta de esperança como pecado é um fato bem conhecido por nós. De certa forma, como acontece com todo pecador consciente de sua cela, o desespero pode tornar você mais forte: a esperança pode ser uma fraqueza, como nos ensina Pandora (ela é o pior dos males escondido por Zeus na caixa de Pandora, para castigar a húbris humana de querer ter o segredo do fogo).

Quando você não tem mais nenhuma esperança, você se encontra na condição de Antígona, assim descrita pela fortuna crítica quando pensa a “psicologia” dos heróis trágicos: a calma que nossa heroína encontra ao final da peça homônima de Sófocles (morto em 408 a.C.), ao aceitar que deve morrer porque descende de um útero incestuoso. Antígona era filha de Édipo com sua mãe Jocasta. 
A calma trágica pode ser uma força diante da inexorabilidade do mal no mundo.

No polo oposto, o rei Davi, nos seus belíssimos salmos, nos ensina que, mesmo ao atravessarmos o vale das sombras, Deus estará conosco, como nosso guia. Essa é a marca da esperança como uma das virtudes máximas no hebraísmo antigo (outra é a humildade). O desespero aqui peca contra a confiança no mundo. 

Todo pecado descreve uma encruzilhada. Nesse caso específico, a falta de esperança interrompe a circulação sanguínea do espírito, coagulando-o na escuridão. Não há como viver no mundo sem esperança, ensinam-nos nossos ancestrais hebreus.

Acaba de ser publicada no Brasil, pela editora É Realizações (que inunda o mercado de livros no país com a beleza das letras distantes da boçalidade contemporânea), a peça “Esse Paraíso da Tristeza”, do brasilianista Sébastien Lapaque. 

Ela é escrita a partir de trabalhos de Stefan Zweig (1881-1942) e Georges Bernanos (1888-1948). A obra e a vida de cada um serve de inspiração para o autor imaginar como teria sido a conversa entre os dois gigantes em Barbacena (MG), na casa de Bernanos, em 1942. A visita a Bernanos de fato se deu naquele ano, pouco antes de Stefan Zweig se matar aqui no Brasil, país onde ambos viviam.

Além de elementos históricos do momento (a guerra, o nazismo, o fascismo latente do governo Vargas), no centro do drama está a questão da esperança. O sofrimento de ambos com o nazismo e o fascismo (Bernanos fugira da França por se opor ao fascismo, Stefan Zweig era judeu —nada mais é preciso ser dito sobre seu desespero naquele momento) é conhecido pela fortuna crítica.

Bernanos é um autor a quem tenho dedicado atenção há algum tempo. O vínculo, em sua obra, entre um olhar agudo para o mal no mundo e a presença sobrenatural da graça como sutil detalhe em meio a esse mundo, é encantador. Como diz o personagem Bernanos num dado momento da peça, a fé é “como uma gota de esperança no oceano de dúvida”. Sua obra avança entre o nada e a graça. E, por isso mesmo, segue adentro do coração do hebraísmo antigo.

Como toda virtude, a esperança só brota na sua inteireza num terreno que lhe é hostil. Como estamos distantes aqui do farisaísmo moral que assola o mundo contemporâneo dos bonzinhos de coração e suas causas! Bernanos diz na peça que escreveu seis romances para tentar mostrar aos homens e às mulheres a presença do mal no mundo e em nós mesmos. Mas, como em toda boa teologia, o percurso pelo mal serve, antes de tudo, ao esclarecimento da visão da beleza e do bem que se esconde entre as trevas da realidade.

O Dostoiévski francês, como é chamado em seu país, era um homem que buscava a esperança como quem busca uma gota de oxigênio em meio ao vazio de ar. E aqui reencontramos a intuição do hebraísmo antigo: a esperança, assim como a coragem, são virtudes que se arrancam das pedras.

O hebraísmo antigo sabia que somente os pecadores verão a Deus. Nelson Rodrigues, que entendia profundamente da psicologia do pecador, traduziu essa máxima para “só os neuróticos verão a Deus”.
Se a humildade é a melhor resistência à estupidez e a coragem o melhor antídoto à mentira (temas também de Bernanos), a esperança é um trunfo contra o medo que nos assola todo dia, mesmo aqueles que se dizem felizes, belos e bons.
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*Escritor e ensaísta, autor de “Dez Mandamentos” e “Marketing Existencial”. É doutor em filosofia pela USP. 
Imagem - Ricardo Cammarota/Folhapress
Fonte:  https://www1.folha.uol.com.br/colunas/luizfelipeponde/2018/11/o-pecado-do-desespero.shtml  19/11/2018

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