Cientista político americano sustenta que tensões provocadas por governos populistas podem fortalecer o ambiente democrático — e não necessariamente miná-lo
9 nov 2018
O americano James Miller, professor de ciências políticas na universidade The New School,
de Nova York, passou boa parte de sua carreira mergulhado no estudo da
democracia e de suas várias formas, explicadas em seu livro Can Democracy Work? A Short History of a Radical Idea from Ancient Athens to Our World
(A Democracia Pode Funcionar? Uma Breve História de uma Ideia Radical,
da Grécia Antiga aos Dias de Hoje). Diante da ascensão de governos
populistas em democracias de muitas partes do mundo, Miller tem uma
posição divergente da tese dominante. Ao contrário de Steven Levitsky e
Daniel Ziblatt, autores do livro Como as Democracias Morrem
(Editora Zahar), Miller crê que as tensões podem ser positivas e, ao
fim, fortalecer o ambiente democrático. “Esses momentos podem ser
transformadores para a sociedade porque o cidadão exercita a
participação política”, disse a VEJA. No caso dos Estados Unidos, por
exemplo, Miller acredita que a indignação estimulada por Donald Trump
será positiva para acordar o Partido Democrata e fortalecer as
instituições liberais. A seguir, sua entrevista.
Por que o populismo nem sempre é ruim para a democracia?
A democracia também floresce na forma de manifestações e votações
furiosas, na forma de explosões de raiva contra as elites políticas, os
inimigos ocultos, ou seja, governantes em geral. Essas explosões são
essenciais para a vitalidade e a viabilidade da democracia moderna —
ainda que essas insurreições desafiem o status quo. Podem ser momentos
transformadores para a sociedade porque o cidadão exercita a
participação política. As implicações de eleger governos populistas de
direita ou de esquerda variam de país para país. Nos Estados Unidos, por
exemplo, penso que a indignação contra as medidas de Donald Trump possa
levar a mudanças positivas na política americana, como o próprio
fortalecimento do Partido Democrata e das instituições liberais.
E quando essas “explosões de raiva” resultam em regimes autoritários?
A mudança abre espaço para a entrada do cidadão comum no jogo político,
que é a raiz da democracia. A insurreição armada parisiense de 10 de
agosto de 1792, no início da Revolução Francesa, abriu caminho para a
criação da primeira Constituição democrática, elaborada em grande parte
por Condorcet e apresentada à Assembleia francesa em 1793. Essa revolta
armada levou à derrubada da monarquia. As insurreições iniciadas na
Rússia, em 1905, também provocaram transformações sociais e econômicas
importantíssimas. Houve um breve período de democracia direta antes de
os conselhos locais, em 1917, serem dominados pelos bolcheviques e, mais
adiante, pelo Partido Comunista. Mais recentemente, em 2011, a
Primavera Árabe na Tunísia e no Egito marcou outro movimento desse tipo,
em que houve uma participação popular ativa. Independentemente do
desfecho, esses movimentos provam a possibilidade de mudança para um
regime mais aberto.
Mas líderes escolhidos durante manifestações furiosas também podem enfraquecer a democracia, não?
Obviamente a eleição de outsiders como Trump, nos Estados Unidos, e
Jair Bolsonaro, no Brasil, representa ameaça direta a várias
instituições e valores liberais, que são representados pelas estruturas
de Estado que garantem direitos iguais a todos os cidadãos e a liberdade
da imprensa. Eles são, portanto, uma ameaça a uma democracia inclusiva.
No entanto, nos dois países, há um sistema institucional complexo que
serve justamente para impor limites a governos. Os liberais americanos
estão travando uma batalha para impor esses limites ao governo Trump,
até que, como eu espero, possam derrotá-lo na próxima eleição. Algo
parecido pode acontecer no Brasil. De qualquer forma, cada sociedade tem
de definir que tipo de democracia quer ter. As democracias liberais
certamente estão ameaçadas hoje em dia.
“No mundo moderno, uma democracia significa incorporar a
vontade de um povo soberano, que pode tomar a decisão
de ceder o poder a
um autocrata”
É possível haver uma democracia que não defenda valores liberais?
Para mim, o significado básico do conceito de democracia é a
participação política dos cidadãos de uma sociedade no governo, ou o
“poder do povo”. Como forma de governo, a democracia remonta à Grécia
antiga, onde cidadãos comuns exercitavam a democracia direta. Ou seja,
homens nascidos em Atenas que se reuniam em assembleia quarenta vezes
por ano para fiscalizar o governo da cidade. Todos os postos da
administração pública e da Justiça eram preenchidos por sorteio entre os
cidadãos comuns. Na Revolução Francesa, a democracia envolveu a
afirmação da soberania popular em uma série de insurreições armadas. Nos
Estados Unidos, a democracia passou a significar uma república
representativa com forte proteção das liberdades civis e da liberdade de
imprensa, ou seja, uma democracia liberal. No mundo moderno, uma
democracia, como entendo o termo, significa incorporar a vontade de um
povo soberano. E um povo soberano pode tomar a decisão de ceder o poder a
um governante autocrático, a um Parlamento ou a um governo formado por
instituições de controle, como prevê a Constituição americana. Mas é
preciso lembrar que não há consenso sobre a melhor forma de democracia.
Os húngaros votaram esmagadoramente a favor de uma forma iliberal de
democracia.
Por que a defesa de medidas claramente antidemocráticas não espanta eleitores?
Os brasileiros que elegeram Bolsonaro fizeram o mesmo que os americanos
que elegeram Trump. O desgosto com a corrupção dos partidos e políticos
tradicionais fez com que as pessoas quisessem mudar o jogo, buscar uma
cara nova, um outsider, independentemente das ideias que ele defenda. Ao
bagunçarem o tabuleiro e assustarem as elites políticas estabelecidas,
os eleitores têm a esperança de que algo possa mudar para melhor. Foi
essa vontade que prevaleceu.
Alguns autores, como Steven Levitsky e Daniel Ziblatt,
ganharam notoriedade com a tese de que as democracias, hoje, são mais
ameaçadas por políticos eleitos pelo voto do que por golpes. O senhor
concorda? Não, porque acho que Levitsky e Ziblatt confundem
liberalismo com democracia. Um povo soberano pode utilizar processos e
instituições perfeitamente “democráticos” para eleger um autocrata,
porque essa mesma sociedade pode querer ver instituições liberais
enfraquecidas. Autocratas não gostam de ter restrições, que são bem
definidas em democracias liberais, no exercício do poder. Mas um povo
soberano pode muito bem escolher uma forma de governo autocrática, se
assim desejar.
O senhor acha que democracias liberais podem se tornar incompatíveis com sociedades modernas?
Às vezes esse modelo funciona, às vezes não. E, às vezes, como alertou
John Adams, o segundo presidente americano, democracias cometem
suicídio, abrindo caminho para a própria deterioração. É aí que nós, que
somos livres para alertar nossos compatriotas dos riscos que eles
correm ao entregar o poder a um ignorante, entramos em ação. E tocamos o
alarme, votamos, brigamos pela democracia e esperamos o melhor. É
preciso estar pronto para o que pode se tornar uma longa e tumultuada
batalha para defender liberdades básicas contra inimigos autoritários.
Como uma democracia comete suicídio? Quando fez o
comentário, John Adams tinha em mente a democracia ateniense antiga.
Assim como o filósofo Platão e o historiador Tucídides, Adams acreditava
que as instituições democráticas de Atenas foram as responsáveis pela
derrota da cidade por Esparta na Guerra do Peloponeso. Ao dar poder a
uma multidão de cidadãos que, durante a guerra, ajudaram a defender a
cidade, a assembleia ateniense havia criado, na verdade, um novo tipo de
tirania: a tirania coletiva da maioria. A opinião dos cidadãos comuns
prevalecia sobre a opinião baseada em conhecimento científico. Segundo
Platão, o domínio da vontade da maioria acabou espalhando a preguiça, a
anarquia e o desperdício pela sociedade. Isso se tornou um problema
epistemológico, já que essa maioria não tinha noção da verdade e nenhum
padrão claro do que significava justiça. Essa democracia direta
corrompeu até mesmo os inteligentes, levando-os a mudar políticas locais
para ceder aos apelos das massas ignorantes. Isso fragilizou Atenas.
Para muitas pessoas, a democracia se tornou um conceito vago.
Como estreitar o laço da sociedade com governantes sem incorrer no
populismo? Ainda não vejo um modelo ideal para isso. Em grandes
nações, como os Estados Unidos e o Brasil, é cada vez mais difícil que
os cidadãos se sintam conectados com os governantes. É muita gente, e
gente com interesses muito variados, em um ambiente com muita
informação. Como Schumpeter (Joseph Schumpeter, 1883-1950, economista e cientista político austríaco)
afirmou oitenta anos atrás, na prática, a democracia pode se tornar uma
farsa em algumas sociedades liberais, por não representar os anseios do
povo. Isso ocorreria, segundo Schumpeter, porque o povo tende a ser
governado por políticos profissionais, que, em sua maioria, nutrem laços
com as pessoas mais ricas e poderosas da sociedade, em vez de olhar
para as necessidades do cidadão comum. Em uma república representativa
como a americana, a maior parte das pessoas tem pouquíssimo poder de
afetar a política, na realidade, considerando-se que os políticos são
definidos por partidos, que nem sempre se constituem, internamente, em
organizações muito democráticas. Esse modelo, muito comum no mundo
ocidental, não é exatamente o melhor exercício do poder do povo, mas sim
de governos de grupos específicos que se revezam no poder. Em muitos
locais, o eleitor vem mostrando que está farto desse formato.
“Como Schumpeter afirmou oitenta anos atrás, na prática,
a democracia pode se tornar uma farsa em algumas sociedades liberais,
por não representar os anseios do povo”
O segredo para melhorar a participação democrática não seria o cidadão comum se interessar mais por política?
É o caminho. O cidadão comum tem de participar da vida política da sua
cidade, do seu estado, da sua nação. Trata-se de um papel fundamental,
no qual a educação interfere de forma importante. É difícil que pessoas
sem o mínimo preparo consigam exercer seu poder dentro da sociedade,
apesar do voto. Nas eleições, as pessoas votam, entre outras coisas, em
quão tolerante e liberal deve ser a sociedade em que vivem. Elas
escolhem se a imprensa terá liberdade de fato, se os direitos humanos
serão respeitados, se as estruturas de poder serão fiscalizadas por
órgãos de controle. Isso tudo define os limites de pluralismo em uma
sociedade. Nos Estados Unidos, se as pessoas quiserem ter alguma
influência sobre os políticos, não basta que apenas votem. Hoje, elas
têm de ir além, como estar dispostas a participar de protestos e
manifestações para ser ouvidas.
Qual a influência das novas tecnologias nisso tudo?
No aspecto da participação, a tecnologia tem desempenhado um papel
ambíguo, porque tanto pode tornar o eleitor cada vez mais distante do
processo democrático, por meio da desinformação, o que é negativo, como
também pode levá-lo a engajar-se mais, informar-se mais, o que é
positivo.
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Publicado em VEJA de 14 de novembro de 2018, edição nº 2608
Páginas Amarelas - Entrevista - pág.17 a 19.
Fonte: https://veja.abril.com.br/politica/luz-no-fim-do-tunel/ 14/11/2018
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