Lya Luft*
Sou fissurada em notícias. As do meu
país e tudo mais que aparecer e eu puder entender. Às vezes, preferiria
não entender. Outras vezes, mudo de canal para não onerar ainda mais
minha alma, que não anda lá essas coisas. Mas sou, sim, curiosa,
interessada, assombrada, perplexa e às vezes maravilhada com as coisas
do mundo. As Coisas Humanas, provável título de um novo livro meu, que
talvez apareça em meados de 2019. Mas eu falo de notícias. Guerras,
carnificinas, incêndios, terremotos, inundações, tiroteios, toda a trama
que nos envolve e persegue e empurra há milhões de anos. Indignação,
encanto, pasmo, se alternam em quem assiste. (E insiste.)
Então,
noticioso correndo na tela, mas eu lendo e abstraindo de algum modo o
filme das coisas humanas que passa na minha frente - mãe de família e
trabalhando em escritório em casa, cedo aprendi a me concentrar, mesmo
com o chamado rumor da família por perto -, levanto os olhos e foco um
rosto de criança. Todos os traços de um ainda-quase-bebê, pode ter
quatro anos, pouco menos ou mais. Linda menina, olhos enormes,
melancólicos e perplexos. Ela não entende o que acontece ao seu redor,
no campo de refugiados do Afeganistão, tendas espalhadas no areal sem um
capim nem um poço à vista, só areia, vento, secura e rostos como
máscaras de severidade ou dor. Nas crianças, ainda sombras de sorriso ou
traquinices.
A menininha sentada, enfeitada com colares e
brincos, ao lado da mãe, de um velho com turbante torto e barba com ar
de suja e um menino - de 10 anos, fico sabendo depois. Até a curtida e
experiente jornalista que os entrevistava parecia não encontrar
palavras, enquanto eu, aqui do outro lado do mundo, não encontrava nem
pensamentos claros. Resumo da tragédia: a mãe, cujo marido tinha sido
morto numa escaramuça semanas atrás, viera ao acampamento com três ou
quatro filhos, e a linda menininha sendo a menor. Não tinham mais o que
comer, estavam famintos, acabariam morrendo ali mesmo.
Então, a
mãe relata com ar severo mas decidido, sem encarar a entrevistadora: ela
tinha resolvido vender a menina. Áquila, ainda com as bochechinhas
inocentes de quase-bebê, tem seis anos. A mãe, magérrima e tisnada de
muito sol e sofrimento, diz com simplicidade: "Ela ainda não entendeu,
porque é muito pequena, mas foi vendida para esse senhor aí". O velho ao
lado, turbante torto, lacunas entre os dentes da frente, se coça com
vago desconforto e diz que sim, que ali não é grande coisa, que afinal a
família morria de fome, e que ele vai pagar, em três anos,
provavelmente, os US$ 3 mil pelos quais adquiriu a criança.
A
mãe, remexendo-se, revela meio incomodada que até agora recebeu apenas
US$ 70. A criança olha, pasmada, mãozinhas ainda de bebê postas no colo,
imagem da inocência diante de um mundo brutal. A jornalista se levanta,
a câmera é recolhida - eu desligo a TV e fico olhando o verde do parque
lá fora, querendo ter, amar, abraçar, alegrar e cuidar, aquela
menininha chamada Áquila pela qual até agora a mãe recebeu US$ 70,
talvez mais do que os 30 dinheiros trocados por Cristo. Mudou o mundo,
ou só ficou mais pesado porque dentro da nossa sala?
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*Escritora
Fonte: http://flipzh.clicrbs.com.br/jornal-digital/pub/gruporbs/acessivel/materia.jsp?cd=8c465432a5c7eaa0f3fc7c03401ce607 24/11/2018
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