José de Souza Martins*
O
presidente eleito da República, radicalmente diferente de Lula, seu êmulo, fala
pouco. Quando candidato, deixou a palavra com as redes sociais. O Twitter
tem-lhe permitido dizer tudo quase sem dizer nada. Quem o lê inventa o
complemento da mensagem, conforme a mentalidade de cada um. Pode ter sido bom
para ganhar a eleição. Mas os algoritmos ideológicos dessas mensagens cifradas
municiam os protagonistas da nova era política com opiniões que na verdade são
concepções do senso comum e do cotidiano. É no terreno da incerteza intencional
que o novo governo vai sendo montado.
Já a
postura lulista de falar demais baseou-se e baseia-se num outro tipo de cumplicidade
dos acólitos que traduzem a fala barroca do líder em língua ideológica e em
diretriz partidária. O que se revelou um erro de quem se julga no mundo, mas
não vê o mundo.
No caso
de Bolsonaro, os extraordinários poderes das redes sociais e dos púlpitos
pentecostais encarregaram-se de elaborar a imagem ficcional de um candidato da
ordem. Não o que ele é, mas o que querem que ele seja. Como ocorreu com Lula,
ele não sabe e nunca saberá quem de fato é, politicamente. Chegamos à era do
poder da incerteza.
É
fenômeno da mesma qualidade que caracterizou a ascensão de Luiz Inácio ao
poder. Nesse caso, a população demonstrou, mais em 2002, menos em 2006 e menos
ainda em 2010, que se insurgia contra a voracidade de ganhos e de poder de
setores insaciáveis e inescrupulosos da elite.
A carta
do PT ao povo brasileiro, no entanto, foi uma declaração de adesão a eles e um
reconhecimento público de que pelo poder o partido estava disposto a aceitar a
cooptação. E foi o que aconteceu. Lula e Dilma presidiram a República, mas o
PMDB e seus aliados a governaram. Relembrando a frase de Giuseppe Tomasi di
Lampedusa, em "O Leopardo", de que tudo deve mudar para que tudo
fique como está.
Com
mensagem radicalmente oposta à do petismo e do lulismo, Bolsonaro não é deles
diferente no essencial. Seu silêncio pode estar refletindo o esgotamento do
vocabulário de campanha, o da língua do antipetismo.
No caso dos dois, Lula e Bolsonaro, um sociólogo não pode deixar de identificar o uso instrumental de técnicas da etnometodologia do cientista social americano Harold Garfinkel. Em pesquisa financiada pelo Pentágono, ele desenvolveu um método sociológico de experimentação científica em que o pesquisador induz a interação social com o paciente, que alguns definem como vítima. Questiona seu senso comum para, na reação, suscitar o preenchimento dos vazios da relação social com o mero senso comum.
No caso dos dois, Lula e Bolsonaro, um sociólogo não pode deixar de identificar o uso instrumental de técnicas da etnometodologia do cientista social americano Harold Garfinkel. Em pesquisa financiada pelo Pentágono, ele desenvolveu um método sociológico de experimentação científica em que o pesquisador induz a interação social com o paciente, que alguns definem como vítima. Questiona seu senso comum para, na reação, suscitar o preenchimento dos vazios da relação social com o mero senso comum.
Sua
ciência comprovou que o homem cotidiano tende a solucionar os estados de
anomia, de ausência de ordem, como a que vivemos agora, retornando ao que era
antes de seus ímpetos de mudança. A tendência social espontânea não é pela
revolução, mas pela continuidade do mesmo. É o que estamos vendo no processo
político brasileiro desde a campanha eleitoral de 2002.
Os
indícios, porém, de fragilidade da ordem social imaginária, de manipulação, que
a eleição sugere, podem ser apontados. Em 2002, do total de eleitores inscritos,
54,2% não votaram em Lula, 62,5 milhões de eleitores, 10 milhões mais do que os
que nele votaram. Esse foi o seu índice de potencial ilegitimidade, fator de
desaprovações e desconfianças, vácuo de legitimidade num caminho de potencial
queda final. Essa é a base da dúvida política num regime democrático.
Agora, em
2018, o índice dos que não votaram em Bolsonaro é mais alto, 60,8% dos
inscritos, 89 milhões e meio de eleitores, 32 milhões mais do que os que nele
votaram. Seu índice de potencial ilegitimidade é muito maior do que o de Lula
em 2002.
É aí que
a cultura da boca fechada fará, e já está fazendo, seu estrago. É uma cultura
de recusa do pensamento crítico, que Bolsonaro e os bolsonaristas, equivocadamente,
definem como de esquerda. Equivocadamente, também, porque quem recusa a
legitimidade da esquerda no mundo moderno fatalmente recusa a democracia cujos
adeptos estão indicados no número dos que recusaram o voto ao vencedor. Isso
não quer dizer que esse seja o número dos esquerdistas. Quer dizer apenas que
esse é o número dos adversários potenciais do pensamento tosco e unilinear da
direita.
As
escolhas frágeis e tendenciosas na área da educação e da ciência sugerem muito
claramente que o governo será inaugurado como um programa de guerra contra
ideias, contra o conhecimento e contra a cultura. Serão, provavelmente, 39%
contra 61%. Um jeito problemático de inaugurar um governo com a pretensão de
ser um governo da ordem com base numa orientação política de guerra aberta
contra o cerne da civilização, que é a da diversidade social e de ideias.
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* José de
Souza Martins é sociólogo. Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP.
Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, autor de Desavessos
- Crônicas de Poucas Palavras (Com-Arte)
FONTE: https://www.valor.com.br/cultura/6005937/de-boca-fechada
30/11/2018
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