Miguel Sanches Neto*
Valorizada como a
primeira voz feminina a expressar-se eroticamente em verso, Gilka
Machado gozou de uma fama inicial que beirava o escândalo
Eleita a maior “poetisa” brasileira em 1933 por uma enquete da revista O Malho,
vencendo com estrondosa vantagem Cecília Meireles (100 votos contra 6),
a carioca Gilka Machado (1893-1980) cairia em seguida no ostracismo. E
as razões para isso não foram apenas estéticas, embora ela mantivesse
uma poesia ainda muito presa ao espiritualismo anterior ao Movimento
Modernista. Tal como Cecília Meireles, vinculou-se aos prolongadores do
Simbolismo que se uniam em torno da revista Festa (1920-1930),
criada por dois paranaenses, Tasso da Silveira e Andrade Muricy, em
defesa de uma moderna visão católica em arte. Esta tendência não impediu
que Cecília construísse uma obra poética reconhecida, o que indica não
ter sido esta filiação a causa principal do apagamento de Gilka, que tem
a sua Poesia completa novamente reeditada (São Paulo: Demônio Negro, 2017).
Valorizada como a primeira voz feminina a expressar-se eroticamente
em verso, Gilka Machado gozou de uma fama inicial que beirava o
escândalo. Era a jovem poeta a escrever versos de uma sensualidade
inédita em nossa tradição. Casou-se muito jovem (em 1910) com o poeta e
jornalista Rodolfo de Melo Machado, que morre em 1923, deixando-a com
dois filhos e sem meios para sustentar a família. Neste período de vida
conjugal, ela escreve os seus principais livros — Cristais partidos (1915), Estados de alma (1917) e Mulher nua
(1922). Rodolfo era o outro de sua lírica erótica que se manifesta
assim dentro de uma grande e breve paixão conjugal. Mesmo a
representação desse erotismo de cônjuges se dá em linguagem metafórica. A
poeta usa palavras do campo da sexualidade que assumem um valor
espiritual, fiel à sua formação decadentista (em estética) e católica
(em religião). É mais o registro sensorial de um eu lírico do que a
sugestão de encontros sexuais.
Daí que eu possa gozar, ao vosso colo rente,
esse perfume a um tempo excitante e emoliente,
numa dúbia, sensual e suave sensação!
esse perfume a um tempo excitante e emoliente,
numa dúbia, sensual e suave sensação!
Desde as aliterações ciciantes, tudo revela um ser em êxtase. A sua
linguagem erotizada é uma inovação na poesia de autoria feminina e
permite que seus livros sejam lidos como uma versão dos Cântico dos Cânticos,
em que a mulher procura sempre o amado e o amado lhe escapa pela
fugacidade de tudo. Esta matriz bíblica é fundamental para entender o
conjunto de metáforas que sustenta uma poética amorosa nascida da
cumplicidade do casal. Mesmo depois da morte do esposo, ela continuará a
escrever poemas eróticos em que a memória dele ocupa o lugar físico que
ficou vago em sua vida.
Assim, termos como orgia, volúpia, desejo, devassa
etc. (próprios do campo da sexualidade) têm um valor particular e um
destinatário único. Não podem ser entendidos mundanamente, pois
pertencem antes a uma poética de exacerbação das sensações. Mais ainda, o
desejo ganha uma significação religiosa. E o encontro carnal se
converte em encontro com a divindade: “guardemos este amor com toda a
castidade […]/ Pela conservação de nosso amor, desisto/ dessa orgia
carnal, e/ ternamente acesa/ para o gozo do Mal,/ e, como as freiras são
as esposas de Cristo,/ serei a tua esposa espiritual”.
Estão assim delimitadas as fronteiras desta poesia castamente ousada,
em que o erotismo está mais no uso sensorial das palavras do que na
referência a comportamentos devassos. Mesmo assim, em uma sociedade em
que a mulher era condenada ao silêncio, principalmente ao silêncio sobre
o seu próprio corpo, sobre os seus desejos, a poesia de Gilka Machado
sofreu difamações. Embora a “mulher nua” que dá título a uma de suas
coletâneas fosse antes de tudo a mulher da alma nua (livre do próprio
corpo), a poeta passou a figurar como uma perdida que escancarava seus
hábitos feios. Esta compreensão lúbrica de seus poemas despertava mais
interesse pela mulher do que pela poeta, o que a frustrava. Ela viverá
sempre esta condição cindida, em um erotismo espiritualizado.
A má fama criada em torno dela e outros fatores vão fazer com que
desista da poesia. Gilka era de origem muito humilde, vencendo as
limitações de formação com esforço autodidata. Casou-se com um rapaz
também pobre. E acabou na completa miséria com a viuvez precoce.
Inicialmente diarista na Estrada de Ferro Central do Brasil, fez-se dona
de pensão, enquanto educava os filhos, passando o resto da vida em
trabalhos que deixavam pouco ou nenhum tempo para a arte. Embora sempre
recolhida, colou nela a imagem da libertina, ao ponto de, na nota
biográfica das Poesias completas editadas em 1978, ela
se defender: “Nunca matei, nunca roubei, nem fiz mal ao próximo; nunca
bebi, nunca joguei, nunca fumei nem participei de orgias”. A poesia
ficou para ela como uma corcunda socialmente incômoda.
E não só por ser mulher e escrever em uma linguagem erotizada. Também
por ser descendente de artistas populares. O repentista baiano
Francisco Moniz Barreto era seu bisavó e o violinista português
Francisco Pereira da Costa seu avô. Sua mãe e sua tia atuavam como
atrizes do rádio. A isso se alia a sua condição étnica. Existem poucas
fotos de Gilka, em que não fica evidente aquilo que talvez mais tenha
atrapalhado a recepção isenta de sua grande poesia espiritualista. Ela
era mulata. Ou seja, uma pessoa vista como objeto erótico pelos homens,
tal como conta o mulato genial Lima Barreto, ao falar de sua irmã
Evangelina, em seu Diário íntimo: “Minha irmã,
esquecida que, como mulata que se quer salvar, deve ter um certo recato,
uma certa timidez”. Qualquer liberdade é tomada como libertinagem.
Os outros três livros de Gilka serão publicados de forma cada vez mais espaçada — Meu glorioso pecado (1928), Sublimação (1938) e Velha poesia
(1968). Nos dois últimos, ela diminui o erotismo simbólico de seus
versos, dedicando-se a uma poesia mais sociológica. Ganha importância
aqui a valorização do amado ideal como um ser “moreno” e as raízes
africanas de seu ramo familiar oriundo da Bahia. A consciência das
limitações materiais também dá um novo estofo aos seus poemas, e a
irmana aos miseráveis. Ela escuta os sofrimentos que estão em seu
sangue, as longas misérias vividas e transforma a sua poesia em um canto
de africanidade.
Em Escutando-me (de A mulher nua), começara a desenvolver esta busca. Chega a ecoar o poema Vozes d’África,
de Castro Alves: “Quem poderá calar a multidão aflita/ que, sempre, em
minha alma e em meus silêncios grita:/ Deus, Senhor, onde estão da
existência os prazeres?!…”. Mas é em Sublimação que seu
verbo se torna mais político. Ela elogia os jogadores de futebol do
Brasil, vistos como “astros escuros/ sóis morenos” e enaltece “as negras
baianas” e o homem “moreno/ de pele crepuscular”. Sua poesia agora
positiva a África brasileira de onde ela vem.
Em Recordações do Escrivão Isaías Caminha, uma exposição sobre o preconceito contra negros e mulatos, o narrador se questionava sobre as causas de “tão feios fins de tão belos começos”?
E no final do livro ele responde: “a má vontade geral, a excomunhão dos
outros”. Programaticamente esquecida na história da literatura
brasileira, Gilka Machado ressurge como irmã espiritual de Lima Barreto,
alguém que sofreu mais do que ele a exclusão histórica por ter sido
mulher e ousado sensualizar a poesia.
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