Religião, família e costumes são três palavras
que tiram o sono de muito inteligentinho. No gradiente que compõe o
pensamento público e acadêmico, essas três palavras são das que causam
maior náusea. E, para piorar, as três foram ícones da vitória do candidato do PSL à Presidência.
O olhar sobre essas três palavras, dado por grande parte desse
pensamento público e acadêmico, é exemplo claro do vexame que a
inteligência pública passou nas últimas eleições para presidente:
parecia um time de cheerleaders num jogo de futebol americano.
Em vez de tentarem compreender o processo, viraram o rosto para
a população e reincidiram em suas obsessões históricas de classe (e em
seus empregos, redes de amizades, convites para jantares e festivais de
cinema).
As pesquisas de marketing sobre a extinta classe C mostravam que seus
jovens eram mais comunitários e valorizavam mais a família e vínculos
cotidianos próximos do que jovens das classes A e B. Há aqui uma pista a
ser seguida.
A esquerda é um fetiche de rico. Não entenda “rico” aqui como
milionário. Entenda como gente que reúne certas condições materiais,
sociais e psicológicas que dão uma sensação de segurança difusa ao
cotidiano. Gente “comum” valoriza a religião, a família e os costumes. E
temas como esses podem ser recobertos, inclusive, por diferentes
orientações sexuais, ao contrário do que pensa nossa vã filosofia
“engajada”.
Religião é o maior sistema de sentido que existe e opera unindo
concepções teóricas e gerais sobre as coisas (criação do mundo, pecado,
reencarnação, evolução espiritual e afins) a práticas cotidianas
concretas e fatos objetivos (culto, orações, reuniões entre “irmãos”,
ajuda voluntária, nascimento, casamento, doença e morte). As concepções
gerais dão sentido ao cotidiano, este dá “carne” às concepções (os
especialistas dizem “dimensão fática”, referindo-se a “fato concreto”).
Ricos em geral se esquecem de que a vida fracassa inevitável e
constantemente. Viajam para cidades bacanas em finais de semana, compram
coisas legais, quando não se deprimem em Paris ou em Trancoso.
Gente comum fica onde quer que viva todo fim de semana e não tem
grana para comer fora. O tédio só é “resolvido” pelo número de problemas
concretos que os sufocam. Nem tomam vinho para falar do horror que é o
Bolsonaro.
A igreja os acolhe, dá emprego, programa de final de semana,
namoradas para os filhos, enfim, cidadania. Esse Deus brega venceu o
ateísmo gourmet. “Deus” é um exemplo evidente da alienação que
caracteriza o vexame da elite intelectual. O mundo inteiro tem nele um
“amigo”, e nós torcemos o bico quando se fala dele. Deus acolhe os que
sofrem. E quem acolhe, de fato, são as igrejas. E você, que paga R$ 700 a
sessão de análise, não me venha falar do dízimo, ok?
E a família? Há décadas dizemos que ela é patriarcal, opressora e
causadora de tudo de ruim que existe no mundo. Esquecemos que, ruim ou
boa, quem não pode se deprimir em Paris ou em Trancoso só tem a família
quando tem febre, diarreia ou fica triste.
A pobreza de espírito com a qual a inteligência pública tem tratado o
tema chega a ser chocante. E quem não mente sabe que famílias
disfuncionais ou inexistentes são piores do que seu contrário.
Um exemplo evidente é que, quando se diz que mães solteiras têm mais dificuldade de criar seus filhos (o que é óbvio e todo mundo sabe, inclusive o mundo “científico”), os inteligentinhos saem gritando “preconceito, preconceito!”. Uma coisa é reconhecer o fato e o direito de alguém ter um filho sozinha (ou sozinho), outra é que esse seja o melhor formato.
Os fatos fragmentados da vida tornam-se narrativas, com um mínimo de
significado, quando conseguem perfazer um “todo” de sentido, mediante
costumes cotidianos que os enlaçam. Costumes são os marcadores pelos
quais reconhecemos nós mesmos, e a nossos valores, no dia a dia da
guerra que é a vida.
Um exemplo de “costume” é o medo de que uma filha fique grávida
solteira, de que um filho comece a usar drogas, de que um marido ou pai
perca a cabeça por uma mulher mais jovem e largue tudo, ou de que uma
esposa ou mãe desista dos filhos e decida “ser feliz”.
Ideias caretas demais? Talvez. Pensando como niilista, talvez Deus
não exista mesmo, as famílias sejam uma farsa e os costumes nada mais do
que modos ultrapassados e opressores de viver. Quem sabe, em quatro
anos, tenhamos um candidato niilista e, aí então, teremos alguém que nos
represente.
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