quarta-feira, 28 de novembro de 2018

Música e loucuras

Juremir Machado da Silva*
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Memória musical

      Uma pesquisa revela que a maioria das pessoas no mundo não descobre novas músicas depois dos 27 anos de idade. No Brasil, a playlist de cada um seria fixada até os 23. Pesquisas revelam tantas coisas. Um dia ovo faz mal. No outro, salva. A carne de porco já foi condenada e recuperada. Chocolate mata ou rejuvenesce. Leite era saúde em estado líquido. Agora, quase todo mundo tem intolerância a lactose. As vacas não sabem mais o que fazer. Egocêntrico, fui examinar o meu caso. Eu tinha 23 anos em 1985.

Não levava fé em Tancredo Neves. Estava com três diplomas nas mãos e desempregado. Na verdade, não procurava emprego. Ou fugia deles. Queria ser um eterno estudante. Era uma questão de coração. Sabia pouco. Precisava aprender. Ainda não tinha relido “Ulisses”, do temido e admirado James Joyce, nem esgotado as obras completas do aplaudido e repudiado ideologicamente Borges. Nem conhecia a Europa. Só de ler Jean-Paul Sartre.

Escutava MPB. Ouvia apaixonadamente Chico Buarque, Caetano Veloso, Gal Costa, Elis Regina, Maria Bethânia, Belchior e outros dessa turminha disparatada, mas única. Ainda faço isso com a mesma paixão. Nas entrelinhas, resvalava para Roberto Carlos e Nelson Gonçalves. Meu rock se esgotava em Janis Joplin e Jimi Hendrix. Depois da crise dos 40, passei a consumir doses gigantescas de jazz e de música clássica, especialmente sonatas. Vario. Nos últimos meses, ando obcecado por Haydn, Dvorák, Brahms e Mahler. As palavras das letras que gosto me deprimem ou distraem.

As pesquisas estão erradas? Sou uma exceção? Entro no desvio padrão? Não serei eleito. Ah, não isso já é outra coisa. As escolhas musicais revelam algo profundo da personalidade de cada um. Eis a tese. Bela tese. O que diz da personalidade de alguém gostar de funk ou rap? De música gauchesca? De sertanejo universitário? De MPB? De Bossa Nova? É possível ser violento e gostar de João Gilberto? Não sei a resposta. Tenho convicção de que aquilo que escutamos nos desnuda diante dos outros. É obsceno. Perguntei a um cara que eu não via desde a primeira eleição de FHC o que anda escutando de novo. Ele me respondeu sério em tom de dica:
– Chico e Caetano.

Quem não muda é velho? Somos velhos desde os 23? Nada tenho contra ser velho, exceto certa proximidade natural do fim, que pode, dizem, ser um novo começo. E o valor da aposentadoria. Esse parece que não tem volta. Pode-se, às margens dos 60 anos, mudar de gosto musical sem comprometer a biografia? Sem chocar a família? Não é quase como mudar de sexo? Imagino uma cena de casal, uma DR. O homem chega em casa e, de repente, confessa:

– Mudei.
– Hã?
– Mudei. Não gosto mais de Roberto Carlos.
– Como assim? Você adorava o Rei. Gosta de que agora?
– De Led Zeppelin.
– Meus Deus! O que vai ser de nós!

Loucuras

      Foi aí que eu comecei a cometer loucuras. Comecei a caminhar todas as manhãs. Em círculos. Melhor, em retângulo. A Redenção é um quadrado ou um retângulo? De repente, sem razão alguma, numa caminhada, lembrei do quadrado da hipotenusa, que eu confundia com Artemísia, deusa grega da caça. De Artemísia eu acabava, numa aceleração desvairada, no imperador romano Tibério vestido de mulher. Daí era um salto para a Idade Média.

Caminhar refresca o cérebro. Lembranças brotam a cada passo. Em uma semana, lembrei daquele gol do Inter em 1976, o da tabelinha de cabeça, recordei o Plano Verão, implantado por José Sarney, que teve o efeito de um inverno devastador sobre as cadernetas de poupança, rememorei a morte de Tancredo Neves, com todo boletim dado por Antônio Brito na televisão, pensei na Lídia Brondi, que deixou de ser celebridade para estudar psicologia, desarquivei PC Farias e os crimes da era Fernando Collor.

Tentei organizar na cabeça todas as denúncias de corrupção sobre as quais li alguma coisa nos jornais desde que passei a me interessar por política e a perder a obsessão por cavalos alados, jogo de cartas e batalhas heroicas com a plebe na frente. Vou precisar de um HD externo. Ou multiplicar as caminhadas. Fazer hora extra. Aumentar o percurso. Dar milhares de voltas. Nunca mais parar de caminhar. Moto-contínuo. Caminho, passos largos, tendo a cidade como horizonte. Passo por tantos moradores de rua que chego a me perguntar o que está acontecendo. Fico quieto.

Como diria o outro – nunca identificado – no afã de encontrar uma exclamação original e encorpada: que loucura! Caminho e me lembro: “Numa fábula, Nasreddin atravessa a fronteira todos os dias com mulas carregadas de sacos. Cada vez, os sacos são revistados, mas não se encontra nada. Nasreddin continua a passar a fronteira com suas mulas. Muito tempo depois, alguém lhe pergunta o que contrabandeava. Nasreddin responde: ‘Mulas’”. Essa é velha? Sim, é uma fábula. Eu a conhecia com motos no lugar de mulas. E com o Uruguai no lugar do mundo de Nasreddin ou Nasrudin, filósofo turco cujas histórias bizarras ou divertidas povoam o Oriente Médio. “Um camponês aproximou-se de Nasrudin, e queixando-se de que seu olho doía, pediu-lhe um conselho. No que o Mulá respondeu: ‘Outro dia meu dente doía, e não me acalmei enquanto não o arranquei”.

Uma loucura puxa a outra. Comecei a fazer planos para o futuro. Tentarei explicar a redundância. Eu já fiz muitos planos para o passado. Aliás, é a minha especialidade. Ainda mais caminhando. Faço planos para reescrever o passado. Getúlio não se mata. Jango resiste. A ditadura não acontece. Tancredo não morre. Zico não erra o pênalti contra a França em 1986. Eu não saio de Palomas. Sou modestamente megalomaníaco. Sempre me enfio entre os grandes. O resto deixo por conta da imaginação de vocês. Tenho certeza de que caminham todos os dias em círculos ou retângulos.

Nasredin me acompanha:
– Alguma vez você aprendeu a nadar?
– Não – respondeu o pedante.
– Caro mestre, toda sua vida foi desperdiçada, pois estamos afundando.
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Que país este Brasil. Judiciário assina recibo de que chantageou a nação.
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* Jornalista. Sociólogo. Prof.Universitário. Escritor.
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Fonte:  http://www.correiodopovo.com.br/blogs/juremirmachado/2018/11/11366/musica-e-loucuras/
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