Juremir Machado da Silva*
Memória musical
Uma pesquisa revela que a maioria das pessoas
no mundo não descobre novas músicas depois dos 27 anos de idade. No
Brasil, a playlist de cada um seria fixada até os 23. Pesquisas revelam
tantas coisas. Um dia ovo faz mal. No outro, salva. A carne de porco já
foi condenada e recuperada. Chocolate mata ou rejuvenesce. Leite era
saúde em estado líquido. Agora, quase todo mundo tem intolerância a
lactose. As vacas não sabem mais o que fazer. Egocêntrico, fui examinar o
meu caso. Eu tinha 23 anos em 1985.
Não levava fé em Tancredo Neves. Estava com três diplomas nas mãos e
desempregado. Na verdade, não procurava emprego. Ou fugia deles. Queria
ser um eterno estudante. Era uma questão de coração. Sabia pouco.
Precisava aprender. Ainda não tinha relido “Ulisses”, do temido e
admirado James Joyce, nem esgotado as obras completas do aplaudido e
repudiado ideologicamente Borges. Nem conhecia a Europa. Só de ler
Jean-Paul Sartre.
Escutava MPB. Ouvia apaixonadamente Chico Buarque, Caetano Veloso,
Gal Costa, Elis Regina, Maria Bethânia, Belchior e outros dessa turminha
disparatada, mas única. Ainda faço isso com a mesma paixão. Nas
entrelinhas, resvalava para Roberto Carlos e Nelson Gonçalves. Meu rock
se esgotava em Janis Joplin e Jimi Hendrix. Depois da crise dos 40,
passei a consumir doses gigantescas de jazz e de música clássica,
especialmente sonatas. Vario. Nos últimos meses, ando obcecado por
Haydn, Dvorák, Brahms e Mahler. As palavras das letras que gosto me
deprimem ou distraem.
As pesquisas estão erradas? Sou uma exceção? Entro no desvio padrão?
Não serei eleito. Ah, não isso já é outra coisa. As escolhas musicais
revelam algo profundo da personalidade de cada um. Eis a tese. Bela
tese. O que diz da personalidade de alguém gostar de funk ou rap? De
música gauchesca? De sertanejo universitário? De MPB? De Bossa Nova? É
possível ser violento e gostar de João Gilberto? Não sei a resposta.
Tenho convicção de que aquilo que escutamos nos desnuda diante dos
outros. É obsceno. Perguntei a um cara que eu não via desde a primeira
eleição de FHC o que anda escutando de novo. Ele me respondeu sério em
tom de dica:
– Chico e Caetano.
Quem não muda é velho? Somos velhos desde os 23? Nada tenho contra
ser velho, exceto certa proximidade natural do fim, que pode, dizem, ser
um novo começo. E o valor da aposentadoria. Esse parece que não tem
volta. Pode-se, às margens dos 60 anos, mudar de gosto musical sem
comprometer a biografia? Sem chocar a família? Não é quase como mudar de
sexo? Imagino uma cena de casal, uma DR. O homem chega em casa e, de
repente, confessa:
– Mudei.
– Hã?
– Mudei. Não gosto mais de Roberto Carlos.
– Como assim? Você adorava o Rei. Gosta de que agora?
– De Led Zeppelin.
– Meus Deus! O que vai ser de nós!
Loucuras
Foi aí que eu comecei a cometer loucuras.
Comecei a caminhar todas as manhãs. Em círculos. Melhor, em retângulo. A
Redenção é um quadrado ou um retângulo? De repente, sem razão alguma,
numa caminhada, lembrei do quadrado da hipotenusa, que eu confundia com
Artemísia, deusa grega da caça. De Artemísia eu acabava, numa aceleração
desvairada, no imperador romano Tibério vestido de mulher. Daí era um
salto para a Idade Média.
Caminhar refresca o cérebro. Lembranças brotam a cada passo. Em uma
semana, lembrei daquele gol do Inter em 1976, o da tabelinha de cabeça,
recordei o Plano Verão, implantado por José Sarney, que teve o efeito de
um inverno devastador sobre as cadernetas de poupança, rememorei a
morte de Tancredo Neves, com todo boletim dado por Antônio Brito na
televisão, pensei na Lídia Brondi, que deixou de ser celebridade para
estudar psicologia, desarquivei PC Farias e os crimes da era Fernando
Collor.
Tentei organizar na cabeça todas as denúncias de corrupção sobre as
quais li alguma coisa nos jornais desde que passei a me interessar por
política e a perder a obsessão por cavalos alados, jogo de cartas e
batalhas heroicas com a plebe na frente. Vou precisar de um HD externo.
Ou multiplicar as caminhadas. Fazer hora extra. Aumentar o percurso. Dar
milhares de voltas. Nunca mais parar de caminhar. Moto-contínuo.
Caminho, passos largos, tendo a cidade como horizonte. Passo por tantos
moradores de rua que chego a me perguntar o que está acontecendo. Fico
quieto.
Como diria o outro – nunca identificado – no afã de encontrar uma
exclamação original e encorpada: que loucura! Caminho e me lembro: “Numa
fábula, Nasreddin atravessa a fronteira todos os dias com mulas
carregadas de sacos. Cada vez, os sacos são revistados, mas não se
encontra nada. Nasreddin continua a passar a fronteira com suas mulas.
Muito tempo depois, alguém lhe pergunta o que contrabandeava. Nasreddin
responde: ‘Mulas’”. Essa é velha? Sim, é uma fábula. Eu a conhecia com
motos no lugar de mulas. E com o Uruguai no lugar do mundo de Nasreddin
ou Nasrudin, filósofo turco cujas histórias bizarras ou divertidas
povoam o Oriente Médio. “Um camponês aproximou-se de Nasrudin, e
queixando-se de que seu olho doía, pediu-lhe um conselho. No que o Mulá
respondeu: ‘Outro dia meu dente doía, e não me acalmei enquanto não o
arranquei”.
Uma loucura puxa a outra. Comecei a fazer planos para o futuro.
Tentarei explicar a redundância. Eu já fiz muitos planos para o passado.
Aliás, é a minha especialidade. Ainda mais caminhando. Faço planos para
reescrever o passado. Getúlio não se mata. Jango resiste. A ditadura
não acontece. Tancredo não morre. Zico não erra o pênalti contra a
França em 1986. Eu não saio de Palomas. Sou modestamente megalomaníaco.
Sempre me enfio entre os grandes. O resto deixo por conta da imaginação
de vocês. Tenho certeza de que caminham todos os dias em círculos ou
retângulos.
Nasredin me acompanha:
– Alguma vez você aprendeu a nadar?
– Não – respondeu o pedante.
– Caro mestre, toda sua vida foi desperdiçada, pois estamos afundando.
*
Que país este Brasil. Judiciário assina recibo de que chantageou a nação.
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* Jornalista. Sociólogo. Prof.Universitário. Escritor.
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Fonte: http://www.correiodopovo.com.br/blogs/juremirmachado/2018/11/11366/musica-e-loucuras/
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