Blade Runner 2049 (© Warner Bros.)
Slavoj Žižek discute Blade Runner 2049 sob a perspectiva da psicanálise e da teoria marxista.
Blade Runner 2049 (Denis Villeneuve, Warner Bros., 2017)
Slavoj Žižek, professor no Instituto de Sociologia da Universidade de Liubliana e na European Graduate School, discute Blade Runner 2049 a
partir das perspectivas da psicanálise e da teoria marxista,
identificando questões sobre o estágio atual do capitalismo, a natureza
da exploração do trabalho e o apagamento da distinção entre humano e não
humano por novas formas de pós-humanidade androide. O ensaio faz parte
da nova edição de Lacrimae rerum: ensaios sobre cinema moderno (Boitempo, 2018), a ser lançada em novembro. A coletânea também conta com ensaios sobre Batman: o cavaleiro das trevas ressurge, Pantera Negra e uma crítica leninista a La La Land: cantando estações.
Qual é a relação entre o
capitalismo e a perspectiva de pós-humanidade? Costuma-se postular que o
capitalismo é (mais) histórico e que a nossa humanidade, inclusive a diferença
sexual, mais básica, até mesmo a-histórica. No entanto, o que estamos
testemunhando atualmente é nada menos que um ensaio para integrar a passagem da
pós-humanidade ao capitalismo – é disso que se tratam os esforços de novos
gurus bilionários como Elon Musk. Sua previsão de que o capitalismo “como o
conhecemos” está chegando ao fim refere-se ao capitalismo “humano”, e a
passagem de que falam é a passagem do capitalismo “humano” para o pós-humano. Blade Runner 2049 lida com esse tópico.
A história se passa em 2049, quando replicantes (seres humanos gerados a partir
de bioengenharia) foram integrados à sociedade como servos e escravos. K, um
modelo replicante mais novo criado para obedecer, funciona como um blade-runner para o Departamento de
Polícia de Los Angeles (LAPD), caçando e “aposentando” replicantes ladinos de
modelos mais antigos. Sua vida doméstica se passa ao lado da namorada
holográfica Joi, um produto de inteligência artificial da Wallace Corporation.
A investigação de K sobre um crescente movimento replicante por liberdade
leva-o a uma fazenda, onde ele encontra os restos de uma replicante morta por
complicações decorrentes de uma cesariana de emergência. K fica desconcertado,
já que a gravidez em replicantes era até então considerada impossível.
Então por que o fato de dois
replicantes (Deckard e Rachael, do primeiro Blade
Runner) terem formado um casal sexuado e gerado um ser humano de forma humana
é experimentado como um evento tão traumático, celebrado por alguns como
milagre e castigado por outros como ameaça? Trata-se de reprodução ou de sexo,
isto é, da sexualidade em sua forma humana específica? A imagem da sexualidade no
filme continua a ser a padrão: o ato sexual é mostrado a partir da perspectiva
masculina, de modo que a mulher androide de carne e osso é reduzida a suporte
material da mulher-fantasia em holograma Joi, criada para servir ao homem. O
filme apenas extrapola a tendência, já em crescimento, de bonecas de silicone
cada vez mais perfeitas – ou, como Bryan Appleyard disse, “o amor em via de mão
única pode ser o único romance do futuro”. A razão para o poder dessa tendência
é que ela realmente não traz nada de novo: apenas atualiza o típico
procedimento masculino de reduzir o parceiro real a um suporte de sua fantasia.
O filme também falha em explorar a diferença (potencialmente antagonista) entre
os próprios androides, isto é, entre os androides de “carne e osso” e os
androides cujos corpos não passam de uma projeção de holograma tridimensional:
como é possível que, na cena de sexo, a androide de carne e osso aceite ser
reduzida a suporte material da fantasia masculina? Por que ela não resiste e
sabota o ato?
O filme oferece toda uma ampla
variedade de modos de exploração, inclusive um empresário semi-ilegal que
recorre a mão-de-obra infantil (centenas de órfãos humanos) para buscar
máquinas digitais antigas. Do ponto de vista marxista tradicional, estranhas
questões emergem: se os androides fabricados trabalham, a exploração ainda
ocorre? O trabalho deles gera valores que excedem seu próprio valor como
mercadorias para que possam ser apropriados por seus proprietários na forma de
mais-valor?
Deve-se notar que a ideia de melhorar as capacidades humanas
para criar trabalhadores ou soldados pós-humanos perfeitos possui um extenso
histórico no decorrer do século XX. No fim da década de 1920,
ninguém menos que Stálin sustentou financeiramente o projeto “homem-macaco”
proposto pelo biólogo Ilya Ivanov (um seguidor de Bogdanov, alvo da crítica de
Lênin em materialismo e empirocriticismo). A ideia era que, por meio do
cruzamento entre humanos e orangotangos, fossem criados trabalhadores e
soldados perfeitos, imunes à dor, ao cansaço e à má alimentação.1 Quando seus
experimentos fracassaram, Ivanov foi liquidado. Além disso, os nazistas também
usaram drogas regularmente para melhorar a adequação de seus soldados de elite,
enquanto o Exército dos EUA promove atualmente experiências genéticas e recorre
a drogas capazes de tornar os soldados super-resistentes (eles já dispõem de
pilotos prontos para voar e lutar ininterruptamente por 72 horas etc.). No
domínio da ficção, zumbis devem ser incluídos nessa lista. Filmes de terror
registram a diferença de classe sob o disfarce da diferenciação entre vampiros
e zumbis: os vampiros são bem-comportados, requintados, aristocráticos, vivem entre
pessoas normais, enquanto os zumbis são desajeitados, inertes, sujos e atacam
sem motivo, como numa revolta primitiva dos excluídos. A equação entre zumbis e
a classe trabalhadora foi feita diretamente em White Zombie (1932, Victor
Halperin), o primeiro filme de zumbis de corpo inteiro pré-Código Hays. Não
aparecem vampiros neste filme, mas, significativamente, o principal vilão a
controlar os zumbis é interpretado por Bela Lugosi, que ficara famoso um ano
antes no papel de Drácula. White Zombie transcorre em uma plantação no Haiti, o local da mais famosa revolta de
escravos da história. Lugosi recebe outro fazendeiro e mostra a ele seu engenho
de açúcar, onde os trabalhadores são zumbis e, como Lugosi se apressa em
explicar, não se queixam de longas jornadas de trabalho, não exigem
sindicalização, nem nunca entram em greve; simplesmente trabalham… Um filme
assim só foi possível antes da imposição do Código Hays.
Em uma inversão da fórmula-padrão em que o herói, vivendo
como (e pensando que é) mais um cara comum descobre ser uma figura excepcional
com uma missão especial, em Blade Runner
2049 K pensa ser a figura especial que todo mundo está procurando (o filho
de Deckard e Rachael), mas aos poucos percebe ser somente um replicante comum
obcecado com uma ilusão de grandeza, então acaba se sacrificando por Stelline,
a verdadeira figura excepcional que todo mundo está procurando. A enigmática
Stelline é crucial aqui: ela é a filha “real” (humana) de Deckard e Rachael, o
resultado da cópula entre eles – ou uma filha humana de replicantes, revirando
o processo de replicantes feitos pelo homem. Vivendo em seu mundo isolado
(incapaz de sobreviver em espaços abertos repletos de fauna e flora
verdadeiras), contida pela absoluta esterilidade (vestido branco em uma sala
vazia com paredes brancas), seu contato com a vida limitado ao universo virtual
gerado por máquinas digitais, ela está idealmente posicionada como uma criadora
de sonhos (trabalha de forma independente, sendo contratada para programar falsas
memórias a serem implantadas em replicantes). Como tal, Stelline exemplifica a
ausência (ou melhor, a impossibilidade) da relação sexual, que ela suplanta com
a rica tapeçaria fantasmática. Não é de admirar que o casal formado no fim do
filme não seja o casal sexual padrão, mas o casal assexuado formado por pai e
filha. É por isso que as cenas finais do filme são ao mesmo tempo tão
familiares e tão estranhas: K sacrifica a si mesmo em um gesto como o de Cristo
na neve para criar o casal… de pai e filha.
Existe um poder de redenção nesse reencontro? Ou deveríamos
observar o fascínio que ele causa contra o pano de fundo do silêncio
sintomático do filme sobre os antagonismos sociais entre os seres humanos na
sociedade ali retratada? (Afinal, onde ficam as classes humanas “mais baixas”?)
No entanto, o filme apresenta muito bem o antagonismo enfrentado pela própria
elite dominante em nosso capitalismo global: o antagonismo entre o Estado e
seus aparatos (personificados em Joshi) e as grandes corporações
(personificadas em Wallace) perseguindo o progresso até seu autodestrutivo
final. Embora Wallace seja um humano de verdade, ele já age como inumano, como
um androide cegado pelo desejo em excesso, enquanto Joshi defende o apartheid, a estrita separação entre
humanos e replicantes – seu ponto de vista é que, se essa separação não for
mantida, o resultado será guerra e desintegração.
Assim, no que diz respeito a Blade Runner 49, não devemos aplicar a famosa descrição do Manifesto Comunista,
acrescentando que, também em termos sexuais, a “parcialidade e a
mentalidade estreita tornam-se cada vez mais impossíveis”, que também no
domínio das práticas sexuais “tudo o que é sólido desmancha no ar, tudo
o que é sagrado é profanado”, de modo que o capitalismo tende a
substituir a heterossexualidade normativa padrão por uma proliferação de
identidades e/ou orientações instáveis e inconstantes? A atual
celebração das “minorias” e dos “marginais” é a posição predominante da
maioria – até mesmo a direita alternativa [alt-right],com suas
queixas contra o terror do politicamente correto, apresenta-se como a
protetora de uma minoria ameaçada de extinção. Ou pegue os críticos do
patriarcado que o atacam como se ainda se tratasse de uma posição
hegemônica, ignorando o que Marx e Engels escreveram há mais de 150
anos, no primeiro capítulo do Manifesto Comunista: “Onde quer que tenha conquistado o poder, a burguesia destruiu as relações feudais, patriarcais e idílicas”2
Isto sem mencionar a perspectiva de novas formas de pós-humanidade
androide (manipulada genética ou bioquimicamente) que despedaçarão a
própria separação entre humano e não humano.
Então por que a nova geração de replicantes não se rebela?
Os replicantes mais antigos se rebelaram porque acreditavam na veracidade de
suas memórias e, portanto, puderam experimentar a alienação de reconhecer que
não eram reais. Os novos replicantes sabem desde o princípio que suas memórias
são falsas, de modo que nunca são enganados – e, deste modo, tornam-se mais
escravizados à ideologia do que a simples ignorância de seu funcionamento. A
nova geração de replicantes é desprovida da ilusão de memórias autênticas, de
todo conteúdo substancial de seu ser, tornando-se, portanto, reduzida ao vazio
da subjetividade, ou seja, ao status proletário puro de substanzlose Subjektivitaet. Então, o fato de eles não se rebelarem
significa que a rebelião tem que ser sustentada por algum conteúdo substancial
mínimo colocado em risco pelo poder opressivo?
K encena um falso acidente para fazer Deckard desaparecer
não só da vista do Estado e do capital (Wallace), mas também da dos rebeldes
replicantes (liderados por uma mulher, Freysa, um nome que, é claro, ecoa
liberdade, Freiheit em alemão).
Embora é possível justificar sua atitude pelo fato de que Freysa também quer
Deckard morto – tanto o aparato estatal (personificado em Joshi) quanto os
revolucionários (personificados em Freysa) querem Deckard morto –, a fim de que
Wallace não descubra o segredo da reprodução replicante, a decisão de K, no
entanto, proporciona à história uma reviravolta conservadora-humanista: ela
tenta isentar o domínio da família do principal conflito social, apresentando
ambos os lados como igualmente brutais. Essa imparcialidade entrega a falsidade
do filme: é tudo muito humanista, pois tudo circula em torno dos humanos e
daqueles que querem ser (considerados) humanos ou aqueles que não sabem que não
são humanos. (O resultado da biogenética não é que nós, seres humanos “comuns”
– efetivamente somos isto, seres humanos que não se sabem humanos, ou seja,
máquinas neuronais com autoconsciência?)
A mensagem humanista implícita do filme é a da tolerância
liberal: devemos conceder aos androides com sentimentos humanos (amor etc.)
direitos humanos, tratá-los como seres humanos, incorporá-los ao nosso universo
– mas, com a chegada deles, nosso universo ainda será nosso? Continuará sendo o
mesmo universo humano? O que falta é qualquer consideração da mudança que a
chegada de androides com consciência significará para o status dos seres humanos: nós humanos não seremos mais seres
humanos no sentido usual, algo novo surgirá. Como definir isso? Além disso, no
que diz respeito à distinção entre androides com corpo “real” e hologramas, até
que ponto nosso reconhecimento deve ir? Hologramas replicantes com emoções e
consciência (como Joi, criada para servir e satisfazer K) também devem ser
reconhecidos como entidades que agem como seres humanos? Devemos ter em mente
que Joi, ontologicamente um mero holograma replicante sem corpo próprio, comete
no filme o ato radical de se sacrificar por K, um ato para o qual aquilo (ou
melhor, ela) não foi programado.
Evitar este Novo deixa somente a opção de um sentimento
nostálgico de ameaça (a ameaçada esfera “privada” da reprodução sexual), e essa
falsidade está inscrita na própria forma (visual e narrativa) do filme em que o
reprimido de seu conteúdo retorna: não no sentido de que a forma é mais
progressista, mas no sentido de que a forma serve para ofuscar o potencial
anticapitalista progressista da história. O ritmo lento com imagens estetizadas
expressa diretamente a postura social de não tomar partido, de condução
passiva.
Quando a questão “deveriam os androides ser tratados como
humanos?” entra em debate, o foco geralmente está na consciência ou na
sensibilidade: eles têm uma vida interior? (Mesmo que suas memórias sejam
programadas e implantadas, elas ainda podem ser experimentadas como
autênticas.) Talvez, no entanto, devamos mudar o foco da consciência ou da
sensibilidade para o inconsciente: teriam os replicantes um inconsciente no
sentido freudiano preciso? O inconsciente não é uma dimensão irracional mais
profunda, mas o que Lacan chamaria de “outra cena” virtual que acompanha o
conteúdo consciente do sujeito. Vamos dar um exemplo talvez inesperado, relembrando
a velha piada do Ninotchka, de
Lubitsch: “Garçom! Uma xícara de café sem creme, por favor!”; “Sinto muito,
senhor, não temos creme, só leite. Pode ser um café sem leite?”.
No
nível factual, o café continua sendo o mesmo café, mas o que nós
podemos mudar é transformar o café sem creme em um café sem leite – ou,
mais simplesmente, adicionar a negação implícita e fazer do café puro um
café sem leite. A diferença entre “café puro” e “café sem leite” é
puramente virtual. Não há diferença na verdadeira xícara de café, e
exatamente o mesmo vale para o inconsciente freudiano: seu status
também é puramente virtual, e não uma realidade psíquica “mais
profunda”. Em suma, o inconsciente é como o “leite” no “café sem leite”.
E aí está a pegadinha: pode o grande Outro digital que nos conhece
melhor do que nós mesmos discernir a diferença entre “café puro” e “café
sem leite”? Ou a esfera contrafactual está fora do escopo do grande
Outro digital que está restrito a fatos em nosso cérebro e ambientes
sociais de que não temos conhecimento? A diferença com a qual estamos
lidando aqui é a diferença entre os fatos “inconscientes” (neuronais,
sociais…) que nos determinam e o “inconsciente” freudiano cujo status
é puramente contrafactual. Este domínio de contrafactuais só pode ser
operacional se a subjetividade estiver presente: para registrar a
diferença entre “café puro” e “café sem leite”, um sujeito precisa estar
operando. E, de volta ao Blade Runner 49, seriam os replicantes capazes de registrar essa diferença?
Tradução: Ricardo Gozzi
Slavoj Žižek é filósofo e psicanalista.
Fonte: http://revistaportoalegre.com/blade-runner-2049-uma-visao-do-capitalismo-pos-humano/?utm_source=Contatos+Boitempo&utm_campaign=c1e43a7d06-Boletim_14%2F11&utm_medium=email&utm_term=0_68c0e326c0-c1e43a7d06-59949599
Notas
1. | ↑ | Por puro racismo e sexismo, Ivanov, é claro, tentou cruzar humanos machos e macacos fêmeas, além do que os humanos que ele usou eram homens negros do Congo – supostamente mais próximos geneticamente dos macacos. Para tanto, o Estado soviético financiou uma dispendiosa expedição para o Congo. | |||
2. | ↑ | Karl Marx e Friedrich Engels, Manifesto Comunista (Boitempo, 1998), p. 42. (N. do E.). |
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